O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street), de Martin Scorsese (EUA, 2013)

janeiro 22, 2014 em Em Cartaz, Filipe Furtado

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O último carnaval
por Filipe Furtado

Excesso está no centro de boa parte dos filmes que Martin Scorsese realizou nos últimos quinze anos. Em algum momento após Kundun (1997), os filmes do cineasta americano perderam completamente o senso de economia e proporção – eles se movem rapidamente, acumulam situações com pouco cuidado, e a ideia de que “mais é melhor” se torna o mote que os guia ao lado da montagem de Thelma Schoonmaker – parceira central do diretor desde o começo da carreira, mas alçada a quase coautora em filmes como Os Infiltrados (2006), cujo efeito se torna muito dependente da sua articulação de planos. Até mesmo um filme modesto como Ilha do Medo (2009) ou mais calmo como A Invenção de Hugo Cabret (2011) não escapam da histeria ou certa grandiloquência: no Scorsese tardio estamos sempre diante da ideia de espetáculo como excesso.

Parte do que torna O Lobo de Wall Street um filme genuinamente interessante é que tal excesso deixa de ser uma questão de forma e se torna o centro do filme. É um filme sobre o desejo de se torrar dinheiro por um cineasta cuja obra recente é toda dedicada a torrar o maior aparato hollywoodiano sem culpas. É um filme de cem milhões de dólares sobre um personagem colocado em cena não como um abutre do grande sistema financeiro (estamos bem longe de Oliver Stone), mas como um muito mais mundano consumidor desenfreado, menos interessado em acumular capital do que em torrá-lo. Como visão de capitalismo sem controle, o clube dos cafajestes de Jordan Belfort é tanto bem mais atrativo (por ser mais fácil de se identificar) quanto assustador, na crueza da sua lógica quando levada até o limite, como a atual estética de Scorsese permite.

A melhor observação que li sobre O Lobo de Wall Street até agora veio do crítico americano Zach Campbell que comparou o filme a A Comilança (1973), de Marco Ferreri. É um ponto de comparação muito mais útil do que os muitos filmes sobre sistema financeiro americano ou os épicos decadentistas de Cecil B. De Mille, justamente porque reaproxima O Lobo de Wall Street da verve católica de Scorsese. Ferreri era um marxista, algo que Martin Scorsese está bem distante de ser, mas sua ideia de levar a lógica de consumo do capital ao extremo parte do mesmo princípio dionisíaco de que pode se chafurdar na merda, absorver todos os seus prazeres e purgá-la no processo, chegando limpo do outro lado. O que parece incomodar muitos dos críticos de O Lobo de Wall Street é justamente esta crença sem culpas de que o bacanal de Jordan Belfort é um espaço que o filme pode ocupar e mesmo absorver sem grandes neuroses, de que a overdose do seu excesso vai naturalmente se encarregar de expor seus problemas. Pela primeira vez em muito tempo, a falta de proporção que marca os filmes recentes de Scorsese se transforma numa arma estética.

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O Lobo de Wall Street é um filme de sequências, gestos e momentos, muito mais poderosos nestes do que no seu todo. Tratam-se de pequenos blocos desconexos grudados à força pela montagem de Schoonmaker. Não poderíamos estar mais distante de um filme como Os Bons Companheiros (1990), cujas peças de vaudeville, por mais charmosas que podiam ser, serviam a uma dramaturgia maior; aqui elas existem por si mesmas, os sentidos do filme estão na sobreposição desses vários momentos, uns sobre os outros, até o esgotamento final. Não há uma visão ou coerência no seu recorte sobre a brutalidade do meio financeiro (se é isto que o cinéfilo procura, ele estará muito melhor servido com um filme como Life Without Principle, de Johnnie To).

Em O Lobo de Wall Street, sequer há espaço para vítimas ou mesmo para mostrar seus corretores trabalharem. Como um filme sobre um sistema e seu funcionamento, é um completo fracasso. Não há cuidado em se erguer um mundo tanto quanto em permitir que pequenos momentos registrem – como a cerimonia de Matthew McConaughey que revela a vulgaridade por trás da aparente respeitabilidade de Wall Street; a linguagem corporal do banqueiro suíço de Jean Dujardin, que inclui cada clichê que o audiovisual americano acumulou sobre a imoralidade francesa; as muitas crises de Di Caprio. O Lobo de Wall Street é um filme etnológico: seus sentidos são indistinguíveis de uma série de comportamentos; seus personagens, parte de um experimento, animais para os quais se deu dinheiro e permitiu ver até onde sua libido os levaria. A atuação de Leonardo Di Caprio é um triunfo justamente na medida em que é física e animalesca. O filme não lhe permite motivações, conflitos, só um desejo irrefreado por consumir mais. É uma cobaia destinada a cheirar, gastar, foder e beber até morrer.

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O fracasso de O Lobo de Wall Street é por consequência inevitável. Um experimento destinado a se arrastar até a exaustão, trata-se provavelmente da primeira comédia de três horas de duração do cinema americano desde It’s a Mad Mad Mad Mad World (1963), de Stanley Kramer. O acumulo de excessos traz com ele uma resseca inevitável que o filme é incapaz de dramatizar, porque dramaturgia é algo que o filme mal compreende. O Jordan Belfort de Di Caprio é uma grande criação animalesca, mas ele permanece um mestre de cerimônias de uma orgia de excessos, uma casca vazia incapaz de carregar as consequências dos seus atos. Há uma sequência desastrosa próxima ao final que tenta ilustrar o outro lado do personagem, em que Belfort, drogado, tenta sequestrar a própria filha e termina batendo o carro na saída da garagem – a mudança de comédia grosseira para filme de psicopata funcionando como um pedido de desculpas sem tesão, com a monstruosidade que até ali se resolvia na presença de Di Caprio mal articulada na ação.

Essa falta de disciplina do filme é bastante custosa nas sequências finais. Por exemplo, após cerca de 170 minutos, ele finalmente abandona o ponto de vista de Belfort para mostrar o retorno vazio ao lar do agente federal que o prendeu, a despeito de tudo que a sequência apresenta ser comunicada melhor pelo ator Kyle Chandler em cada uma das suas sequências anteriores. O tom melancólico da ressaca cai muito mal sobre um filme carnavalesco como O Lobo de Wall Street e em alguns pontos, como na sequência final, somos lembrados de que Scorsese é hoje preso à camisa de força de cineasta de prestigio, como se, por um momento, Trocando as Bolas (1983) acreditasse que existe valor na respeitabilidade.

Se O Lobo de Wall Street consegue se afirmar como um filme político, é justamente porque durante a grande maioria das suas sequências ele mergulha com gosto na vulgaridade, reconhece que tudo que seu universo menos merece é ser justificado com uma abordagem respeitosa. O filme por vezes sugere um panorama nostálgico sobre a década de 1990, ao mesmo tempo clamando por um retorno aos anos Clinton, pré-crise financeira, pré-Bush, hoje quase um oásis mitológico para o progressista americano (há alguns usos inspirados de escolhas musicais que reforçam esta impressão) e uma consciência de que os excessos do período terminam por levar à aridez contemporânea. Pode se desejar retornar a um momento mais descomplicado, mas O Lobo de Wall Street tem o mérito de não negar a própria feiura. Sua grosseria é um estado do qual o filme é incapaz de fugir.

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