Ni Le Ciel Ni La Terre, de Clément Cogitore (França/Bélgica, 2015); Valley of Love, de Guillaume Nicloux (França/Bélgica, 2015)

maio 24, 2015 em Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

Cobertura do Festival de Cannes 2015

Clément Cogitore

Ni Le Ciel Ni La Terre (2015), Clément Cogitore

Contatos imediatos
por Eduardo Valente (colaboração especial)

Talvez a mais antiga querela sobre a natureza do cinema venha de uma qualidade bastante paradoxal, pois embora ele se preste enormemente para representar, como nenhuma outra arte, as coisas concretas do mundo, sua particular capacidade de manipulação dessa concretude (via montagem, mas também via som, e cada vez mais via efeitos) o torna igualmente uma ferramenta das mais adequadas para criar a sensação do contato com outros mundos que não esse onde vivemos o nosso dia a dia, por assim dizer, “terreno”.

Nesse sentido, algumas narrativas cinematográficas se revelam especialmente interessantes por tentar explorar ambos os caminhos simultaneamente. É o caso de Ni Le Ciel Ni La Terre, longa de estreia do francês Clément Cogitore, exibido na Semana da Crítica, filme particularmente impressionante pelo tamanho de algumas de suas ambições, vindo de um estreante. A primeira delas é a de se imiscuir no terreno da ocupação do Afeganistão por forças estrangeiras, assunto que geralmente associamos aos EUA, mas que, como Cogitore nos lembra, afeta também, por exemplo, os franceses. Cogitore nos posiciona dentro de dois espaços fixos (uma base do exército francês e um posto de observação avançado), e na sua relação com dois outros espaços vizinhos: a imensidão de montanhas hostis (pois atrás de cada rocha – ou até, na verdade, em cada rocha – pode estar a morte) e uma vila afegã próxima da base (onde se deve estabelecer relações com os poderes locais, sabendo-se que, por melhor que se faça o seu trabalho, ainda assim eles te odeiam).

Se a guerra no cinema sempre foi campo de batalha adequado para colocar o ser humano em contato com seus medos mais profundos a partir da banalidade de ações físicas, o filme parte dessa situação-limite, que já não é pouca coisa de tentar capturar, e coloca seus soldados em contato com outras questões menos obviamente ligadas ao gênero, como a fé e a irrupção do sobrenatural. Se é adequado lembrar do Malick de Além da Linha Vermelha, Cogitore, por outro lado não se limita a ser um emulador daquele estilo, pois incorpora uma série de outros registros e ideias, que com certeza fazem pensar em outros filmes importantes do cinema moderno com a guerra (Redacted, Apocalypse Now, Nascido para Matar), mas até por sua mistura, terminam num registro bastante único e arriscado. Entre o misticismo, o relato de camaradagem, a insanidade, o filme de terror, Ni Le Ciel Ni La Terre consegue passear sem perder o interesse em nenhum momento, recolocando o espaço da guerra contemporânea menos na perspectiva da “luta de civilizações” e muito mais na do confronto eterno do Homem com a sua pequeneza na Terra.

Valley of Love (2015), Guillaume Nicloux

Valley of Love (2015), Guillaume Nicloux

Excluindo-se o tema da guerra, não são tão diferentes as ambições de Valley of Love, também filme francês passado em terras estrangeiras, também na imensidão do deserto – só que, curiosamente, no Death Valley, da California americana. Aqui, o caminho talvez seja inverso em termos de narrativa: movidos por uma missão em si mística (partir ao encontro do filho recentemente morto, que enviou cartas aos pais dando coordenadas para que se encontrassem naquele local), será a partir da fisicalidade do contato com a terra, mas também com o outro (que embora não seja estrangeiro – pelo contrário, tem a intimidade de um ex-cônjuge – talvez esteja ainda mais distante). O problema é que Guillaume Nicloux, o diretor, se arma de dois monumentos do cinema (Gerard Depardieu e Isabelle Huppert), frente a uma paisagem igualmente monumental, e parece acreditar que isso basta. Às vezes (poucas), sim, e algo surge entre os corpos, e o espaço, que é realmente da ordem do poderoso. No entanto, a falta de disposição em propor algo a partir desses corpos, para além de diálogos um tanto reiterativos e fracos e as já esperadas deambulações com steadycam e música quase drone, faz com que o filme patine e disperse suas possibilidades em promessas mal cumpridas. Ou, para ficar no campo do que propõe o filme, o encontro com o sobrenatural (no caso, pela via estética), termina frustrado.

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