Mary is Happy, Mary is Happy, de Nawapol Thamrongrattanarit (Tailândia, 2013)

junho 6, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

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Apropriação indébita
por Victor Guimarães

A tarefa imposta a si mesmo por Nawapol Thamrongrattanarit é um ponto de partida interessante: narrar os últimos meses do ensino médio de uma garota a partir de 410 tweets consecutivos de uma adolescente tailandesa. O dispositivo é enunciado em uma cartela inicial, e logo encontra uma tradução formal que será mantida ao longo de todo o filme: Mary is Happy, Mary is Happy será inteiramente constituído por uma sucessão veloz de planos curtos, intercalados por cartelas que emulam a interface do Twitter, permeadas pelo som das teclas de um computador. Apesar de bastante homogênea, a estrutura formal tem algumas variações nas relações entre som, imagem e texto: ora as cartelas invadem o quadro, ora o ruído das teclas silencia, ora se limitam a imagens e sons diegéticos.

Embora o fluxo próprio dos tweets traga consigo uma alta dose de aleatoriedade – afinal, o desejo de postar algo é quase sempre assentado no presente e não vislumbra uma narrativa maior –, o filme possui um arco dramático muito claro: trata-se de um rito de passagem típico, expresso na trajetória de uma menina prestes a terminar o colégio e que experimenta pela primeira vez o peso das tragédias da vida adulta. Nesse sentido, o conteúdo dos textos não é seguido estruturalmente à risca: não há um plano para cada tweet, e sim um jogo constante entre as frases e essa narrativa fílmica linear que acompanhamos. Ora o movimento é de ilustração (vem uma cartela e então um plano para oferecer as imagens e sons que “faltavam”), ora de comentário (a frase explicita, analisa, narra, ironiza ação encenada), ora de constituição de um clima e de uma subjetividade (há textos que não se relacionam diretamente com nenhuma imagem, mas adensam a compreensão da protagonista).

Se o dispositivo tem seu interesse, a experiência de acompanhar sua consecução no tempo do filme beira o insuportável. A mimetização da lógica da Internet no cinema e a tentativa de figurar uma sensibilidade adolescente contemporânea resultam em uma espectatorialidade constantemente bombardeada por cortes abruptos, comentários textuais de uma obviedade gritante e acordes de uma música irritantemente doce que contamina todas as sequências. Embora seja um filme melhor, a sensação é de que Mary is Happy, Mary is Happy é um primo adolescente de Medianeras (2011), de Gustavo Taretto, longa que também buscava emular certa experiência virtual de nossos dias e resultava em um romance inofensivo regado a litros de graciosidade indie. Ainda que o tom seja bem humorado e irônico em diversos momentos, há uma estética da fofura que o filme abraça sem problematizar e que termina por bloquear qualquer conflito interno ou modulação expressiva. A aderência total à fórmula autoimposta se converte em uma camisa de força que aprisiona tudo o que poderia haver de potente na relação entre aqueles corpos e o espaço filmado.

No limite, a homogeneidade quase absoluta do olhar torna as imagens intercambiáveis: assim como os mais diversos tweets são abrigados sem distinção (passamos de uma reflexão sobre a vida e a morte a uma birra adolescente, de “meu coração é grande o suficiente para o mundo?” a “não tem arroz hoje”), não há diferença entre buscar a hora mágica para conseguir a melhor foto e presenciar a morte da melhor amiga. Embora a narrativa busque figurar essa perda (assim como o amor não correspondido do rapaz) como um evento dramático importante, a encenação não comporta a diferença, não distingue formalmente entre uma situação e outra. A melancolia do fim da adolescência, a dor de cotovelo, o luto, tudo precisa ser empacotado na mesma embalagem inócua.

A aproximação a uma fluidez contemporânea – frequentemente associada à volatilidade da adolescência – empurra o filme para o diálogo um tanto paradoxal com certo “cinema de fluxo”: embora a narrativa seja linear (o que, a princípio, seria o contrário do fluxo), o filme praticamente abole a ideia de mise en scène. O empilhamento incessante de planos sem duração dinamita não apenas a crença na organização expressiva de cada imagem, mas a própria experiência do espaço e do tempo cinematográficos: se não há constituição de uma cena e prolongamento no tempo, não há plano; se nenhuma imagem dura, nenhuma dói. Por outro lado, o acúmulo homogêneo de momentos não é capaz de produzir um fluxo sensorial potente, uma vez que a dependência do texto, a linearidade da intriga e a interrupção constante provocada pela interferência das cartelas bloqueiam a flutuação livre do espectador. O fluxo, aqui, é apenas um ponto de partida que não se transforma em filme; um cacoete que se torna ausência de expressividade.

Quando o filme abraça decididamente a sátira – num diálogo forte com certa tradição japonesa de humor, que perpassa o cinema e os quadrinhos –, há algum alívio: o celular que insiste em explodir nos ouvidos da protagonista, a banda que aparece subitamente no fundo do plano, o figurino que insiste em não mudar, os funcionários da escola fascista que têm ares de Battle Royale (2000), de Kinji Fukasaku. No entanto, além de esses momentos pertencerem ao mesmo manancial de velocidade e indistinção (o que lhes retira muito do brilho possível), logo em seguida há uma retomada da tentativa de identificação com a protagonista – que é, no fundo, o principal problema do filme. Embora busque, desde a primeira cartela, apropriar-se criativamente de uma sensibilidade adolescente, só o que o filme consegue é lançar – inadvertidamente – um olhar clínico e distanciado sobre ela. A procura por transformar a filosofia barata dos tweets de Mary em potência cinematográfica esbarra numa parede de superioridade e velhice: há sempre uma involuntária queda em direção ao ridículo, que bloqueia qualquer aproximação real. Trata-se de um problema semelhante àquele que arruína The Bling Ring (2013), de Sofia Coppola: habitando um meio termo confuso entre a crônica e a farsa, entre a adesão e a ironia, o filme não é apenas indeciso, mas insuficiente em ambas às direções. Para estar à altura da adolescência, é preciso descer do pedestal.

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