O Artista da Fome (Danjiki geinin), de Masao Adachi (Japão, 2016)

setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

* Cobertura do 5o Olhar de Cinema

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Auto-irreverência
por Victor Guimarães

“Nem o Humor nem a Poesia nem a Imaginação significam qualquer coisa se,
por uma destruição anárquica, produtora de uma prodigiosa
profusão de formas que serão todo o espetáculo,
não conseguem questionar organicamente o homem,
suas ideias sobre a realidade e seu lugar poético na realidade.”

Antonin Artaud, O Teatro da Crueldade (Primeiro Manifesto)

A trajetória e a obra de Masao Adachi têm vivenciado uma entusiástica retomada nos últimos anos, liderada pelos textos de Nicole Brenez e pelos filmes de Eric Baudelaire (The Anabasis of May and Fusako Shigenobu, Masao Adachi and 27 Years without Images, 2011; The Ugly One, 2013) e Philippe Grandrieux (Il se Peut que la Beauté Ait Renforcé Notre Résolution, 2012). Embora extremamente ricas e valiosas, essas obras tendem a enfatizar o compromisso de Adachi com uma arte ativista, ressaltando aspectos como sua vinculação ao exército vermelho japonês, seu exílio no Líbano, o tempo na prisão em Beirute e o encarceramento recente no próprio Japão. É justamente essa imagem de um artista engajado que está em questão logo nas primeiras imagens de O Artista da Fome, o esperado retorno do cineasta depois de mais uma década sem imagens.

Numa rápida sequência, uma voz over conta sobre o impacto das greves de fome empreendidas pelos artistas nos anos 1960, e se questiona sobre sua vigência no Japão ultramidiático contemporâneo. Mas se a reflexividade da investigação já impressiona – porque parece lançar luz, ainda que com muitas mediações ficcionais, sobre a própria trajetória de Adachi (ele próprio um performer no início daquela década mítica) –, o que mais surpreende é o tom: O Artista da Fome é uma farsa contagiante, anárquica, polimorfa, que parece mudar de registro a cada cinco minutos. Tudo se passa como se as grandes referências sessentistas da geração de Adachi (a mesma de Nagisa Oshima e Kōji Wakamatsu) fossem retomadas por um cineasta que combina a experiência de um velho rabugento – inquietado pela avassaladora mediatização da sociedade atual – e o despudor de um adolescente, que não dá a mínima para qualquer convenção do cinema contemporâneo e por isso pode chutar todos os baldes (inclusive – ou principalmente – o do bom gosto).

Inspirado pelo conto homônimo de Kafka, o filme se constrói como um diário da trajetória de um homem sem nome que decide passar seus dias sentado numa rua, sem comer e sem falar. Essa atitude inexplicável motiva toda sorte de especulação sobre as razões do ato (Religião? Protesto? Arte?) e atrai uma fauna prodigiosa de curiosos, malucos e exploradores de toda ordem: das Doctors With Borders (um grupo de médicas em trajes de sex shop) aos mafiosos de ocasião, com suas camisas florais; de monges budistas que se põem a rezar diariamente em frente ao rapaz a um jovem artista suicida que se sente curado pelo gesto; de colegiais em busca de selfies sensuais com o sujeito até capitalistas do mercado de arte, que desejam vender a performance a todo custo. A cada tanto, o veio principal da narrativa é interrompido por inúmeras esquetes assombrosamente variadas, que vão de uma reimaginação em cores de O Enforcamento (Oshima, 1968) a uma paródia de uma emissão do Estado Islâmico, passando por uma montagem de fotografias de catástrofes humanitárias recentes. Tons, intensidades dramáticas, texturas da imagem, estilos de atuação e de montagem, tudo varia nessa profusão de formas em que a única constante é a anarquia.

Embora a jornada silenciosa do rapaz desconhecido constitua um arco dramático relativamente estável, o filme não cessa de se transformar em direções inesperadas a cada nova intervenção dos personagens circundantes. Mesmo o espírito satírico, que contamina boa parte do material, se vê confrontado com tonalidades diametralmente opostas, como numa sequência de estupro triplo que reenvia a Wakamatsu. Aqui, a face mais poderosa dos pinku eiga – aquela em que emerge com força o teatro da crueldade artaudiano – é temperada por uma artificialidade que desnaturaliza a violência da cena (despindo-a de toda obscenidade) e a empurra para um outro registro. O momento após o estupro é ao mesmo tempo brutal – a garota revela que já passou por isso várias vezes, como se descrevesse um processo burocrático kafkiano (a violência já se tornou parte do sistema) – e estranhamente afetuoso, pois coincide com a descoberta do amor entre ela e o ex-suicida, que agora lhe lambe as feridas nos pulsos.

O espectro de sensações é de uma elasticidade impressionante, do riso desbragado (como não gargalhar frente à entrada abrupta em campo de um grupo de samurais mambembes cuja única divisa é “Vamos morrer!”?) ao embrulho no estômago diante da banalidade do mal. Embora veloz como um assalto, a montagem é inteligente e habilidosa o bastante para encontrar o ritmo justo para que cada clima possa existir plenamente na tela. A aventura do espectador vai da estupefação ao maravilhamento, do incômodo ao nonsense, mas o que predomina é esse riso amarelo, contrariado, que emerge diante da constatação renitente de que todo aquele absurdo não é nada menos do que o retrato fiel dessa sociedade na qual nos acostumamos a viver todos os dias.

O retorno de Adachi é o palco da maior das irreverências: aquela de um artista a si mesmo. O Artista da Fome se tinge de desconfiança em relação à potência do gesto artístico num mundo em que a publicidade já se tornou uma segunda pele, mas sua maior virtude – como a de toda arte crítica – é a de encontrar, mesmo em meio aos maiores obstáculos, novas maneiras de nos fazer estranhar o real. E não há nada mais estranho do que um filme no qual o único gesto de amor consiste em uma transa entre uma sobrevivente de estupro e um cadáver.

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