Manakamana (Nepal/EUA), de Stephanie Spray e Pacho Velez

outubro 21, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

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Revelação
por Filipe Furtado

“Nós filmamos em película não por razões estéticas, mas porque ela empresta uma integridade estrutural para o nosso compromisso de filmar toda a duração do trajeto dos carros. O tempo que se passa num rolo completo de 16 mm de filme é aproximadamente o quanto se gasta para subir e descer a montanha. O cabo do bonde de Manakamana também corre em paralelo ao carretel de filme enquanto é exposto a luz”.

Stephanie Spray

Uma pequena curiosidade de bastidores diz bastante sobre o projeto de Manakamana: os co-diretores Stephanie Spray e Pacho Velez sentiam grande responsabilidade por realizar o filme com a mesma câmera 16mm que Robert Gardiner usara para rodar o clássico documentário etnográfico Forrest of Bliss (1986) em outro templo sagrado do Nepal, mais de duas décadas atrás. Em suma, dentro da lógica de construção de Manakamana, a câmera de cinema importa, ela existe como um objeto físico, e a mise en scène do filme é resultado justamente de uma negociação física que se desenvolve ao longo de cada trajeto.

Manakamana é o mais novo documentário que chega até nós com a chancela do Harvard Sensory Ethonography Lab, sobre o qual já escrevemos bastante aqui na Cinética ao longo do último ano (Foreign Parts; Parque do Povo; Leviathan). O projeto do filme não poderia ser mais simples: estamos no bonde que faz o trajeto até o templo sagrado de Manakamana no Nepal; a viagem até o outro extremo dura cerca dos 10 minutos de um rolo 16mm e o filme se propõe a seguir onze viagens nas quais os peregrinos vão até o templo (o filme se estrutura de forma que os primeiros seis trajetos levam ao templo e os últimos cinco fazem a viagem de volta).

Há, de principio, um contraste muito grande entre o objetivo do trajeto – a chegada ao templo religioso – e a abordagem materialista que Spray e Velez fazem do mesmo. Antes da construção do bonde, aos peregrinos cabia somente uma trilha cujo deslocamento durava cerca de quatro horas. Estamos logo na interseção entre a tecnologia e a crença espiritual, literalmente suspensos diante do trabalho do homem, em um meio termo entre progresso e história. Logo, é notável justamente que as opções de Spray e Velez sejam de dar ênfase a uma série de elementos estéticos antiquados, a começar por construir um filme todo sobre a unidade deste material em extinção conhecido como rolo de película. Manakamana existe neste espaço entre o que o cinema se permite filmar e transformar em material e o sagrado que o tempo promete.

Spray e Velez se propõem filmar uma ascensão e uma descida e retirar delas um filme que, ao mesmo tempo, consegue se limitar àquilo que é capaz de registrar e, no processo, produzir um maravilhamento que parte deste olhar material para dar um salto rumo ao especulativo, movimento que nos lembra como parte da força do projeto HSEL surge justamente de se aproveitar do especifico do cinema para expandir as possibilidades de olhar etnográfico. Manakamana se constrói sobre um achado estrutural. A forma que seus trajetos se sucedem nos faz pensar em Abbas Kiarostami (especialmente em Dez) e existe algo muito prazeroso em como os passageiros se sucedem, assim como a relação que estabelecem com seus personagens traz à mente James Benning e Andy Warhol.

A cada chegada do bonde, a câmera mergulha na escuridão e o filme sucede em criar junto ao espectador um sentimento de antecipação sobre o próximo(s) passageiro(s) e que tipo de trajeto eles poderão nos proporcionar, até o momento em que a claridade nos permite descobrir a identidade do próximo viajante. É um procedimento que alcança um momento especial quando, ao fim da quarta viagem, a luz revela não um grupo de pessoas, mas um bonde carga com um grupo de bodes. Neste jogo de escuro e claro entre cada episódio, Manakamana encontro um equivalente narrativo para a revelação que assumimos que cada peregrino espera ter ao fim da sua viagem.

Ao mesmo tempo, a unidade do trajeto nos permite traçar uma relação particular com os vários tipos que cruzam o plano de Spray e Velez. Para um filme composto por onze planos de pessoas sentadas, Manakamana é surpreendentemente dinâmico, cada um dos seus episódios distinto o suficiente para permitir uma experiência diferente da anterior.

O filme se apresenta como documentário, mas a lógica da sua estrutura é de ficção, pois seu desejo é justamente encontrar novos olhares e novas histórias. Há uma declaração de Pacho Velez que diz muito sobre este desejo: “Stephanie e eu estávamos pensando muito em misturar gêneros neste filme. Não somente paisagem e retrato, mas também etnografia e ficção cientifica. E eles são relacionados. Quer dizer, o que seria o Capitão Kirk senão um antropologista do século XXIV, ‘corajosamente indo onde o homem jamais foi antes’ para explorar culturas estrangeiras? Há uma definitiva conexão entre as representações de ficção cientifica clássica de viagem especial e os nossos planos de pessoas viajando em pequenas caixas metálicas pelo ar. Ouçam na trilha sonora, especialmente”. O jogo de Manakamana de fato propõe localizar, em o que seria uma representação materialista, um poder de maravilhamento e revelação que associamos com o imaginário. Trata-se de um filme que é, ao mesmo tempo, extremamente terreno na suas perspectivas, mas muito respeitoso da ambição da peregrinação a um templo sagrado como de Manakamana, porque sabe que tal trajeto é da eminência do cinema.

O que Spray e Velez conseguem é justamente encontrar o peso físico deste trajeto e dotá-lo de graça. Há, como já dito, uma consciência muito grande da câmera e da sua presença em cena. Dentro do bonde, se localizam fora de quadro Velez com a câmera num tripé e Spray com o equipamento de som (e o trabalho de som é essencial para reforçar o caráter de exploração que o filme deseja propor) enquanto, do outro lado, ficam seus personagens, e esta negociação é sempre muito notável a cada novo plano. Os diretores escolheram com cuidado seus personagens (vários dos quais já haviam servido de personagens para ela em filmes anteriores) e, um pouco como em Coutinho, parte do prazer do filme se encontra em descobrir de que maneira cada um deles procurará se relacionar com os invasores fora do quadro. Quase todos os trajetos são marcados pela mesma tendência dos passageiros de se manterem em silencio no primeiro par de minutos, como se estudassem qual a melhor forma para se expressar, e, a partir dali, cada novo trajeto toma seu caminho: um pastelão envolvendo um picolé derretido; uma tentativa de tirar fotos com o celular; um silêncio entre avô e neto; um par de músicos que aproveita a presença da câmera para realizar uma performance. O que une todo Manakamana é esta ideia que há uma câmera ali e ela é um instrumento que ajuda a eternizar aquele trajeto e aquela experiência. Raros são os filmes que conseguem invocar o valor desta presença e se projetar nela com tamanha força.

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