O som em fiapos

janeiro 25, 2016 em Em Pauta, Raul Arthuso

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por Raul Arthuso

Primeiro, o passado: a historicidade de fotografias monocromáticas de Jacob Riis, mostrando trabalhadores pobres, remetendo ao auge industrial e às transformações técnicas da modernidade. Por último, a indeterminação do futuro: um plano detalhe de facas na vitrine de uma loja, logo após Ventura sair do hospital onde passa a maior parte – ou seria todo? – do filme.

Nesse trajeto, Pedro Costa lida frontalmente, em Cavalo Dinheiro, com uma mise en scène do tempo. Ou de tempos: memórias, História e histórias confrontam-se a partir da presença dos corpos de Ventura, Vitalina e seu marido como mortos-vivos perdidos entre um passado distante o bastante para ser esquecido, mas próximo o suficiente para permanecer como assombração. Mas a rigor, Cavalo Dinheiro não sai do lugar: Ventura deambula com uma espécie de delirium tremens pelos corredores de um hospital, as salas de uma fábrica abandonada, os subterrêaneos de uma prisão privada que se contamina pelo comunitário e vice-versa. Ventura está preso no elevador do tempo, movimentando-se verticalmente pelos andares, mas circunscrito no mesmo espaço de vivência. Como a definição do tempo musical de Adorno, cada cena em Cavalo Dinheiro reconfigura a anterior e abre indeterminações para a seguinte que só ganham corpo quando de fato acontecem, reconfigurando a nota-cena anterior e abrindo alamedas para a seguinte. “Carregamos todas as idades conosco”, ouvimos no filme de memórias de Manoel de Oliveira; “todos os tempos ao mesmo tempo”, vemos em Cavalo Dinheiro. Mais do que isso, o filme inteiro parece irradiar de um momento específico, desdobrando-se nas fantasmagorias ao redor de Ventura, penetrando seu corpo tremulante de morto-vivo vagando por corredores de memória que é melhor, porém impossível, de esquecer.

É um fio de tempo que se torna leitmotif desse filme de fiapos – pontos de luz, fatias de rostos, restos de lembranças, sobras de roupa no corpo (Ventura aparece despido como nunca). Esses fiapos de coisas são como notas essenciais de um refrão se formando e desfazendo, afirmando e negando-se. Não estamos muito longe da estrutura de pequenas formas se compondo em formas maioria e ganhando novos contornos no decurso do tempo de Ne Change Rien (2009). Como lá, em Cavalo Dinheiro há a dureza estrutural da forma frágil; ela promete romper-se a qualquer momento, tensionada até o limite de suas partes: os tempos se confundem, os fiapos de gente, de luz, de vozes se embaralham. Cavalo Dinheiro é também um filme musical.

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Essa noção serve também para pontuar a importância do som para a constituição da mise en scène de tempos (musicais e históricos) do filme. Também o som parece formado por fiapos, como sobras ou vestígios: os passos ecoantes pelos corredores vazios, o telefone arrastado por Ventura na fábrica, a música cuja letra os dois homens não entram em acordo, a voz sussurrante de Vitalina, um som teimoso em existir em sua dificuldade de ter corpo. Mas esses restolhos de som trazem uma força imensa pela tensão que carregam ao plano, pois dominam o espaço, ainda que sejam pequenos pontos sonoros na escuridão silenciosa dominante do filme – para retomar a bela imagem de Vitalina e Ventura conversando em frente a um fundo preto repleto de pontos luminosos, numa imagem quase surrealista em seu desejo de conter o universo todo na presença de dois corpos frente à câmera.

A estética de som de cinema, em sua era moderna, pode ser dividida em dois grandes gestos. O primeiro é um processo compositivo que organiza as diversas camadas sonoras como uma espécie de estofo que sustenta e ao mesmo tempo conclui a cena. O segundo gesto pensa na especificidade conceitual da cena, concretizando a idéia em matéria a partir da massa sonora. A grosso modo, o primeiro gesto soa mais realista, pois nele se encontra uma gama de sons dispostos a reproduzir a aleatoriedade e simultaneidade sonora da realidade, ainda que, paradoxalmente, o trabalho de organização dos sons e sua arquitetura racional na estrutura fílmica seja de natureza oposta à audição do mundo real. Já o segundo gesto, compositivo, próximo à música moderna, em que parte decisiva de sua estética está na escolha do que se omite, parece menos natural num filme tanto por não se apoiar na idéia de massa sonora, índice importante na percepção audível do mundo, quanto por realçar sonoridades para além de seu registro “natural” (em aspas mesmo, porque não existe nada de “natural” no som de cinema, quiçá no cinema como um todo mesmo). Em suma, um gesto tende ao completo, ao imaterial, ao abstrato, ao todo audível; o outro tende ao pontual, ao material, ao concreto, à sonoridade em si.

Seria inocente opor esses dois pensamentos e tentar valorá-los a partir de uma intenção que, no fundo, não está no gesto, mas nas obras como um todo, pois ambos os modos trazem sua complexidade no movimento paradoxal que propõem: um tenta imitar a realidade enquanto matéria bruta organizando o que não é organizável; o outro tenta imitar a percepção dessa realidade rompendo com a realidade ela mesma e voltando-se para o som.

Mais complexo é tentar fundir os dois gestos. Pois ao contrário da imagem, o som não tem o quadro. Claro, o cinema existe a partir da operação violenta do quadro e sua amputação do mundo pelas bordas, mas não existe um “quadro sonoro” ou uma restrição tão marcada quando a imagem. Evidentemente isso é resultado tanto da característica do ouvido humano e uma limitação técnica do aparato, ambos “incapazes” (para nossa sorte ou azar, depende de como se encara a vida) de recortar o som como quem expulsa um objeto indesejado para fora do quadro. O mundo insiste em penetrar nas camadas sonoras por mais específico que nossos microfones possam ser. Diante dessa ausência de “quadro sonoro”, os dois gestos de sonorização de cinema são modos de compor quase opostos de inflação ou deflação. Se pensarmos num balão, o trabalho de som seria a medida de quantidade e temperatura de ar necessárias para um vôo em determinada altitude. O primeiro modo coloca em jogo uma composição precisa de diversos sons, onde desequilíbrios, repetições, especificidades e generalidades encontram uma harmonia própria de cada filme, cena, plano. Já o segundo modo guarda um investimento no específico em cada instante, permitindo transitar por meandros mais tortuosos, sob o risco de perder sua relação com o visível. Enfim, um modo trabalha para construir um campo, sugerindo um mundo ilimitado para além do quadro; o outro, um espaço, com limites claros, concretos. Fundi-los é colocar o ilimitado limitado, o abstrato concreto. Corre-se o risco da virtualidade e do nada. Esse jogo complexo entre os dois gestos está posto em Cavalo Dinheiro.

Isso já estava no horizonte desde No Quarto da Vanda (2000). Tão importante quanto o que soa é o que não soa. O quarto em questão no título é como uma câmara onde reverberam estilhaços de sonoridades do mundo exterior, em tensão constante com as tomadas de decisão individuais, os lamentos, as dores, as idéias apresentadas no interior. Isolamento e porosidade. O quarto de Vanda é um mundo em microscópio cercado por um mundo social e político em demolição. Ou a noção de “ágora” dita por Pedro Costa. Fazer dos limites ilimitados: Fontainhas é o mundo e este parece passar pelo quarto da Vanda. Essa construção, por sua vez, é tensionada pelo som. Os ruídos fora de quadro abundam, ameaçam invadir o quadro, ainda que muitas vezes permaneçam incógnitos. Se vemos os sons das escavadeiras destruindo o bairro em momentos pontuais ao longo do filme, o som as referencia com mais potência, pois as máquinas podem estar lá, ali ou em qualquer lugar, como a vizinha que grita, as crianças brincando, a música pop bombando na casa da frente (ou seria do lado? Ou em outra rua?). É fácil encaixar o trabalho de som de No Quarto da Vanda na segunda tipologia, mas algo complica a classificação, porque o filme soa tão realista, mas ao mesmo tempo abstrato, quase cubista; aleatório e arquitetado simultaneamente, pede a audição ao detalhe que se perde no todo inaudível do mundo. Se o som está organizado a partir da audição do detalhe, do limite da audição (e do mundo, do quadro, da ficção, da materialidade), seu resultado é busca pelo efeito da primeira tipologia: a composição ilimitada, falsamente aleatória, pedindo para não ser ouvida. No Quarto da Vanda se faz dessa tensão entre a existência e seu apagamento, a imagem da demolição e o som que escorre de um espaço a outro.

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Em Cavalo Dinheiro, pelo contrário, a tensão se dá a partir de sons sem vida, fantasmáticos que impõem sua existência ao plano. É o caso dos passos pelos corredores sombrios do hospital: a reverberação tira presença do som enquanto evento específico; mas, ao mesmo, tempo, seu evento reconfigura o espaço, muda a percepção plástica do plano e a perspectiva visual. O fiapo de som transforma todo o mundo ao seu redor. O som ralo do filme faz das forças intrínsecas da sonoridade um modo de resistência (à morte? ao mundo? ao esquecimento diante do próximo som a ser emitido?). Isso é, por um lado, assustador. Poucas vezes no cinema uma palavra teve tanta potência e significados como “Confessa”, dito pelo fantasma do marido de Vitalina ao Ventura atormentado. Ou ainda, nunca um telefone foi tão pesado quanto o aparelho desativado que Ventura arrasta pela fábrica abandonada. O fantasma e o aparelho desativado ambos carregam uma pulsão sonora que se alastra pelo mundo dos vivos. Mortos-vivos. O mundo de Ventura, de sua história pessoal e da História de uma revolução que não é ela também mais que uma morta-viva, está contido em cada timbre que se arrasta. Assim, os sons de Cavalo Dinheiro carregam o duplo gesto do todo e do detalhe, do abstrato e do concreto, do ilimitado e do pontual. Daí esse efeito de assombro em escutá-lo, mas sem “chamar a atenção” para sua audição – mais uma vez um movimento duplo, paradoxal entre ouvir e não ser ouvido, o som também um morto-vivo.

Mas é no conjunto de vozes que os tempos confluem e as sonoridades ganham camadas mais palpáveis. Desde a voz já reconhecível de Ventura, uma voz fina e aguda para um homem daquele porte, até a voz rasgada de seu sobrinho que discute por causa da letra da música, o conjunto de sonoridades das vozes aqui é inédito em Pedro Costa. São, de certa forma, vozes sem voz, falando de angústias e tormentos que ganham particularidade no som de suas vozes. Afinal, os assombros de Ventura não são os mesmos de Vitalina e, se percebemos isso pelo que dizem, sentimos através do som das vozes. A voz quase sem corpo de Vitalina carrega uma vontade das palavras em não existir. Sua dor não encontra lugar no mundo se não no som das palavras. Sons e dores que existem a meio caminho entre relembrar e desaparecer. Como Ventura no elevador, confrontado com todos os seus fantasmas, incorporados na figura do soldado-estátua, corpo vivo e morto ao mesmo tempo, cujas impostações vocais lutam com Ventura em seu purgatório mais intenso. Tudo em Cavalo Dinheiro está preso entre esquecimento e memória, mas só seus sons podem concretizar isso de forma tão precisa nesse conjunto de vozes que, contendo a força de todo um mundo, deixam de existir no instante seguinte. Mas permanecem. Vocalizar nunca foi tão preciso como em Cavalo Dinheiro.

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