Maps to the Stars, de David Cronenberg (Canadá/EUA, 2014)

maio 27, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

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O umbigo de Hollywood
por Pablo Gonçalo

Como em seus outros filmes, em Maps to the Stars David Cronenberg mostra um veludo de normalidade, de um cotidiano comum, quase banal, para flagrar o estranho, o perverso, o absurdo e uma esfera do proibido ou do interdito. Todo o retrato realista acessa uma bizarra camada, sobrenatural, como se entre essas duas instâncias a diferença não fosse apenas tênue, mas mesmo, pelo cinema e pela dramaturgia, imperceptível. Em Maps to the Stars, esse veludo insere o espectador na equidistância de duas famílias que se regozijam entre o sucesso de filmes e séries de TV em uma Hollywood prenhe de fantasmas e espectros. A epiderme da normalidade, sua superfície, tem tons metálicos – já presentes em Cosmópolis (2012) – e reluzentes, que, no entanto, escamoteiam um fervor rubro e uma fúria vulcânica que, ao fim e ao cabo, explodirá de um forma natural.

Nessa geografia de vaidades inflamáveis, o bom roteiro de Bruce Wagner narra os sucessos e infortúnios de Benjie (Evan Bird), pop star mirim de uma série de TV que, aos 13 anos de idade, já faturou centenas de milhões de dólares. No topo e no auge, ele gerencia sua imagem e sua carreira com seu pai, Dr. Stafford Weiss (John Cusack), e sua mãe (Carrie Fischer). Benjie representa estrelas fixas e consolidadas, enquanto, do lado oposto, o filme retrata personagens comuns, ou mesmo medíocres, que almejam a uma ascensão. Agatha Weiss (Mia Wassikovska) chega a Hollywood num ônibus comum e em seguida entra em uma limousine conduzida por Jerome (Robert Pattison), que, sintomaticamente, é um motorista com um desejo um tanto vago de se inserir em Hollywood como roteirista, e que faz algumas pontas como figurante em filmes ali rodados. No meio dessas duas cosmologias – de sucesso e de desejo um tanto insano por sucesso – Cronenberg e Wagner ainda retratam a trajetória de Havana Segrand  (Juliane  Moore). Ela é uma atriz velha, um tanto histérica, medíocre e desesperada, que vive uma trajetória descendente, e que quer, de toda forma, interpretar o mesmo papel no remake de um filme que sua mãe, décadas antes, atuou, e pelo qual se tornou­ célebre.

Nessa equação de personagens interessantes, Maps to the Stars acaba por retratar o mundo fútil e podre que circunda a profissão dos atores. Não há novidade, já que esse é um mote recorrente em diversos filmes contemporâneos (Somewhere, de Sofia Coppola, por exemplo, para ficar apenas no menos citado). Contudo, a principal novidade do argumento está no recorte desses atores, já que eles são sempre duplos, estão entre o fantasma dos pais –reconhecidos e “eternizados” – e o espectro do presente, frente aos personagens que encarnam, seja para  o  filme,  seja  para  a  indústria  cinematográfica. Esses fantasmas são revelados em microscópicos jogos de campo e contracampo, pelos quais o rosto do outro é sempre a face de si, borrando a diferença visível e sensível entre gerações. Nesse circo de heranças malditas, o cinismo transforma-­se tanto na única saída possível – que paradoxalmente, é labiríntica – quanto na ruína do ego de cada um desses indivíduos. Essa duplicação – dos traumas e da atuação – cria uma clivagem e um fosso entre os personagens e os indivíduos, uma tênue corda­ bamba sobre um abismo de fogo.

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É nesse fosso que Cronenberg filma, de um lado, meninos prodígios, autoritários e loucos, e, num  contraponto, mostra uma  atriz velha, cujo corpo precisaria, urgentemente, ser  escondido sob reparos inúteis, mas necessários. Assim, Cronenberg não enfatiza apenas a incrível dificuldade de Hollywood lidar com a velhice; como se o velho e o ancião estivessem desnudados de beleza. Mais: ele mostra a idiotia de um circo propriamente infantil, e de uma máscara que, quando velha, gera uma angústia exponencial, num grito de morte tão agudo que solicita um afeto vampiresco ou uma mãozinha de Mefisto. Esse dilema é melhor traduzido na relação entre Ágatha e Havana, entre o sangue de uma menina na flor da idade, e o de uma senhora que flerta com a menopausa. No entanto, pelos olhos de Cronenberg, o sangue jorra e pulsa para além dos corpos que, contaminados uns pelos outros, não suportam mais qualquer contato.

Maps to the Stars realça, sobretudo, essa impossibilidade de troca entre as duas famílias, entre dois indivíduos. Não há mais abertura e nem um espaço comum. Hollywood transformou­-se numa ilha cercada por fogo por todos os lados e cujas casas – e tão nobres e estelares famílias – estão sempre em  chamas. É nessa ilha inabitável que Ágatha revela alguns dos dilemas mais interessantes do filme. Ela é uma insider, mas também não faz mais parte, pois agiu como uma loser; ela conhece os códigos, mas foi expulsa por enfrentar um tabu necessário, e não pode jogar o jogo dessas intangíveis constelações. Numa determinada cena, ela ajoelha­-se frente a uma das estrelas na calçada da fama e faz reverência, repetindo um bordão que encarna o sucesso. Ágatha representa o cerne dessa ilha: um local onde a auto­-referência é murada pela auto-­reverência e, nesses  ciclos endógenos e autofágicos, a destruição e a sucessão começam pelo umbigo – e nele terminam.

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