Motorway (Che Sau), de Pou-Soi Cheang (Hong Kong, 2012); e Universal Soldier: Day of Reckoning, de John Hyams (EUA, 2012)

março 11, 2013 em Em Vista, Filipe Furtado

A existência melancólica dos fantasmas
por Filipe Furtado

Duas sequências favoritas em dois filmes de ação do ano passado:

– Um plano subjetivo de cerca de cinco minutos de um homem que é acordado no meio da noite pela filha a reclamar de que há “monstros na casa”. Ele começa a checar cômodo por cômodo para acalmá-la, até encontrar um grupo de encapuzados na cozinha, que procede primeiro em espancá-lo, e depois traz esposa e filha para executá-las na sua frente;

– Uma série de carros de polícia corta um estacionamento mal iluminado e enevoado a procurar lentamente por outro veiculo. Uma luz finalmente acende num dos cantos da tela e um veiculo branco sai à caça do primeiro carro, emboscando-o e desaparecendo de novo. Os outros carros são forçados então a despistá-lo e recomeçar o processo de procura novamente.

Nenhuma destas duas sequências sugere em especial um filme de ação. Pelo contrário, a primeira se aproxima muito de uma reversão da cena de abertura do Halloween, de John Carpenter, e a segunda flerta de forma aberta com a lógica de um terror slasher como o próprio Halloween, sua tensão surgindo do bom mapeamento do espaço e da ideia de que o perigo pode surgir de qualquer canto da tela, a qualquer momento. Ambas as sequências são excitantes, mas dominadas pelo sentimento de que há “monstros na casa”, uma ideia que a principio não se esperaria encontrar num thriller de ação.

A despeito deste sentimento compartilhado, na superfície não poderiam ser filmes mais diferentes. A primeira sequência é a abertura de Day of Reckoning, o último volume para o mercado de home vídeo da série Soldado Universal (seu quarto ou sexto filme, dependendo de se contar ou não um par de filmes para TV no fim dos anos 1990). A segunda vem de Motorway, filme de ação dirigido por Soi Cheang e mais recente lançamento da Milkyway Image, produtora de Johnnie To, praticamente uma franquia em si mesma, e, para os padrões locais, uma superprodução com expectativas bem diferentes das de Day of Reckoning. Ambos, porém partem da mesma angustia e necessidade de encaminhar seu material em uma direção que rompa com o ideal contemporâneo do filme de ação: são filmes movidos pelo mesmo sentimento de achar uma vida ressonante em meio à reciclagem. O horror em Day of Reckoning parte justamente da sua existência como material dispensável; já em Motorway, ele surge como uma última tentativa de inserir vida numa série de arquétipos já mais do que minados pelas centenas de produções anteriores que o filme vampiriza.

No papel, poucos gêneros cinematográficos deveriam ser tão imunes ao desgaste quanto o filme de ação, baseado como ele é muito menos na narrativa do que numa apresentação criativa e em boas soluções de encenação. Não é bem assim, porém, que as coisas se dão, num universo em que tanto a produção americana como o consumo cult (que termina por sustentar de alguma forma o cinema de ação de outros centros) é dominado pela preocupação com narrativa e uma certeza de que tudo que se vê inevitavelmente é uma variação surrada de algo que já se consumiu antes. Há, claro, exceções pontuais, mas com muita frequência se está diante de um filme como Os Mercenários 2 (com o qual Day of Reckoning divide boa parte do seu elenco), mais que satisfeito em se sustentar sobre uma série de gracejos fetichistas, ou The Raid: Redemption, que combina uma das melhores coreografias já colocadas num filme com uma falta de imaginação tão grande que a única ideia que sobra ao diretor Gareth Evans é super-complicar a trama de um filme cuja força está justamente na simplicidade. O apelo de Day of Reckoning e Motorway reside muito em como seu hibridismo lhes permite romper com esta bolha auto-consciente. Para isso, seus movimentos são opostos: um reconstrói como pesadelo lynchiano uma franquia esquecida; o outro é tão dedicado a reduzir tudo ao essencial que o filme de perseguição de carros quase abandona qualquer gesto humano e se torna pura coleção de máquinas em movimento.

Motorway

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Escrevi anteriormente aqui na Cinética sobre os filmes de Soi Cheang, mas Motorway sugere um filme da Milkyway Image muito mais do que seu trabalho anterior para produtora, Accident. É o “filme de perseguição de carro da Milkyway”, primeiro, e um filme de Soi Cheang depois. Fundada por Johnnie To em 1997, com o plano de permitir que ele realizasse suas ideias em parceria com uma série de realizadores mais jovens (sobretudo Wai Ka-Fai, que logo se tornaria o principal roteirista da casa, e cujo olhar irônico e gosto pelos grandes conceitos serviria sempre de contraste com a abordagem direta de To, e a tensão entre eles seria responsável por muito da força criativa desses filmes), a Milkyway Image se destaca, para além da boa e variada qualidade da sua produção (entre 3 a 4 filmes por ano), por uma crença num formato de realização contínua em que um filme segue a outro com basicamente o mesmo grupo de técnicos, atores e escritores (a lógica de produção em série na Milkyway é tal que seus filmes às vezes creditam “grupo de ideias da Milkyway”, no lugar de roteiristas individuais). Cheang é um raro caso de não diretor “da casa” a trabalhar na Milkyway, cujos filmes não dirigidos por To costumam vir de nomes que foram desenvolvidos internamente, como Law Wing-cheong, e se Accident existia numa tensão constante entre sua produção anterior e o estilo da produtora, Motorway não esconde sua posição como mais um thriller da Milkyway Image.

O toque particular de Cheang surge justamente na maneira como Motorway migra de ser um “filme de perseguição de carro” para uma espécie de filme de carro assassino. Gastou-se quase dois anos entre as filmagens e o lançamento do filme, e, neste meio tempo, Cheang estirpou dele toda e qualquer gordura, construção de personagens ou grandes surpresas, para torná-lo um muito compacto filme de 89 minutos em que uma série de elementos familiares (como o parceiro veterano sábio à beira da aposentadoria, vivido por Anthony Wong) existem exclusivamente em função das cenas entre os carros.  Trata-se de um raro filme de perseguição em que a ênfase se desloca de velocidade para habilidade dos motoristas, e o efeito disso é que boa parte do prazer em assisti-lo reside em observar seus dois carros principais negociarem sua passagem por uma série de locações muito bem escolhidas (à sua maneira, não é muito diferente do que torna o grande prêmio de Mônaco um evento aguardado pelos fãs de Formula 1). É um raro exemplar do gênero que toma o bom conhecimento das suas locações como essencial para seus motoristas, e em que se tem a certeza o tempo todo que todos ali estão muito acostumados a dirigir por cada uma daquelas ruas. Seus atores principais (Wong, Shawn Yue, Gao Xiao-Dong) são pouco mais que avatares descartáveis em meio à série de vias expressas, vielas e corredores de estacionamento mal iluminados que seus carros cortam. A ênfase nas maquinas cria o interessante efeito de tornar cada close de reação dos seus atores/motoristas especialmente satisfatório. Seu confronto final, não por acidente, se dá não pela velocidade, mas pela força da carcaça dos seus carros principais trocando batidas até um deles parar, entregue como um lutador nocauteado.

Day of Reckoning

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John Hyams estreou na direção de ficção (após um par de documentários esportivos bem recebidos) três anos atrás, com Regeneration, o episódio anterior da série Soldado Universal, um filme B surpreendentemente forte que combinava cenas de ação físicas filmadas com clareza e exatidão com um inesperado tom melancólico. Hyams localizava o que havia de Frankenstein na gênese do filme original (soldados mortos em combate reanimados pelo exército como máquinas, com função de executar tarefas que outros soldados não podem) e a presença em cena dos dois astros do filme original (Jean Claude Van Damme e Dolph Lundgren) quase duas décadas depois tirava dali um por vezes tocante filme sobre corpos cansados, reanimados sempre que mais violência se revela necessária. As sequências com Lundgren, um ator muito subestimado, são especialmente fortes neste sentido, dotadas de uma auto-consciência assombrada, mas desprovida do sentimentalismo da nostalgia da qual um filme como Os Mercenários não consegue se aproximar.

Após um segundo trabalho curioso, mas bastante irregular – uma variação de Yojimbo chamada Dragon Eyes, que mantinha uma boa atenção para lugar e o mesmo teor melancólico que transpassava o anterior – Hyams retoma muitas das mesmas premissas, mas com uma apresentação muito mais ambiciosa. Todo o clima de danação que entrecorta Day of Reckoning – seus pontuais detalhes estranhos; sua câmera intrusiva que frequentemente parece seguir o protagonista Scott Adkins à distância; suas infusões de violência dotadas de um gore incomum no gênero e o apego a uma lógica narrativa subjetiva que, desde o plano inicial, cola o espectador à experiência subjetiva do protagonista desmemoriado, sempre a figura menos informada em cena – contribui para o mesmo retrato do pesadelo do personagem descartável.

Day of Reckoning nos oferece Adkins como o perfeito personagem do filme de ação em 2012: nascido (após 9 meses!) no segundo volume, somente dotado de suficiente história pregressa para mover seus atos (a sequência inicial é uma conveniente memória de família feliz), e sempre num movimento contínuo e funcional, temos a certeza de que ele só pode existir porque a ação assim quer. Ajuda, nesta sensação, a presença de Adkins, um excelente lutador que vem protagonizando filmes de ação realizados direto para vídeo pela última meia década, mas que não traz consigo as mesmas associações de seus co-protagonistas mais famosos, confinados às margens da ação (Van Damme, em particular, surge como uma quase sombra elusiva, parte Mabuse, parte Coronel Kurtz). Adkins existe como uma figura em branco que o espectador pode preencher aos poucos, enquanto sua posição como personagem descartável ganha foco. A sequência de ação mais memorável do filme – um quebra pau numa loja de produtos esportivos entre Adkins e o lutador de MMA Andrei Arlovski, espécie de origem de super-herói em miniatura que é um primor de construção dramática através de ação – é tornada mais rica pelo teor incômodo de cada injeção de irrealismo de Hyams. Quanto mais próximo de um supersoldado a figura de Adkins se revela, mais melancólico por consequência o filme se torna.

Depois, Day of Reckoning faz um movimento bastante curioso: após estabelecer aquilo que nós sempre soubemos – que seu protagonista é literalmente um personagem de cinema criado para completar uma trama –, o filme se distancia ainda mais das suas origens de filme de ação e abraça a sua lógica de pesadelo, com Adkins cada vez mais psicótico, passeando por uma série de espaços claustrofóbicos e artificiais numa espécie de retorno perturbador ao útero. Cada novo personagem que ele encontra é auto-consciente da sua posição finita numa narrativa maior (e, suspeita-se, igualmente conscientes que, vivos ou mortos, estarão todos disponíveis para a próxima sequência), como uma série de figuras intercambiáveis se agarrando como podem ao que têm de próprio, como a presença de Lundgren, com seu rosto ao mesmo tempo genérico e marcante, outra vez especialmente memorável. Hyamns não lhe da muito que fazer desta vez, mas ele só precisa ser, ali.  Numa das várias assembleias de supersoldados presididas por Lundgren, se diz “vivemos entre eles como fantasmas”, e esta não deixa de ser a moral de Day of Reckoning, que abre e fecha com imagens nucleares de família (a garotinha a acordar os pais e mais tarde ela a brincar com a mãe, na única outra memória que ele tem delas), mas desloca-as de forma que, quando retomada no final, tal imagem signifique pouco mais que a entrega à pura psicose, perturbadora no seu abraço de uma normalidade falsa que se sabe “de cinema”. Cada personagem foi devidamente esvaziado, se tornou puro fantasma. Estão prontos para cumprir sua função até seu número ser chamado novamente dali a poucas cenas – ou, quem sabe, na próxima sequência.

Não é uma lógica tão diferente do arco dramático de Motoway, com sua trama rotineira do jovem cabeça quente a aprender uma lição devidamente massacrada pelo espetáculo dos seus carros (o Nissan 89 branco que os vilões do filme dirigem registra de longe como sua figura mais memorável). Basta contrastá-lo com um filme como Drive, que se atira sobre seus igualmente genéricos personagens e reviravoltas na crença que, ao inflá-los de uma lógica de mito do cinema, vai imbuí-los de um significado que não conseguem ter por si mesmos. Motorway e Day of Reckoning, pelo contrário, têm a certeza que o que podem encontrar de expressivo está no espetáculo físico da sua ação. Não por coincidência, são filmes orgulhosamente analógicos: as sequências de perseguição de Motoway não incluem nenhum auxilio de computadores para torná-las mais excitantes, e as lutas de Day of Reckoning se concentram na graça dos movimentos dos seus atores principais, todos lutadores habilidosos, sem precisar usar de truques de montagem para esconder que dublês estão ali os substituindo. Tanto as inflexões de pesadelo lynchiano de Hyams como os truques carpenterianos de Cheang deságuam no mesmo impacto, seja de corpos seja de metal; o teor descartável das suas figuras é redimido não porque elas se associam a outra tantas figuras da história do cinema (a saída habitual encontrada seja por um batedor de ponto grosseirão, como Simon West, ou por um pretenso artista, como Nicolas Winding Refn), mas pela disposição dos filmes de abraçar a existência delas. (Como digressão, não deixa de ser curioso observar que ambos os filmes são assombrados por um similar sentimento de ascensão social: Motorway, via assimilação no maquinário da Milkyway; Day of Reckoning, na certeza de que o relativo sucesso de Regeneration comprou ao seu realizador um cheque em branco no novo filme).

De certa forma, tanto Motorway como Day of Reckoning se aproximam menos dos seus pares do cinema de ação recente do que de um filme como Holy Motors, de Leos Carax. Denis Lavant a interpretar seus múltiplos personagens não está assim muito distante dos carros de Motoway e seus avatares humanos, ou de Adkins e os outros supersoldados em Day of Reckoning. São máscaras cansadas, assombradas, cada uma a sua maneira, num mundo virtual. Mesmo Motorway, o único entre eles a abraçar uma narrativa mais tradicional, lhe investe de tamanho desdém que seu triunfo final não pode escapar de soar completamente vazio. Todos, cada um a sua maneira, apontam para sua própria existência pós-humana, com sua ênfase em máquinas e seus zumbis esvaziados a repetir, de forma expressiva, tarefas que temos certeza já exerceram muitas vezes antes. Faz sentido que tanto Motorway como Day of Reckoning flertem tão abertamente com o cinema de horror. São filmes assombrados: por todo o cinema, pela sua própria insignificância e pela mesma necessidade de continuar. A existência melancólica dos fantasmas precisa sempre ter sequência; haverá outros personagens, outras situações¸outras reciclagens e a mesma luta para afirmar ali um sentido próprio para cada um deles.

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