Meteora (Meteora), de Spiros Stathoulopoulos (Grécia/Alemanha/França, 2012)

novembro 12, 2013 em Colaborações especiais, Em Campo, Paulo Santos Lima

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O céu da terra
por Paulo Santos Lima

Meteora, um raro feito geográfico sobre o qual repousa, num dos cumes de sua “floresta de montanhas”, um complexo de mosteiros que é das mais valiosas representações do cristianismo oriental. As construções parecem extensões naturais daquela topografia, que no cair do dia é aureolada por uma massa de nuvens, como se tudo estivesse suspenso no ar, flutuando acima dos mortais, e sugerindo assim uma situação celestial, espaço litúrgico que só pode ser fruto de uma criação divina e caligrafada por Deus. O sublinhado etéreo, o acesso difícil, a imponência, enfim, tudo isso faz de Meteora uma paisagem intocável e derradeira, e por isso sagrada.

Meteora, o filme de Spiros Stathoulopoulos, em síntese, corrompe esse capitular ao pôr tudo isso em movimento, revelando vida neste monumento através do romance entre um monge e uma freira. Dinamizar, interferir, essas forças típicas de cinema e que marcam presença literal neste filme estão anunciadas já na primeira imagem, com as velas iluminando três tábuas, três ícones: o do homem, a da mulher e o do lugar. Alguns detalhes: os amantes estão separados pela tábua do lugar; este, por sua vez, tem Deus no topo, gerenciando e sendo a lei desse espaço. Entre este primeiro plano e o último, que também volta a esse altar com as três tábuas, haverá mudanças através da consumação física do amor proibido e, este sim uma transgressão, da profanação desses ícones. Profanação por desarmar a escritura, inclusive entrosando-a com o mundo material. Meteora jamais se esquece de Meteora, no que esta possui de mais terreno e mais divino.

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O filme ocorre, digamos, nos planos da realização e da simbolização, do físico e do espiritual, do mundo real e do iconográfico. Não são universos em separado, mas sim correspondentes, mas ambos firmados no plano material. Mostra-se o mundo físico onde vivem o monge Theodoros (Theo Alexander) e a freira Urania (Tamila Koulieva-Karantinaki). Veremos o abate dum cabrito que servirá para o banquete que Theodoros prepara para um piquenique no qual, finalmente, ele beijará a sua belíssima e desejada Urania. Saberemos, mais à frente, a paixão do monge quando ele pede para um agricultor cantar uma canção de amor. A culpa de Urania não é verbalizada e tampouco explorada; ela se dá no simples recurso que ela encontra para se penalizar, maltratando a mão na chama da vela.

É um cinema bastante físico, no qual o natural simplesmente acontece, evidenciado na vegetação que se mescla às rochas, na corda do elevador içado a muque na roldana que leva e traz as freiras ao monastério, nas velas que iluminam debilmente os interiores, no nevoeiro, na luz. Esta última, inclusive, confirma uma lógica bastante física (da Física mesmo) que orienta a o registro no plano real de Meteora. O sol dará vocabulário para os amantes comunicarem-se à distância, por reflexo desviado ao quarto do outro. Essa substância quase palpável, tátil mesmo, que determina a energia vital, animal, genética, primeira, quase de primeiro momento dos seres pós-criação do mundo, surge linda na tela, livre de embaraços, de travas morais. O sexo de Urania, mostrado em primeiríssimo plano na tela, com seus pêlos pubianos, sua mão tocando-o, ela se masturbando nos momentos antecedentes à consumação desse amor, quando ela e Theodoros finalmente juntam, nus, seus corpos no sexo, é o plano mais belo e mais sintético do filme: o mundo é essa matéria linda e orgânica que pode ser detectada pelos olhos-câmera. Dele se percebe a beleza, o divino, o pathos transcendental, e a dimensão idealizada dessa ligação entre matérias (o amor) é nada mais que pura ação, jamais uma inscrição.

Enquanto ocorre esse plano real e material, mostrado quase num registro observacional no qual tudo responde ao corpo dos seres e das coisas, há o plano simbólico funcionando como pormenor moral e relativo ao escrito, ao organizando como narrativa. Não é uma narrativa à parte, pois Sthatoloupoulos faz questão de entrosar os dois canais. Nas tábulas, há a representação que, em movimento, torna-se um desenho (animado) que oferece as decorrências simbólicas, inclusive bem leais à iconografia cristã. Inferno, perdição, o martírio de Cristo, a expiação, isso tudo está representado junto aos desenhos de Theodoros e Urania, como uma segunda camada que representa ideal e moralmente as ações do casal – um exemplo está na animação que aparece antes da cena de sexo, com um cordão que interliga as duas torres e o monge seguindo em direção à amante.

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O entrosamento desses dois meios não gera contradição, e sim uma confirmação sobre a natureza dessas representações. Nem é tão transgressivo animar os ícones; muito mais é corromper a iconografia para colocá-la junto ao mundo terreno, inclusive dentro da materialidade narrativa deste filme que conta uma história de amor proibido. Ambas as frentes, no caso, indicam uma consumação. A tábua submete-se àquilo que ela pretende controlar e regrar, presta serviço a ele e miscigena-se à substância natural, tornando-se uma correspondência. Isso não fere o caráter sagrado que há na realidade concreta filmada por Spiros Sthatoloupolos, diretor que já no outro longa, PVC-1 (2007), demonstrava uma relação religiosa, de total encontro imersivo, com o assunto filmado. Não é mais olhar para a tábula, no alto, mas se voltar à terra e agir regradamente. É tirar as pranchas do altar e descobrir uma relação que parte do chão, do mundo, para aí olhar para o alto. Deus está representado nessas iguarias naturais, no cabrito abatido, nos cães, nas pedras usadas na construção dos mosteiros, na barba de Theodoros, na pele alva de Urania, nas torres escondidas pelo nevoeiro, pela luz branca que sugere uma outra dimensão e que confirma que o sagrado é decorrente da natureza. A transcendência está na vida, no beijo, no toque e no engate físico do sexo, no gosto da comida, na música de uma flauta, no olhar de Theodoros, no sorriso de Urania, na Meteora da Grécia central Terra e na Meteora do cinema.

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