O Aquário e a Nação (L’Aquarium et la Nation), de Jean-Marie Straub (Suiça/França, 2015)

setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

* Cobertura do 5o Olhar de Cinema

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Didática straubiana
por Victor Guimarães

A primeira imagem poderia nos fazer duvidar de que se trata mesmo de um Straub: em silêncio, um aquário com jeito de arte contemporânea, com seus peixes alaranjados a traçar rotas suaves na água. No fundo do quadro, para além do vidro baço, uma rua qualquer de Paris. Aquário sobre aquário. Até que entra a música e o território straubiano recente vibra com força, uma vez mais. Se, em La Madre (2012), o longo prólogo musical (uma ária inteira de Mahler) se dava com a tela negra, neste primeiro movimento a banda sonora anima os peixes que parecem dançar. Mas a dança é estranha, uma coreografia de autômatos encarcerados. Enquanto isso, uma respiração humana parece se insinuar, ofegante, por entre os silêncios da música (digo “parece” porque é um ruído muito sutil, que mal se desprende do som da sala de cinema, e pode ser que eu esteja ouvindo demais).

O segundo movimento é uma leitura, como em quase todo o Straub dos últimos anos. Dessa vez, um texto de André Malraux, que começa por perguntar: O que é um homem? O que nos faz crer que há uma constância do humano a despeito de todas as diferenças – culturais, históricas, religiosas – que separam as sociedades? Sentado em uma cadeira em uma sala frugal, tendo à frente algumas folhas de papel e um microfone, o homem de camisa vermelha (Aimé Agnel) continua o recitativo suave, com variações tonais menos intensas que o habitual. Saem de cena as árvores e o vento que compunham as paisagens de Um Herdeiro (2010), Diálogo de Sombras (2013) e Um Conto de Michel de Montaigne (2013). Ou melhor: as árvores são relegadas ao fundo do quadro, no jardim que se adivinha lá fora. Já não venta. Uma sala é também um aquário.

O texto versa sobre as civilizações cósmicas antigas, nas quais cosmos e humanidade estavam de tal modo coadunados que era impossível estabelecer uma separação. Tanto quanto “entre nós e os nossos micróbios”. Um rei era também a lua. Não uma encarnação da lua, não um emissário do divino, mas ao mesmo tempo o rei e a própria lua. Na Melanésia, os missionários tentaram, sem sucesso, explicar aos nativos que o sexo era responsável pelo nascimento das crianças. Mas como, se nem todas as mulheres davam à luz? A estrutura mental desses homens e mulheres simplesmente não reconhece a figura da paternidade (nem a do Estado, acrescentaria Pierre Clastres). Por isso a ideia segundo a qual um Pai enviou seu Filho para redimir os homens é logicamente inadmissível.

Tudo muda nas civilizações que experimentaram o advento da religião. Não é ela que produz o laço, mas justamente o que funda a separação entre o mundo divino e o mundo humano (daí a refutação etimológica do termo latino religare presente também no Agamben das Profanações). Malraux narra uma descoberta no museu do Cairo: as múmias egípcias não conservam a alma eterna; produzem um duplo do corpo destinado a perseverar no tempo, por isso a riqueza dos detalhes. A invenção religiosa da alma eterna é o fundamento da civilização ocidental, com seus túmulos austeros. É então que a leitura cessa, o homem se levanta da cadeira e uma voz feminina pergunta do fora-de-campo: e a nós? Senão a conexão com o cosmos, o que é que define nosso horizonte de pensamento? “Talvez a nação”, responde ele.

No terceiro movimento, a sala desaparece e a tela se renova com a entrada abrupta da sequência da tomada do forte n’A Marselhesa de Jean Renoir (1938). Se À Propos de Venise (2014) terminava com um plano da Crônica de Anna Magdalena Bach (Huillet-Straub, 1968), aqui é também o cinema que vem para ressignificar todo o resto. No filme de Renoir, um soldado derrotado pela revolução manifesta sua incompreensão: que palavras são essas, “nação”, “cidadão”? Uma revolução começa justamente com um dissenso inegociável. Eis o cerne do desentendimento: não o conflito entre aquele que diz “república” e aquele que diz “monarquia”, mas entre aquele que diz “república” e aquele que diz “república” mas não entende de modo algum o que o outro quer dizer com a mesma palavra.

Mas a gênese da nação é também o atestado de um futuro de desastre. As paredes do aquário são feitas de bombas e a água é sangue. Se o cinema de Renoir ainda podia encantar-se com a alegria dos revolucionários (A Marselhesa) e sonhar com uma Europa reconciliada (a Marselhesa de A Grande Ilusão, 1937), o de Straub só pode trabalhar no interior de uma potência de não: o tiro de Não Reconciliados (1965), a mão aberta do filho no sexto diálogo de Da Nuvem à Resistência (1979). Seus curtas recentes continuam sendo, a despeito de todos os esforços contínuos dos jovens cineastas, o mais valioso corpo de pensamento fílmico em torno dessa redoma de vidro hermeticamente fechada – e avessa a perturbações – que é a Europa contemporânea. O “sangue impuro” da Marselhesa nunca foi tão evidentemente xenófobo.

Do cinétract Europa 2005 27 Octobre (2006) a este O Aquário e a Nação, passando por Chacais e Árabes (2011), Straub tem encontrado, a cada nova fricção com um texto, uma música, um filme, maneiras singulares de relançar a questão da irreconciliação. Os elementos são basicamente os mesmos, mas a combinação é sempre surpreendente. Aqui, a montagem – materialista, como sempre – justapõe três blocos assombrosamente heterogêneos, e o trabalho do espectador consiste em encontrar as conexões por conta própria. A pedagogia straubiana talvez nunca tenha sido tão didática quanto neste novo filme, mas um aquário é também o mais improvável dos túmulos para o olho, e não há melhor maneira de ser verdadeiramente contemporâneo do que ser anacrônico.

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