O Passado (Le Passé), de Asghar Farhadi (França/Itália, 2013)

outubro 4, 2014 em Em Cartaz, Filipe Furtado

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Investigação asfixiante
por Filipe Furtado

O Passado reflete a postura do seu protagonista, um iraniano (Babak Karimi), que, assim como o diretor Asghar Farhadi, está de passagem rápida pela França. Ele chega ali para assinar rapidamente um divorcio, mas encontra uma teia melodramática de ressentimentos familiares envolvendo sua ex-esposa, seu futuro marido e seus filhos. Diante de tudo isso o homem iraniano permanece impassível, irritado por ser arrastado para aquelas situações que pouco lhe dizem respeito, e que segue desvendando porque é o que se espera de sua posição de protagonista.

Há uma série de mistérios em O Passado mas, assim como seu estrangeiro de passagem, o filme se mostra mais interessado na mecânica de sua construção do que em localizar neles uma força própria. Seus melhores momentos são justamente aqueles nos quais Farhadi nos instala na unidade familiar e permite que o ressentimento tome conta. O pouco de interesse dramático do filme reside na casa da personagem de Bérénice Bejo e como ela pode sugerir um palco para que tal rio de ressentimento corra. Não surpreende que o filme encontre muito mais força ao mostrar o ex-marido irritado por ter que dividir um quarto com o filho do novo pretendente do que quando se desdobra sobre as razões do suicídio da esposa do personagem de Tahar Rahim. Os ocasionais momentos em que algo do projeto de cinema de Asghar Farhadi sobrevive são quando ele se volta para estas pequenas picuinhas e revoltas, quando a pequenez dos seus personagens é de gestos e não parte de uma longa e tortuosa investigação dramatúrgica.

Mesmo antes de alcançar sucesso em festivais internacionais de A Separação (2011) e A Procura de Elly (2008), Asghar Farhadi já construirá seu nome no Irã com filmes como Linda Cidade (2004), nos quais se destacava justamente o olhar apurado para o Irã urbano relativamente pouco registrado nos filmes que fizeram o nome do cinema do país nas décadas de 1980 e 1990. O Passado não esconde seu desejo de servir como um grande filme de consagração logo após a recepção do seu trabalho anterior, mas a transposição do seu cinema da classe média iraniana para a França traz efeito inverso do desejado. Se o que o cinema de Farhadi mostrava de melhor era justamente a textura do seu meio, O Passado é um filme de estrangeiro na pior acepção da palavra: seu mundo não tem qualquer força, pois jamais é imaginado para além do rascunho funcional necessário para fazer a intriga andar. O que se transporta do trabalho anterior do cineasta não é o olhar apurado, mas a asfixia da construção dramática.

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O Passado realiza menos a consagração de Farhadi do que uma autopsia dos seus limites: sem o seu meio urbano iraniano para distrair o espectador, sobra pouco na sua ação além de uma série de revelações calculadas. A cada nova revelação, o seu conjunto de relações doentes se mostra inoperante, menos resultado dos gestos ressentidos da meia hora inicial e mais um laboratório dramatúrgico estéril. Em suma: Asghar Farhadi não nasceu para Claude Chabrol. Se nos seus filmes anteriores (em especial em A Procura de Elly) a construção estreita e super planejada tendiam a diluir aos poucos o interesse, aqui ele já é nulo de principio e, um pouco como o protagonista-testemunha, cabe a nós pouco mais que observar esta estrutura se desfazer aos poucos.

O maior problema de O Passado já esta explicito no título do filme: toda a ação aconteceu antes de ele começar. Farhadi busca registrar somente reações a novas revelações. Trata-se de uma ideia potencialmente interessante, mas que resulta em um filme de investigação que tem extremas dificuldades de investir força no seu processo. Estamos no velho terreno dramático do estranho que adentra a família burguesa e procede por revelar-lhe todos os podres, mas, na tentativa de enriquecer seu foco ao centrar-se apenas nos olhares frustrados de cada membro da sua ciranda de enganos e traições, o filme somente os dilui e ressente-se de um mínimo de ação concreta que possa tornar todos estes olhares ressentidos mais fortes. Nunca se age em O Passado, apenas fala-se das desgraças que vieram antes.

Ao final da viagem, cabe ao homem pouco mais do que cumprir a função de um detetive burocrático – e estamos diante de uma investigação policialesca barata disfarçada de drama familiar – e, após resolver o mistério, voltar à casa com o mesmo pouco interesse distante que apresentava nas cenas iniciais. É necessária uma convicção muito mais forte do que a curiosidade sociológica rala do cinema de Asghar Farhadi para transformar um desafio estético como este em algo recompensador.

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