O Último Elvis (El Último Elvis), de Armando Bo (Argentina, 2012)

maio 16, 2013 em Em Cartaz, Victor Guimarães

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Decadência e integridade
por Victor Guimarães 

Logo em seu primeiro plano, O Último Elvis nos apresenta um enquadramento móvel, que percorre lentamente a espiral de uma escada mal iluminada enquanto partimos do silêncio absoluto em direção aos acordes cada vez mais nítidos de “Assim falou Zaratustra”, de Strauss (a música tema de 2001 e opção primeira na lista das trilhas sonoras óbvias para ocasiões solenes). No alto da escadaria, a solenidade pré-fabricada encontra seu inusitado foco de atenção: um homem de meia-idade, cabelos desgrenhados e calvície avançada, visivelmente acima do peso requerido para o papel, prepara-se para assumir os vocais de um cover de Elvis Presley em uma festa de casamento em Buenos Aires. Embora o fundo cômico da sequência seja patente, não há ironia na mise en scène de Armando Bo: quando aquele Elvis começa a cantar – com sua voz contundente e totalmente entregue à interpretação –, a câmera se coloca a rodeá-lo em suaves movimentos de aproximação e afastamento, num leve contra-plongée que transforma o desejo de grandeza kitsch da situação encenada na integridade real e manifesta de um protagonista singular.

Esse gesto condensado nos primeiros minutos será a tônica de um movimento que perpassa todo o filme: encontrar a integridade em um mar de clichês é um traço predominante no olhar que O Último Elvis dedica ao universo dos artistas cover. Além da atenção detida à trajetória do protagonista, há um desejo de conferir dignidade a essa espécie de submundo – de saída, marginalizado, periférico, under –, a essa estranha comunidade de simulacros ambulantes (reunidos em uma inacreditável associação de artistas). Quando John, Freddy, Britney ou Iggy estiverem em cena, a excentricidade permanecerá – obviamente – como pressuposto, mas suas tintas não precisarão ser recarregadas pela encenação: o espectador se deliciará com cada nova estrela pop internacional em versão portenha, mas enxergará ali também – ainda que por breves instantes – a densidade dos homens e mulheres por debaixo dos figurinos.

Há também um interesse fundamental em extrair movimento, drama, filme, dessa inexplicável obsessão que governa um mundo artístico em que a lei que impera não é a da originalidade, mas a da máxima fidelidade da cópia. O protagonista Carlos Gutiérrez é um sujeito que só pronuncia o nome de batismo quando é obrigado a fazê-lo, e ainda assim, sempre em surdina. Deus lhe deu a voz do Rei (ele diz a certa altura a uma prostituta), e desde então ele tem dedicado todos – absolutamente todos – os momentos de sua vida a fazer não apenas de sua performance no palco, mas de seu próprio cotidiano a cópia mais perfeita possível da trajetória de seu ídolo. Casou-se um dia com Alejandra, mas só a trata por Priscilla; sua filha se chama Lisa Marie; quando chega do trabalho, em vez de ir ao bar da esquina e pedir um choripan, prepara um sanduíche de banana com pasta de amendoim, que come em frente à televisão (ocupada permanentemente por concertos e entrevistas de Elvis).

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Diante de um personagem tão imediatamente cativante, o gesto predominante tenderia a exaltar sua extravagância, apostar em uma dramaturgia dedicada a capturar a atenção do espectador pelo excesso. No entanto, embora esteja longe de se tornar um filme de grandes ambições estéticas – e que se rende a soluções narrativas bastante óbvias, em boa parte do tempo –, O Último Elvis guarda uma estranha potência, que consiste em fazer de uma ficção agradável – e inofensiva – o lugar da inscrição de uma força expressiva outra, que não pertence ao domínio da narrativa (quase sempre, muito previsível): o encontro entre a câmera e o corpo do ator/cantor John McInerny produz uma sorte de desvio do drama, de atrito produtivo entre ator e personagem, que excede e desestabiliza a cristalização proporcionada pela ficção.

Se o protagonista é a encarnação e a cópia (ainda que infiel) de um outro personagem, o que subsiste e dura no filme é justamente o que sobra desse empilhamento de representações: a densidade do corpo, a matéria sensível pela qual essas múltiplas encarnações têm de, necessariamente, passar. Diante das posturas, dos olhares e, principalmente, do canto apaixonado de John, os penduricalhos do roteiro tornam-se quase irrelevantes: antes do personagem, há um ator, um homem – concreto, feito de carne, osso e voz – que canta e se movimenta no espaço da cena, e o que a máquina do cinema parece poder fazer de melhor é estar à altura de sua presença.

Ao dar tempo ao tempo da canção (gesto paradoxalmente ausente na grande maioria dos filmes dedicados a música pop que inundam as salas todos os fins de semana), O Último Elvis faz de uma narrativa impregnada por um emaranhado de clichês o lugar de uma experiência sensível insuspeitada. Do intimismo da canção tocada ao violão para a alegria das senhoras presentes em um lar de idosos até a apoteose final de “Unchained Melody” em um cassino decadente de Avellaneda, o que o filme descobre – nesses encontros ingratos entre um intérprete notável e os cenários mais irremediavelmente inóspitos – é uma dignidade improvável, entre a grandiosidade e a ruína, entre o simulacro e o grão da voz.

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