Loving, de Jeff Nichols (EUA, 2016); American Honey, de Andrea Arnold (Reino Unido/EUA, 2016)

setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

* Cobertura do Festival de Cannes 2016

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Visões da América: ontem, hoje, amanhã?
por Eduardo Valente (colaboração especial)

“Americana” é uma expressão que se utiliza em inglês para falar das coisas típicas dos Estados Unidos, no que tange a um sentimento de um pedaço ou um retrato de situações, paisagens, personagens que se referem àquele país. O cinema, por motivos óbvios ao longo da sua história, foi e segue sendo um dos campos que mais produz expressões dessa “americana”, e a competição de Cannes trouxe dois desses exemplos (um deles dirigido por um cineasta local, e o outro por uma inglesa). Cada um deles, de forma distintas, parece propor uma experiência de deslocamento temporal na relação com aquilo que mostram e a forma como propõem que os espectadores se relacionem com o que veem.

Loving, título do novo filme de Jeff Nichols, pode a princípio parecer uma referência ao verbo “amar”, mas embora esse esteja sim no cerne do que é o filme, o trocadilho que o título permite é bem sutil, pois na verdade trata-se do sobrenome do protagonista do filme. Ele é um homem branco criado em meio a uma pequena comunidade racialmente mista no Estado da Virginia, mais especificamente nos anos 1950 e 1960, que ao se casar com sua amada, de cor negra, descobre que o mundo à sua volta não está preparado para algo tão banal quanto o amor entre duas pessoas. Desde sua incrível sequência inicial até o seu desfecho, Nichols deixa claro que o que faz seu filme se mover é a energia vital do amor entre duas pessoas, simples assim. A troca de olhares e palavras na sucinta e direta cena de abertura, assim como no seu final, encapsulam toda a narrativa rocambolesca por que passam entre esses dois momentos: o enfrentamento legal e social numa história que cresce de tom e significado na medida (até chegar na Suprema Corte americana), passando de pequeno conto pessoal a emblemático caso legal pelos direitos civis.

Em sua construção, Nichols busca seguir um caminho delicado entre avançar sua narrativa e reafirmar que o que importa não é o que acontece de fato, e sim o que sentem aqueles dois personagens (nesse sentido, é preciso afirmar a escolha precisa de dois atores pouquíssimo conhecidos, mas de uma sutileza e pregnância absurdas para interpretar o casal protagonista). Assim como Loving e sua mulher parecem recusar constantemente a instrumentalização da sua luta (não querem ser símbolos, insistem, porque querem só viver juntos, nada mais – não aceitam que isso não seja tão banal e óbvio que precise ser uma bandeira), o filme parece brigar para nunca esquecer que sua narrativa é, e precisa ser, apenas sobre duas pessoas, nada mais.

Nesse sentido, embora tenha o passado como objeto, parece bem claro que o objetivo de Nichols ao se colocar frente a essa história hoje não se resume a narrar uma história pelo simples desejo de que ela seja mais conhecida ou registrada. Loving usa a questão racial como maneira de falar claramente ao hoje, onde tanto o casamento e o simples ato de amar segue sendo motivo de tensões e disputas (no caso, quanto aos casais homoafetivos) como a ideia do viver junto para além das separações de raças parece ainda uma utopia, face às tensões de ordem religiosas ou étnicas com as quais os EUA (e o mundo) ainda se confrontam cotidianamente. Num ano em que Donald Trump ameaça se tornar Presidente dos EUA, fica claro que Loving não é um filme sobre o passado, sobre uma questão “resolvida”.

Usar um tempo para se projetar para além dele parece estar também no centro do que interessa a American Honey, filme da inglesa Andrea Arnold sobre uma certa juventude norte-americana, que tem o peso de um “cautionary tale” que parece nos perguntar “o que diabos está acontecendo com esses jovens”. Retrato aparente de uma hiper atualidade, logo fica claro que o filme quer mesmo é se projetar sobre o futuro: daqui, para onde? Para fazer isso, Arnold se volta para o chamado “white trash” – parcelas empobrecidas da sociedade americana mais profunda, fora das grandes cidades. Mesmo que “white” não seja um bom termo para definir sua protagonista, uma vez que ela é tudo menos branca na pele, de fato é em pleno “trash” que Arnold abre seu filme, quase como querendo encarnar na prática o termo: Star (sim, esse é daqueles filmes em que o nome da protagonista, assim como o título mesmo, parecem propor aquelas “irônicas contradições” um tanto óbvias) está com duas crianças, elas sim loiras e brancas, no meio de uma caçamba de lixo, buscando comida. Logo Star decide quebrar seus laços com aquela realidade específica da “família” em que se encontra (logo entendemos que aquelas crianças são filhas do seu atual companheiro, sendo totalmente desprezadas por ele e por sua ex-mulher) e vai se juntar a um grupo de jovens desgarrados (quase os Lost Boys de um Peter Pan contemporâneo), que viajam numa van conseguindo dinheiro de formas estranhas enquanto vivem um cotidiano de sexo, drogas e… rap.

Inevitável que American Honey seja discutido trazendo à baila a obra de Larry Clark, porque é num universo similar ao dele que Andrea Arnold vai trafegar: um “mundo sem adultos”, por assim dizer (eles surgem aqui e ali como contraponto, mas nunca ameaçam de fato a unidade do “bando desgarrado”). A grande questão é que o interesse de Clark por aqueles universos sempre pareceu viver de um conflito fascinante de gerações: ele não podia ser parte daqueles jovens de verdade, mas ao mesmo tempo ele já tinha sido um deles em outro tempo. Portanto, sempre houve no cinema dele uma elegia nostálgica que empresta a seus filmes uma qualidade dúbia de fascínio e horror (pelas explosões de violência, dor e angústia), mas acima de tudo um óbvio desejo de penetrar num universo e se instalar lá. Não é o sentimento que temos com o olhar de Arnold que, como estrangeira àquele universo, parece querer reproduzir o sentimento de mundo dos filmes de Clark sem conseguir olhar e se integrar a ele com verdade. O tom de American Honey nunca sai de um miserabilismo doentio, onde o fascínio que busca criar e fazer sentir (principalmente nas cenas de sexo ou de música) parece sempre forçado. Pior, se Star nunca se integrar de verdade naquela “nova família” é uma decisão dramaticamente justificável, o filme nunca conseguir fazer de nenhum dos outros personagens figuras com vida para além de representações zumbis do prazer inconsequente e sem perspectivas torna a experiência das longuíssimas 2h40 de American Honey absolutamente desinteressante. Um desejo de mergulho numa “América real” pela via de um quase surrealismo que nunca acha seu tom entre um nem o outro.

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