Miss Violence (Miss Violence), de Alexandros Avranas (Grécia, 2013)

novembro 12, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Paulo Santos Lima

missviolence

O olho do mal
por Paulo Santos Lima

Leni Riefenstahl fez filmes de encomenda para o 3º Reich, prestando um poderoso serviço aos nazistas. Mas é discutível que esses filmes alinhavam-se com os olhos de Hitler e dos mentores do nazismo. Triunfo da Vontade (1935) e Olympia (1938) nada tinham a ver com um O Judeu Süss (Veit Harlan, 1940) ou quaisquer outros trabalhos didáticos que equiparavam judeus ao mal. Inegável, a contribuição de Riefenstahl é condenável, mas não aqueles filmes. Ou melhor, o antes (a diretora a serviço do regime) e as decorrências conseguem estar à parte dos filmes em si, quase como se estes fossem aproveitados pelo discurso do Reich (e não fossem a própria voz do Reich). A questão, então, é mesmo a de o olhar do filme estar junto ou não ao mal. Nada a ver relacionar esse mal com o que está em Miss Violence, pois o nazismo do 3º Reich, por ser o pior mal que o ser humano provou ser capaz de cometer, é quase incomparável. Mas Riefenstahl pode ser posta em perspectiva para iluminar melhor o problema moral que há no longa do grego Alexandros Avranas.

Em Miss Violence, Philippos é o patriarca numa família que teve uma perda recente, o suicídio de uma garota de 11 anos. Os personagens parecem intuir o motivo, mas nada é falado e a rígida rotina imposta pelo homem mantém-se imutável. Não apenas o espectador, mas gente de fora da família, como os policiais, confundem-se achando que Philippos é marido da filha mais velha, que é mãe da falecida e de mais outros dois filhos. Esta também é irmã de uma mais jovem, de 16 anos. Philippos e a esposa parecem pais, mas são também avós. Perversamente confuso, inclusive porque o filme vai liberando os esclarecimentos aos poucos. Intui-se que a suicida tenha se matado por conta da repressão do avô, e uma cena na metade do filme repassa isso: o neto foi indisciplinado na escola e o avô ordena que a irmã dele o esbofeteie, no meio da sala. O teatro da agressão, presente em todo o filme, ganha aqui destaque conceitual, e evidencia uma perversidade que está também no filme, em sua instância narradora, pois a câmera vai rodear as duas crianças no meio da sala, durante bastante tempo, fazendo da sessão de tabefes um grande espetáculo da violência.

Mais tarde, a vovó aparece cheia de roxos no corpo. Philippos bate na esposa. Bate, faz os outros baterem-se, proíbe que a filha mais nova namore e mantém sua tirania através do dinheiro. Após esses indicativos, já bastante desagradáveis (reprimir e tocar o terror são violências graves), surge a revelação: Philippos explora sexualmente sua família, fazendo e também fornecendo sexo a pagantes. A cena é grotesca, com a filha de 16 anos sendo praticamente currada por homens bizarros, que lhe desferem tapas na bunda, e em sexo sequencial terminado com o do próprio pai. Philippos, assim, é descoberto como pai, amante, avô e macho de todas as fêmeas da casa. É nessa terminologia baixa que fica possível discutir esse longa, que rendeu indicação a melhor direção no Festival de Veneza, pois, claro, o júri caiu na habilidade charlatã de Avranas.

Mas a abjeção ainda não se consuma até a conclusão, que mostra a neta que deve ter uns 9 ou 10 anos sendo oferecida por Philippos para um amigo seu. Ela, ingenuamente, dança para o interessado, da mesma forma que dançou meia hora atrás no filme, na sua casa, e a família toda sorri pelo jeito gracioso com o qual ela dança. A escolha é perversa, como se o filme quisesse nos ludibriar e nos fazer aceitar como possível e natural a lógica daquela família. Com isso, o longa de Avranas se coloca no direito de expor qualquer situação indecorosa. Não expõe para criticar ou colocar em xeque os personagens, a sociedade ou o espectador – Michael Haneke faz isso soberbamente em Caché –, mas porque o filme, Philippos e Alexandros Avranas são a mesma entidade.

Miss Violence mostra aquilo que Philippos vê, e com o mesmo sentido, a mesma moral e a mesma intenção. O contexto delega o sentido, e mostrar uma criança dançando ingenuamente em casa para depois recolocá-la em situação semelhante, mas já sob outra leitura, num contexto que pretende sexualizá-la, é uma escolha moral infame. Tão condenável quanto o olhar do filme estar alinhado a um verme como Philippos, inclusive forjando um falso distanciamento para amplificar e devassar melhor o miserê do espírito humano que ocorre naquele lar. Nada a ver com o nazismo. Menos ainda com Leni Riefenstahl, pois o olhar da diretora (seus filmes de encomenda) não era exatamente o de Adolf Hitler. Miss Violence tem a ver com o mal, um mal lamentável e ainda mais corriqueiro, que é o da má direção e da falta de escrúpulos nessa empreitada.

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