O Grande Mestre (Yi dai zong shi), de Wong Kar-wai (China/Hong Kong, 2013)

outubro 4, 2014 em Em Cartaz, Pedro Henrique Ferreira

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A silenciosa voz do corpo
por Pedro Henrique Ferreira

Revelar um personagem. Como em Cidadão Kane (1941), e um punhado de outras obras de Welles; alguns filmes de Hawks, Eastwood, Godard. O conflito a ser resolvido é menos flagrante que mostrar o protagonista. Ele não passa por mudanças dramáticas. Sua perspectiva é que é revelada aos poucos, ao longo do desenrolar da narrativa, e sua posição moral coincide ou dialoga, em alguma medida, com o valor moral da obra. O Grande Mestre, primeiro longa-metragem de Wong Kar-Wai após um hiato de seis anos, parece se dedicar a apresentar um personagem, uma postura dele diante do mundo, que, por outro lado, é também um mundo em si.

Ip Man é este protótipo: na história do Kung Fu, não ocupa um lugar de destaque. Sua principal contribuição foi ter ensinado Bruce Lee – este, por sua vez, o grande responsável pela ocidentalização do legado do Wing Chun e a popularização da arte marcial nos meios de comunicação (sobretudo via cinema). De 2008 para cá, quatro produções chinesas – duas dirigidas por Yip Wilson e outras duas por Yau Herman –  foram realizadas acompanhando a trajetória do artista marcial, da sua participação na guerra sino-japonesa à consolidação de sua escola em Hong Kong. Todos se constituem como filmes de gênero e enfatizam o heroísmo e habilidade de Ip Man contra diversos adversários, estrangeiros e locais.

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A obra de Wong Kar-wai, substancialmente diferente das demais, investiga um período de passagem na história da China, que coincide, mais ou menos, com a transição da arte marcial clássica à moderna. Gong Yutian, após unir os estilos do Norte da China, desafia a associação do Sul para unificar os estilos do país. Mesmo sem ser o mais apto, Ip Man (Tony Leung) é eleito para a missão. O conflito se resolve em um desafio lúdico de Gong Yutian, sem um confronto direto. Após vencê-lo, ao ímpeto de “unificar todas as artes da China”, Ip Man responde com um “e por que não o mundo?”, indagação que coincide com a postura “globalizante” que o diretor assumiu durante toda a sua carreira.

Após a invasão nipônica, Ma San (Zhang Jin), discípulo de Gong Yutian, assassina seu mentor. Sua filha, Gong Er (Ziyi Zhang), passa a perseguir vingança, ainda que contra o conselho dos demais mestres da escola. Como em O Confronto (James Wong, 2001), o XingYi e seus movimentos explosivos/diretos surgem como o oposto diamétrico do Pa-Kuá, mais tangível/esférico. O embate entre os dois jovens resultará não na restauração, mas no desmantelamento da escola. Ma San será derrotado e destituído, para mais tarde começar uma escola sem vínculos com a tradição do Norte. Gong Er se ferirá, abandonará as artes marciais, e eventualmente, falecerá em decorrência dos ferimentos. Ip Man, que tangenciará passivamente o principal conflito do filme, irá constituir sua própria escola e divulgar o estilo mundo afora, concretizando a promessa e a filosofia de que “vence quem manter-se de pé”.

Ip Man é a grande figura de Wong Kar-wai: seu pacifismo o afasta do embate; seu interesse pelo kung fu é outro. Contra a ambição de Ma San e o espírito de vingança representado por Gong Er, Ip Man encarna como uma luva esta efígie oblíqua, silenciosa. Em uma entrevista concedida a Martin Scorsese, da ocasião do lançamento do longa-metragem, Wong menciona que pedira do coreógrafo Yuen Woo-Ping que as sequências de kung fu fossem as mais realistas possíveis. Com efeito, não lhe imputava a necessidade de que uma luta cinematográfica se assemelhasse ao correlato real, mas sim um esforço de rarefação. Congruência; reter da luta o essencial, contra o excesso, o adorno ou o balé; contra o mitológico e acrobático que impregnou o gênero nos últimos anos. Simplificá-la até que se torne, em seu estado mais básico, aquilo que ela é ou representa. O que exatamente isto quer dizer?

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O combate físico é levado ao paroxismo de abandonar a esfera material e se aproximar de um movimento mental. Ou, como Pablo Gonçalo resumira, “um golpe físico é sublimado por um gesto do espírito”. As grandes vitórias do filme são vitórias do entendimento. Desferir golpes é pouco. Derrubar seu adversário é pouco. Vencer, em si mesmo, torna-se menos importante do que entender e dialogar. Podemos ver a distância que O Grande Mestre toma em relação a boa parte dos filmes de Bruce Lee, por exemplo, onde o herói é ressaltado justamente pela excelência de sua capacidade técnica; ou de um Herói (2002), no qual ser derrotado se apresenta de fato como uma escolha ética, mas que tem como intenção dar a volta no adversário e derrubá-lo pelo flanco.

O Grande Mestre é menos sobre vitórias e derrotas, e mais sobre o sentido “moderno” da arte marcial, na medida em que as experiências modernizantes da virada do século tornaram o seu antigo sentido bélico menos útil diante das metralhadoras e bombas de uma outra era. Como grande admirador de Kung Fu, Wong Kar-wai (que já tinha se lançado no gênero antes com os espadachins de Cinzas do Passado, em 1994), seu interesse pela arte marcial advêm dos movimentos que ela é capaz de gerar, de como ele modula no espaço-tempo e é friccionado contra outros elementos cênicos (gotas, escadas, ventos), expressando-se; como, os slow motions ou efeitos de luz, aparentemente simples platitudes de estilo, podem perceber esta espécie de dança; em suma, como um corpo se expressa e comunica alguma coisa sem precisar falar, sem precisar afetar os rumos da narrativa e definir nada, nada, além de si mesmo.

A ausência de uma determinação sobre a vitória e a derrota é, em certo sentido, uma ausência de determinação entre a consumação ou não de um relacionamento em Amor à Flor da Pele (2000). E, não à toa, a grande cena de amor de O Grande Mestre, justamente sua melhor cena, é uma cena de combate (aquela em que Gong Er exibe a Ip Man os 64 movimentos do Pa-Kuá) . O que importa é a conexão dos corpos, sua química e seus movimentos, mais do que aquilo que é produzido como desdobramento final. O exercício dramatúrgico da câmera não é regular, alimentar ou adornar o espetáculo que apresenta a potência do ganhador, mas entender essencialmente as palavras silenciosas que os corpos lançados naquelas condições têm a dizer. Nada além delas.

Por um conglomerado de núcleos distintos e tramas paralelas divergentes, recursos típicos do cinema de Wong Kar-wai, O Grande Mestre converge todas elas para a quintessência moral da obra: o lugar de Ip Man como observador e admirador da comunicação silenciosa que nasce dos corpos; o lugar do herói, alguém que, com tranquilidade e distância (mas nem por isso, desorientação política – lembremos que Ip Man não aceita a bandeira nipônica), retira deles consequências filosóficas; algo ao mesmo tempo edificante e globalizante – reúne estilos; agrega ao invés de segregar; dá continuidade a uma tradição que permuta o próprio sentido de sua existência, em contínua e eterna expansão.

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