O Bagre Africano de Alatéia, de Aline X e Gustavo Jardim (Brasil, 2014)

janeiro 30, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Juliano Gomes

bagre

Impotências do falso
por Juliano Gomes

O filme de Aline X e Gustavo Jardim começa imagens do céu, em preto e branco, numa janela que cobre toda a tela, com máscaras nas margens. Em seguida vemos uma sequência dessas mesmas imagens, na qual podemos perceber uma luta entre dois homens. Não é possível saber com clareza em que tempo aquela ação se passa ou se trata-se de um filme nos anos 20 ou 2000. Porém, uma impressão é concreta: a disposição das massas no quadro, o ritmo da montagem, as alterações de escala e luz nos planos, tudo isso indica um conflito. Mesmo sem haver uma unidade espacial (percebe-se que, no primeiro momento, os homens estão em lugares diferentes), a ficção aponta e constrói um conflito que, se não termina com a liquidação de um dos oponentes, aponta que algo se quebrou, se alterou e se afetou. A passagem de um plano a outro, assim como a pantomima e as expressões bastante marcadas dos atores, fazem deste pequeno trecho (que ao final do longa descobriremos ser o curta Omnipalia, filme de 2012, dos Irmãos Abreu) uma espécie de ensaio sobre o choque, sobre a representação e relação de forças contrárias.

É curioso que o filme que se segue a partir deste prólogo não consiga justamente exercer esse trabalho com os signos que evoca, no sentido de transformar sua matéria central, a imagem da caça ao bagre africano, em um encontro real, que comporte riscos. A imagem do Bagre é uma imagem híbrida, que se desdobra. É nessa operação de  desdobramento das imagens que o filme se concentra, nesse estado das trocas, das entradas e saídas (não por acaso, o filme parece ter pelo menos dois inícios, e um final que, com a aparição dos créditos, termina proporcionalmente longo pra sua duração total). O Bagre Africano é um mito local de Ataléia. Um mito, pela sua vida oral, tem, necessariamente, várias formas, se atualiza em cada corpo que lhe empresta vida. O que há de mais notável em O Bagre Africano de Ataléia é seu engajamento na produção dessas associações entre formas, alimentando-se da estrutura multiforme dessa imagem popular. Um cão na água torna-se um homem na água pelo corte seco, assim como bois em crianças, um pavão de plástico em uma mulher, ou uma silhueta de homem torna-se montanha. Um dos eixos aqui é uma busca de um regime não antropocêntrico de organização. Os homens são pequenos na escala, não são o centro do quadro. Na paisagem, são mínimos; nos closes, são linhas. Tal operação, ligada à insistente exposição de um bestiário particular que o filme exibe (além dos já citados: formigas, o bagre na água, o bagre como fantasia, tigres e peixes em ilustrações), dá o tom do estabelecimento dessa perspectiva cujo centro é variável, ou não exclusivamente humano.

É possível dizer que aqui há perspectivas (diversos planos atestam isso, como por exemplo, um overshoulder de um cão) mas não há centro. O perspectivismo é um ação de continuidade entre o animal e o humano. Portanto, a sua variação por si só, como garantia da constituição de um experiência real de trocas, faz faltar justamente a carne à caça. Os animais são todos homens, isso podemos perceber. Mas o que eles fazem? Qual é a ação que verdadeiramente os liga, pela qual se expressaria esse devir? É justamente esse o centro que falta ao filme e que ele insinua fazer aparecer por diversas vezes, principalmente na sequência de duelo (talvez a única que apresenta alguma parcela de contágio do prólogo Omnipala) em noite americana, que antecede o final estendido citado acima. A passagem do homem ao animal é tudo menos intelectual. Ela é patológica. O espaço dessa transformação é um corte necessariamente não seco. É no padecimento e no excesso (como os corpos do filme dos Irmãos Abreu) que vive essa região onde essa troca se dá, uma troca que precisa de movimento e imperfeição.

A fotografia que enfatiza a profundidade dos pretos e a reiteração de montagem com alterações bruscas de escala revela essa vontade de contraste, de diferença, que parece ficar nesse primeiro estágio da possibilidade de contraposição. Apresentam-se os pólos, mas o choque é evitado. A metamorfose é justamente esse estado do cinza, esta zona intermediária que resulta de uma mistura que se constrói, que estabelece bases e cumpre seu destino de desintegração e resto. O centro que falta à fauna do filme é justamente este preenchimento de paixão, de desmedida, que, pelo excesso ou pela escassez radical, gera as transformações, desde Ovídio. Uma sequência mostra uma espécie de caverna e explora a plasticidade de suas formas, sob um insistente ruído de gotas. Aos poucos, percebemos o irmanamento daquelas linhas aos contornos de seres vivos, o que culmina com uma imagem de dois buracos circulares cuja semelhança com um par de olhos é inescapável. Mas não é transformação que há aí; há uma ligação, que se dá num plano exterior, das ideias. Ao contrário da sequência mais pregnante de todo o filme (a maior candidata a ocupar esse lugar do centro que falta) que nos mostra uma manada de vacas, em noite americana, que olham pra nós, se aproximam lentamente e, subitamente, recuam. Essa coreografia se repete por algumas vezes e o resultado dessa alteração em ato – um plano descritivo da paisagem tornado uma ação ameaçadora em si, que apresenta internamente uma alteração de relação com o espectador que não é de ordem intelectual) – é uma sensação de ameaça que resulta como efeito de uma ato de encenação, uma força que vem de dentro. As vacas tornam-se, mantendo-se as mesmas, demônios, bagres ou extraterrestres de orelhas negras, em seu desejo que vemos se tornar medo, e causar, assim, contágio, pra dentro e fora do quadro. Finalmente, aí, algum regime se quebra, verificamos esse movimento, e a ficção de fato brota.

A ficção, afinal, é justamente este trabalho de organizar os signos de modo a causar a desintegração de seu encadeamento e de suas associações naturais. É a emergência dessa reserva de diferença dentro do mesmo (talvez uma definição do cinema de gênero), que, pela via da autodestruição, causa movimento e gera experiência. A habilidade das ligações do filme deixa a impressão clara de uma fuga do embate, em qualquer forma que ele tiver: do homem com o bagre, do pescador com o peixe, do caçador que se prepara com qualquer experiência de perigo. Se o bagre não toma forma aqui, é porque há um problema que é da ordem do corpo. Caçar é antes de tudo uma experiência do corpo em risco – seja o corpo próprio ou o da presa. É construir uma situação comum, espacial por exemplo, na qual, a partir desse estabelecimento, possa  ser criado um desnível entre as partes (um vê e o outro não, um ataca e o outro hesita, um acerta e o outro resvala) e uma delas triunfe, ou, no mínimo, que as duas se alterem, ganhando ou perdendo corpo. O corpo aqui é sem densidade, equivale a uma ilustração; é liso, sem aderência, pois sua pele é pura imagem, oca, cujo problema é não conseguir preenchimento, investimento contínuo, carne afinal.

Não é pela ideia de perigo – como, por exemplo, da navalha que perpassa a pele no corte de cabelo, ou pela trilha sonora que insinua um código de suspense durante a noite americana – que essa sensação se constrói. Só se esbarra, só se choca, o que tem massa, e densidade. A forma de ataque escolhida pela montagem acaba por preservar intactas as partes, em seu estado inicial. Entende-se seu parentesco, mas ele parece se dar de fato em outro lugar que não na nossa vista (portanto não em nosso corpo, capturado, como todo espectador), mas sim nesse fora. E, assim, a medida se mantém intocada, diante da promessa de transbordamento (não por acaso, a primeira imagem do filme é um céu sob bordas), de morte e catarse. A distância aqui não se transforma em impacto de choque, pois a opção é fugir mesmo do duelo, e permanecer à distância. Diante da possibilidade de luta, o filme escolhe dar nome ao cineasta do prólogo, mostrando o inverso do que insinuava: um nome que se liga a uma pessoa, uma relação de conservação dos corpos às palavras, dos nomes às ideias, diante da eminência da alteridade do encontro da caçador e do bagre. A timidez com que vemos o rosto deste protagonista oblíquo é a forma do recuo diante possibilidade de um hibridismo que se dê no corpo e nas matérias do mundo, e não no plano simbólico. O problema não é que o caçador tenha falhado diante da caça, mas a falta de ímpeto de colocar-se à prova o impediu de sair de sair de casa.

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