Monte Hellman, o mecânico

setembro 1, 2016 em Em Pauta, Victor Guimarães

A Besta da Caverna Assombrada (1959)

A Besta da Caverna Assombrada (1959)

por Victor Guimarães

Embora frequentemente associada à Nova Hollywood, a trajetória de Monte Hellman concilia dois traços frequentemente antagônicos que o diferenciam da maioria de seus companheiros de geração: o de ter sido sempre, mesmo nos filmes mais “livres”, um director-for-hire (até mesmo seu último longa, Caminho para o Nada (Road to Nowhere), de 2010, realizado após um hiato de duas décadas e recheado de referências autobiográficas, começou com uma ideia do roteirista Steven Gaydos); e o de ter resistido bravamente, mesmo nos projetos mais “comerciais”, a ser incorporado à engrenagem formal da indústria mainstream. Não obstante tenha embarcado ao longo da carreira em encomendas das mais díspares – de um filme de guerra low budget realizado nas Filipinas (Guerrilheiros do Pacífico [Back Door to Hell, 1964]) a uma adaptação de um romance marítimo filmada na ilha de Lanzarote (Iguana – A Fera do Mar, 1988) –, – mesmo que isso lhe custasse o sacrifício de não filmar por décadas inteiras – e nunca se deixou vitimar por essa lamentável servidão voluntária traduzida em diluição estilística que acomete, já há algum tempo, cineastas como Spielberg e Scorsese. Quando vista em sua inteireza, a filmografia de Monte Hellman obriga o crítico a uma tarefa instigante: como encontrar uma constância autoral em filmes tão distintos, seja em termos de gênero, seja de modos de produção (do filme B de monstros à Corman ao western modernista, do road movie independente à franquia de slasher)?

Há um emblema capaz de condensar tanto o modus operandi de Hellman quanto uma dimensão formal estruturante de sua obra: trata-se da imagem do extraordinário mecânico de Corrida sem Fim (Two-Lane Blacktop, 1971), que constrói peça por peça uma máquina de corrida a partir da carcaça de um Chevy 55, capaz de competir de igual para igual com um GTO novinho em folha. Seu método de trabalho combina duas características muitas vezes tidas como inconciliáveis: o espírito pragmático – marca de alguns dos maiores diretores estadunidenses até os anos 1960, que transitavam entre gêneros distintos, dirigiam por encomenda e tinham um jogo de cintura incomparável na lida com os estúdios – e a liberdade de criação – que seria a tônica dos cineastas da Hollywood pós-Nouvelle Vague, centrados na figura do autor, atentos ao cinema europeu (Hellman é um admirador de primeira hora de Jacques Rivette) e partidários militantes da independência formal.

Dennis Wilson em Corrida sem Fim (1971)

Dennis Wilson em Corrida sem Fim (1971)

Como o personagem interpretado pelo baterista dos Beach Boys, que constrói a partir do nada uma obra de gênio e está sempre a postos para trocar uma peça do carburador, Hellman fez conviver a ambição artística (começou a fazer cinema quando conheceu Roger Corman em uma montagem de Esperando Godot por sua companhia de teatro) e um imenso conhecimento prático, capaz de operar em situações de invariável restrição orçamentária e enorme variabilidade conjuntural (além de ter filmado em diversas condições e geografias, Hellman trabalhou com produtoras e equipes muito diferentes, à exceção de alguns atores que o acompanharam por certo tempo, como Jack Nicholson, Harry Dean Stanton, Millie Perkins, Laurie Bird, Fabio Testi e, sobretudo, o enorme Warren Oates). Toda a sua carreira encarna o espírito dos melhores cineastas da Poverty Row: fazer das dificuldades de produção uma plataforma para a invenção formal. Não por acaso, um dos filmes mais próximos de Corrida sem Fim é A Curva do Destino (Detour, 1945), de Edgar G. Ulmer (filmado em seis dias, com orçamento restrito, esse extraordinário road movie faz do flashback uma maneira extremamente poderosa de transformar as restrições em liberdade imaginativa). O próprio Hellman – em entrevista a Kent Jones – recorda uma anedota elucidativa: para conseguir o dinheiro para Corrida Sem Fim, ele se viu tentado a mostrar aos produtores que havia 24 ângulos possíveis para se filmar o interior de um carro. Embora encarne alguns valores centrais da modernidade europeia – o gosto pelos planos longos, o trabalho com o silêncio, a rarefação narrativa –, sua destreza é profundamente americana, pragmática, como a de um mecânico “gambiarreiro” que transforma uma lata velha em uma máquina de competição.

Por outro lado, o pensamento formal que se desenvolve na filmografia de Hellman também possui uma relação estrita com a mecânica. Embora críticos como João Lameira tenham adotado o termo “metafísico” para definir o western hellmaniano, seu cinema está mais próximo do de grandes cineastas materialistas como Cassavetes e Huillet-Straub. Trata-se de um diretor extremamente físico, obsessivamente interessado em filmar o movimento dos corpos no espaço e as forças que o produzem. Assim como não são casuais os vários títulos que indicam deslocamento – Flight to Fury, Ride in the Whirlwind, Two-Lane Blacktop, Road to Nowhere –, não é nenhum acaso que logo na abertura de quase todos os filmes o espectador seja instalado a bordo de um veículo em movimento: os automóveis de A Besta da Caverna Assombrada e Corrida Sem Fim, o bote que abriga os soldados de Guerrilheiros do Pacífico, a diligência assaltada em A Vingança de um Pistoleiro, o trailer onde vive o protagonista de Galo de Briga, o navio pirata de Iguana, a carroceria do riquixá que percorre as ruas de uma cidade filipina em Flight to Fury (1964) e o lombo do cavalo que revela a placa-título de A Volta do Pistoleiro (China 9, Liberty 37, 1978) – produzindo de saída uma sensação muito própria de errância e vertigem que acompanhará a experiência espectatorial ao longo de todo o filme.

Abertura de Guerrilheiros do Pacífico (1964)

Abertura de Guerrilheiros do Pacífico (1964)

Plano inicial de Flight to Fury (1964)

Plano inicial de Flight to Fury (1964)

Plano inicial de A Volta do Pistoleiro (1978)

Plano inicial de A Volta do Pistoleiro (1978)

Ainda na abertura de A Vingança de um Pistoleiro, a montagem conjuga vários planos de uma diligência em movimento. A câmera se detém sobre a trepidação da madeira, o fluxo dificultoso das rodas sobre o terreno pedregoso, a agitação veloz dos cavalos. Em toda a obra de Hellman – esse grande poeta do torque – os motores e a tração animal são onipresentes e adquirem uma potência visual e sonora muito peculiar (pensemos no barulho incessante dos automóveis de Corrida sem Fim ou na plasticidade dos cavalos em disparada no crepúsculo de Disparo para Matar). Mas essa ubiquidade figurativa das forças de tração revela também uma obsessão mais profunda pela mecânica dos corpos: em Galo de Briga, o funcionamento físico dos galos em plena luta mortífera é objeto central de interesse da mise-en-scène – a decupagem de cada briga é singularmente primorosa – e da montagem, que encontra nas experiências com a câmera lenta uma exuberância digna das pioneiras experiências de Muybridge com os cavalos; em A Volta do Pistoleiro, num raríssimo episódio da história iconográfica do western, a virilidade de Fabio Testi é intensamente filmada – pernas, bunda, costas – e eroticamente ressaltada (não apenas via plano detalhe, mas inclusive através de uma trilha sonora que poderia facilmente embalar um soft porn) desde o início do filme, bem antes do encontro com a mulher, e atinge sua máxima potência na sequência do banho de rio, fulcro do espetáculo da nudez.

A Volta do Pistoleiro (1978)

A Volta do Pistoleiro (1978)

Nos primeiros minutos de A Besta da Caverna Assombrada, o longa de estreia de Hellman na direção, um homem tira uma fotografia e é acompanhado pela câmera (aparentemente instalada no capô) até o interior de um carro. Em movimentos rápidos, ele entrega o material para o parceiro e o automóvel se põe em marcha até uma estação de esqui. Em planos alternados, o fotógrafo produz novas imagens que aparecem como fotogramas congelados pela montagem. Ao final do prólogo – imediatamente antes do aparecimento do título –, um plano revela, com desconcertante frontalidade, o mecanismo circular de uma estação do teleférico que percorre a montanha, com sua engrenagem em pleno funcionamento. Essa imagem – filmada a partir de um ponto de vista bastante externo à cena – pareceria uma sobra de montagem, não fosse sua capacidade de prefigurar narrativamente o filme – que se converterá em uma jornada persecutória rumo ao desconhecido – e seu impressionante poder de disparar inúmeras ressonâncias visuais: o redemoinho, a moenda, o mecanismo interno de uma câmera de cinema. Poucas vezes um conjunto inaugural de imagens foi capaz de condensar de forma tão sintética as obsessões figurativas da obra de um cineasta. Em certa medida, toda a mecânica hellmaniana está prefigurada nesses poucos planos, curiosamente enxertados posteriormente ao corte original de A Besta da Caverna Assombrada, quando Corman encomenda uma versão mais longa, para cinema, filmados três anos depois do resto do filme.

Besta da Caverna Assombrada (1961)

Besta da Caverna Assombrada (1959)

Comecemos pela jornada. Quase todos os filmes de Hellman encenam um percurso, que ocupa boa parte da duração do filme – quando não o filme inteiro – e concentra o conflito narrativo: a fuga dos ladrões da mina – travestida de passeio de esqui – em A Besta da Caverna Assombrada; a tentativa de escapar da selva – que se revela uma competição pelos diamantes – após a queda do avião em Flight to Fury; a fuga dos vaqueiros em A Vingança de um Pistoleiro; o caminho através do deserto em Disparo para Matar; a corrida que dispara os fluxos imprevisíveis em Corrida sem Fim; a caçada ao casal fugitivo em A Volta do Pistoleiro; a ida para a casa da avó em Noite do Silêncio; as filmagens do filme dentro do filme em Caminho para o Nada. Essa trajetória pode ser organizada do início ao fim em torno de um objetivo claro – uma missão militar, como em Guerrilheiros do Pacífico, uma fuga bem sucedida, como em tantos outros filmes – ou pode partir de um escopo inicial e se converter em pura errância, em deambulação literal e física – os deslocamentos que preenchem os enquadramentos de Corrida sem Fim – ou em deriva narrativa sem destino certo – a mise en abyme de Caminho para o Nada. Mais ou menos errante, o percurso é fulcral: é a partir dele que as relações entre os personagens se desenvolvem – casais se esboçam e evaporam (frequentemente em torno da ação autônoma de uma única mulher forte e independente em meio a um grupo de homens, como em A Besta…, Flight to Fury, Corrida sem Fim, Disparo para Matar, A Volta do Pistoleiro Caminho para o Nada) –, contratos são firmados e logo pulverizados – a corrida que se torna quase um pretexto diante dos múltiplos desvios em Corrida sem Fim, a perseguição que se converte em extraordinária jornada dantesca em Disparo para Matar. Embora haja um arco narrativo primeiro, em praticamente todos os filmes é a figura do deslocamento incessante que adquire centralidade, contamina toda a economia visual e narrativa do filme e termina por definir o singular estilo hellmaniano.

Disparo para Matar (1966)

Disparo para Matar (1966)

Mas antes de se ater às forças e aos movimentos dos corpos, é preciso limpar o terreno e remover o entulho da tradição. No arco que vai do primeiro filme até A Volta do Pistoleiro, a pulsão pela ruptura de Hellman adquire diferentes facetas. Em primeiro lugar, há uma tendência forte à subtração dos antecedentes biográficos dos personagens, que está presente desde os primeiros filmes (sabemos quase nada sobre o passado dos criminosos de A Besta da Caverna Assombrada ou sobre os soldados de Guerrilheiros do Pacífico) e atinge o paroxismo nos monólogos de GTO em Corrida sem Fim: a cada novo passageiro no banco do carona, uma nova narrativa de si, até o extraordinário golpe derradeiro que consiste no furto da biografia de seus oponentes na corrida. De forma correlata, Hellman tende a atenuar drasticamente a dimensão psicológica da dramaturgia (“It don’t matter who you are or what you’ve done for’em. You get in their way and they’re gonna move you”, diz o personagem de Warren Oates em A Volta do Pistoleiro), o que frequentemente se converte em impossibilidade de adesão por parte do espectador: para quem torcer entre os postulantes aos diamantes de Flight to Fury? No triângulo amoroso de A Volta do Pistoleiro, como antever as decisões dos personagens? Outra ruptura notável é o apagamento da dimensão trágica mesmo no gênero onde ela é mais requisitada: em A Vingança de um Pistoleiro, essa comédia de erros sob a forma de um western austero, o que move toda a narrativa não é outra coisa senão o puro acaso, que converte os protagonistas em fugitivos de uma hora para outra. A contestação da tradição se materializa, ainda, na diminuição radical do papel da moralidade como condutora das atitudes (no “deserto de almas também desertas” que é Disparo para Matar, não há espaço para qualquer heroísmo). Todos esses gestos tratam da negação, em última instância, do poder da palavra – um dos alicerces do legado do romance burguês no cinema de Hollywood –, que alcança o extremo da literalidade na mudez voluntária do protagonista de Galo de Briga (novamente Warren Oates, que faz dessa condição uma das maiores performances corporais de um ator na história do cinema), mas que já estava presente sob forma cristalina em Corrida sem Fim (“a logorréia de GTO é também um equivalente do silêncio”, escreveu Pascal Bonitzer).

Ao longo da carreira, a pecha de intelectual foi muitas vezes atribuída a Hellman, a ponto de se tornar um fardo (ele era “europeu demais” para o gosto de muitos produtores americanos), mas o que seu cinema encampa é uma dissolução brutal do reinado do logos. Essa devoção ímpar ao movimento dos corpos – humanos e não humanos, animais e maquínicos – no espaço, em detrimento da palavra, rende as mais belas proezas formais da obra hellmaniana. Em Galo de Briga, o mutismo do protagonista converte o corpo de Warren Oates numa sorte de escultura movente, que se relaciona com o mundo sob uma forma puramente gestual, dando ensejo a uma composição repleta de partituras físicas que capturam nossa atenção durante todo o filme. Essa musicalidade singular dos corpos atinge seu ápice na mise en scène das brigas de galo: os close-ups vertiginosos – o corpo do animal convertido em massa de cor – , o ralenti e a pulsação rítmica da montagem tornam especialmente pertinente a aproximação feita por Kent Jones com a action painting. Os olhos, as penas, a crista, as esporas adquirem uma rara centralidade visual, e seu intenso movimento – potência inalienável do cinema – é forjado em pleno engajamento visceral numa batalha de morte.

cockfighter2 cockfighter1

Uma explicação possível para esse paradoxo pode ser encontrada em outro aspecto fundamental da mecânica hellmaniana: o intenso magnetismo que, a cada obra, atrai os corpos uns aos outros e contamina toda a energia do filme (tornando-o irresistivelmente atraente para os olhos, os ouvidos e todo o corpo do espectador). Em Disparo para Matar, qualquer explicação razoável para a decisão de Willet Gashade (Warren Oates) de seguir a jovem mulher interpretada por Millie Perkins tomba diante do inevitável magnetismo físico exercido pela travessia do deserto, que atrai o protagonista como um redemoinho (e leva junto o espectador). Em Noite do Silêncio (1989), por mais que existam explicações dramatúrgicas para a força de atração exercida pelo assassino sobre a mocinha – a ligação telepática, o par arquetípico bela/fera –, também é de física que se trata, como no belíssimo plano em que o enquadramento começa por instaurar Laura no centro da sala da avó, com um olhar misterioso, como se sentisse algo, e começa a se mover para o lado, até captar o movimento brusco que atrai violentamente o corpo da jovem para o vidro da janela onde se encontra o serial killer.

Mesmo num filme como Iguana, que destoa claramente da obra anterior – na atenção detida aos diálogos, na restrição espacial (o isolamento na ilha deserta produz quase um filme de câmara), na redução da importância da ação (até esse momento, todos os filmes de Hellman são fundamentalmente filmes de ação) e na ambição filosófica (o rompimento com a religião; o estabelecimento de um estado de exceção onde a força é a única lei soberana) –, é o magnetismo inevitável entre os corpos que produz o plano mais desconcertantemente belo: ocupando o centro do quadro, o rosto da mocinha – que fora raptada, violentada e tornada escrava sexual pelo insólito ditador – se contorce entre a dor e o prazer e termina por ceder diante do orgasmo irresistível. Não se trata de gozar com o horror, mas de obrigar o espectador a um verdadeiro tour de force moral, que dinamita as bases de nossa relação prévia com aquele mundo. Mesmo no momento em que a câmera de Hellman nos coloca em um território tão desconcertante, mesmo nesse empilhamento exasperante de ressonâncias mitológicas, são as forças de atração – obviamente, sempre filmadas a partir dos efeitos exercidos sobre os corpos – que ocupam o centro de atenção da mise-en-scène.

iguana1

Iguana (1988)

Cada filme de Hellman instaura um campo magnético singular, cuja existência quase palpável é fruto do trabalho de encenação. Quantas vezes durante o filme os quatro personagens de Corrida sem Fim – e também seus automóveis – se movem uns em direção aos outros no quadro, como se guiados por uma estranha força de atração, sem nenhuma motivação clara? Em Disparo para Matar, o deserto inteiro parece imantado, como se as figuras humanas fossem irremediavelmente atraídas pelo espaço exterior. Embora sempre emolduradas por traços dramatúrgicos mais convencionais – que garantem seu funcionamento como cinema de gênero –, as trajetórias dos corpos muitas vezes adquirem um aspecto puramente cinético. Em texto publicado em 1968 nos Cahiers du Cinéma sobre A Vingança de um Pistoleiro e Disparo para Matar, Sébastien Roulet escreve que os personagens “percorrem um traçado, frequentemente uma direção, onde as pulsões não são jamais justificadas – formuladas por motivações, morais ou outras. Os personagens, essas figuras de sombra que eles desenham, vão não se sabe aonde, vêm não se sabe de onde, param não se sabe por que”. É como se o diretor realizasse uma depuração radical de cada gênero a que se dedica, reduzindo ao máximo os ingredientes psicológicos e morais e transformando os filmes num palco para os movimentos puramente físicos das figuras humanas, dos veículos e dos projéteis na paisagem.

Se é de forças que se trata, é impressionante perceber a que o espaço exerce sobre os corpos. A importância da paisagem – que Kent Jones associa brilhantemente a um leitmotiv de toda a arte estadunidense dos anos 1970 – já é perceptível desde os primeiros filmes. Como todo bom mecânico, Hellman tem plena consciência da importância do terreno (para a dramaturgia) e da relevância dos diferentes níveis de atrito para a energia cinética (dos filmes). Por mais que haja planos em que o jogo com o cenário produz uma beleza absolutamente inesquecível (como aquele dos quatro cavalos em direção ao poente em Disparo para Matar), não há nenhum fetiche da imagem-cartão-postal. Tampouco se trata de oferecer uma mera “cor local” ao drama em tela (muito embora Hellman seja frequentemente elogiado – com toda a razão – pela devoção obsessiva à especificidade dos lugares e à autenticidade dos sotaques). Nem hipertrofia da paisagem, nem espacialização do humano: personagens e lugares tecem relações complexas, adquirindo frequentemente um estatuto de equivalência narrativa. As montanhas geladas de A Besta da Caverna Assombrada – cuja brancura impele ao desaparecimento e influencia o clima de mistério –, a selva tropical e os rios dos filmes filipinos – que oferecem obstáculos ao percurso dos personagens –, as praias pedregosas de Sombras do Terror e de Iguana – cujo potencial de isolamento é central para ambas as narrativas –, o cenário desértico dos westerns sessentistas – que atrai os corpos como areia movediça e penetra os rostos dos atores até se confundir com eles –, as estradas vicinais de Corrida Sem Fim – que injetam fluxo no filme –, todos esses espaços ganham uma preponderância que atravessa decisivamente a dramaturgia – os lugares são hierarquicamente tão relevantes quanto os personagens centrais – e adquirem uma importância material no plano que é equivalente à da presença dos atores. As paisagens ora exercem uma irresistível força centrípeta – o deserto que aprisiona em Disparo para Matar, a ilha de Iguana – ora se transformam em palco de uma errância centrífuga, como nas trajetórias desviantes de Corrida Sem Fim.

E se o prólogo de A Besta da Caverna Assombrada era profético, nenhum título é tão definidor de uma obra quanto o do último filme dirigido por Monte Hellman, Caminho para o Nada. É aqui que a promessa figurativa contida na engrenagem do teleférico – com sua sugestão de um mecanismo que terminará por triturar os corpos – ganha sua forma mais bem acabada. Com a exceção do singularíssimo desfecho esperançoso de Galo de Briga (filme de todo muito especial, com sua vivacidade alegre em meio a um cenário de morte diária), todos os filmes de Hellman desenham um traçado rumo à dissolução, estradas em direção ao nada: a caverna da besta que atrai os personagens para a morte no primeiro filme; o duelo ao sol que termina por dizimar os adversários após toda a cavalgada pelo inferno em Disparo para Matar; a derradeira “corrida sem fim” do filme homônimo; o desfecho mortífero de Caminho para o Nada.

A Besta da Caverna Assombrada (1958)

A Besta da Caverna Assombrada (1959)

Corrida sem Fim (1971)

Corrida sem Fim (1971)

shooting2

Disparo para Matar (1966)

road1

Caminho para o Nada (2011)

Mas o que ganha corpo no arco dramático é ainda mais intenso na forma dos filmes de Hellman. O que move o estilo hellmaniano é, sem dúvida, um motor a combustão. Essa vibração incandescente que tende ao desaparecimento, sem que este nunca se processe por completo (vemos as chamas e seus efeitos, mas nunca as cinzas) não apenas ganha forma na imagem mais emblemática de sua carreira – a queima da película ao final de Corrida sem Fim –, mas já estava presente desde o inacreditável plano de uma pá em chamas que incide diretamente sobre o olho do espectador em A Besta da Caverna Assombrada. A dissolução por combustão em Hellman é da ordem do figural: nos fotogramas de contornos imprecisos que encerram Disparo para Matar, o calor do deserto não consome apenas o destino dos personagens, mas termina por esquartejar o movimento e corroer a textura da própria imagem; nos créditos finais de Caminho para o Nada (filme em que o digital adquire uma importância fundante), o lentíssimo zoom derradeiro sobre o quadro na parede termina por transformar o rosto da star em uma massa disforme de pixels. Eis, finalmente, o cinema segundo Monte Hellman: o movimento incessante de uma chama tão intensa que, em sua incandescência imparável, atinge a carne das imagens.

Share Button