Locarno: linguagem e História em quatro tempos

janeiro 25, 2016 em Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

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No princípio era o verbo
por Elie Aufseesser (colaboração especial)

Ano passado, Jean-Luc Godard passou visita ao festival de Locarno com seu megahit em 3D, Adeus à Linguagem. Neste radical gesto de cinema, o diretor parecia, por meio das possibilidades do cinema, se livrar do peso do logos, diluindo o sujeito (o próprio Godard) junto ao espectador e seu objeto (o filme).

Um ano depois, outro veterano (embora um pouco mais jovem) chega ao maior evento de cinema da Suíça:

Cosmos

De fato, Andrej Zulawksi retorna com seu primeiro longa em quatorze anos, Cosmos. Perguntar-se sobre o que é o filme é um pouco como se perguntar o que é o próprio cosmos… por onde começar? Em ambos os casos, muito provavelmente com uma explosão – o big bang, para o universo, e as palavras, espalhadas por todo lado, no filme de Zulawski, como um fluxo ininterrupto.

Adaptado de romance epônimo de Witold Gombrowicz, uma das grandes preocupações do filme é manter fidelidade às palavras. Enquanto o diretor suíço optava por abandonar a linguagem, o polonês se apega violentamente a ela. Os diálogos quicam como uma bola de borracha em um quarto pequeno; os monólogos se esparramam como o rascunho de um ilustrador em um guardanapo; os atores corporificam esse movimento, oscilando permanentemente entre a pregação iluminadora e a quase histeria (termo que Zulawksi assume e incorpora).

Outro movimento necessário aqui é o da tradução do romance de uma língua para outra. Com este passo, surge um segundo momento, infiltrado por jogos de palavras e numerosos neologismos, em especial no personagem do pai (Jean-François Balmer). Esse traço torna o roteiro bastante específico à língua, guardando certa ironia em palavras que se fazem imprecisas ao desejo de fidelidade ao verbo.

Segundo o próprio diretor, a maior dificuldade deste novo filme estava em “transformar um livro de destruição em um filme de construção”. É uma confissão que confirma a interrogação intrigada deixada por este primeiro contato. Após deflagrar o logos em pedaços, ele tenta (como nós) juntar os cacos, em um filme que, embora uno, se esparrama em milhares de peças que não se encaixam. O desejo e a impossibilidade remontá-las termina fazendo com que a incompletude do todo desvie a atenção da beleza e fascínio das partes.

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Academia de Musas 

Seria Cosmos um prisioneiro da linguagem? Existe, de fato, algo como um “cinema puro”? A resposta de Raffaele Pinto, protagonista do mais recente filme de José Luis Guerin, provavelmente seria “sim, é, e não, não existe”. Filologista que ensina na universidade de Barcelona, sua percepção de que os humanos são reféns inevitáveis do logos não é exatamente surpreendente. Na prática cotidiana, cabe-lhe trabalhar não somente na palavra como meio intangível de comunicação, mas também como signos tangíveis espalhados no papel. Como vários outros especialistas, sua visão de mundo parece se moldar ao buraco da fechadura de sua própria disciplina – é esta, inclusive, a crítica que lhe faz sua mulher, acusando-o de usar sua circunvolução literária para levar seu projeto longe demais, redundando em comportamento inaceitável.

Seu projeto, no filme, é um bocado anacrônico: criar um grupo de musas, ensinando-lhes a inspirar a criação artística. Em ambiente claramente acadêmico, um grupo de estudantes mulheres se dedica a seguir seus ensinamentos. Se o amor é uma invenção da literatura, naturalmente as musas também o são, e é pelo estudo da literatura (Dante, em particular) que elas alcançarão este árduo objetivo.

Guerin lentamente migra o filme do ambiente universitário para as relações interpessoais do professor com algumas de suas alunas, assim como sua esposa. Esse deslocamento acompanha a evolução de um projeto de documentário aparentemente simples para um dispositivo muito mais complexo e perturbador. Eventualmente, a percepção de não estarmos diante de um documentário se torna incontornável, e a certeza um tanto óbvia de estarmos diante de um filme de José Luis Guerin, com toda a complexidade que o fato carrega consigo, chega com força avassaladora. Neste mundo cheio de nós, o diretor cerca Raffaele (de fato um professor de filologia) com personagens femininas e, da mesma forma que explora documentário e ficção, questiona a linha tênue entre arte (neste caso, tanto a de ser um professor, quanto a de ser musa) e vida particular.

Esse gesto não deixa de incorrer em perigos: ultrapassando diferentes obstáculos, o professor justifica seu processo de sedução dizendo a si mesmo que ensinar é seduzir. O problema surge quando uma das alunas oferece uma visão modernista de feminismo como indagação ao plano do professor. Por que perder tempo debatendo questões de gênero, se hoje todos podemos ser artistas e musas? Esse discurso entra em choque com a tradição clássica que associa o feminino às musas, deixando Mireia, a aluna que antagoniza o professor, às voltas com uma contradição complexa que se mistura a seus problemas particulares. E se é a poesia que, ao fim, pode lhe salvar da própria morte, é porque a linguagem de atualiza como pharmakon – usando termo de Jacques Derrida –, igualmente veneno e cura.

Enquanto o filme trafega por diferentes personalidades, ele também é infiltrado por diferentes línguas. Raffaele ensina em catalão, mas invariavelmente recorre ao italiano, espanhol, lê textos em italiano medieval, etc. Em uma inesperada pesquisa de campo com uma de suas alunas/musas na Sardenha, o dialeto local se impõe como língua principal. Mais até do que no filme de Zulawksi, a questão da especificidade da língua (essencial à poesia) se faz central aqui. Embora não alcance os mesmos ápices de mise en scène de alguns de seus filmes anteriores (indesejados aqui, neste filme tão mais sujo), Guerin consegue, com humor e inteligência, transformar em narrativa um objeto que poderia facilmente permanecer puramente teórico.

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Bela e Perdida 

Nos dois filmes acima, a linguagem é recurso abundante. Pessoas falam indiscriminadamente, como se a possibilidade da fala fosse ponto pacífico. Pulcinella, de Bela e Perdida, não é como elas. Ele de fato precisa pedir permissão para narrar a história de seu amigo Tomasso, e assim o faz. Pulcinella é uma figura da cultura popular napolitano, espécie de mediador ou mensageiro entre o mundo dos vivos e dos mortos. Não é tarefa desprezível. Mas a missão de Tomasso talvez fosse ainda mais árdua: cuidar do gado, enquanto se esforçava por preservar as ruínas de um castelo de Bourbon contra o governo e a máfia local.

Tommaso só pode ser referido no passado, pois Tommaso está morto. Para honrar seus últimos desejos, Pulcinella volta à Terra para salvar Sarchiapone, um jovem búfalo, da fila do matadouro. Bela e Perdida transita do pitoresco italiano de outras épocas a questões sociais prementes, como o lugar do crime organizado e a necessidade de preservação cultura. E, como Guerin ou Miguel Gomes, Pietro Marcello se instala no terreno poroso entre documentário e ficção, partindo de um personagem histórico real para abarcar uma verdade mais ampla. Tommaso, como o professor Raffaele, era de fato como é apresentado pelo filme, tendo falecido no processo de realização do documentário, obrigando o diretor a repensar o direcionamento do projeto. Como o citado realizador português, sobrevive a tenacidade de não se deixar curvar à poesia ou às implicações políticas da situação.

Em um de seus filmes anteriores, A Boca do Lobo (2009), Marcello já exercitava essa negociação com dispositivos narrativos, com a presença onipotente da voz over, o quadro do 16mm, os personagens desgarrados e o uso de found footage como perspectiva e inserção histórica e política. Porém, o caminho que ia do retrato em carvão do porto de Genova para a bela história de amor entre um ex-presidiário e uma prostituta transsexual aqui redunda na reconstrução ensolarada da paisagem encenada do interior italiano. Frequentemente à iminência do kitsch e naif a ponto de dar voz a um bezerro, é a admiração sincera pelos personagens princiais (Tommaso e as paisagens da Campania) que evita transformá-lo em ode simplista aos mortos, abarcando uma relação positiva e amorosa com aquilo que não é mais, mas tem aqui a possibilidade de permanecer sendo.

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Dom Juan

Assim como Pietro Marcello joga com a comedia dell’arte italiana, Vincent Macaigne atualiza um dos cânones da literatura francesa: Dom Juan, de Molière. Templo do teatro e guardiães de repertório, La Comédie-Française se juntou ao Arte para solicitar ao jovem diretor de teatro uma adaptação para cinema, impondo diversas restrições: era necessário usar os atores da versão da peça feita pela própria instituição, filmar em 13 dias e respeitar integralmente os diálogos originais.

É partindo da santidade da linguagem original, da aura mesma das palavras, que um significante permanece, e um significado é apropriado. Vincent Macaigne tem currículo teatral neste sentido: desde 2009, com suas (extremamente livres) adaptações de O Idiota, de Dostoiévski, ou Hamlent (2011), ele se tornou uma voz de destaque, por sua capacidade de gritar tão alto quanto deseja ou pode. Literalmente. Um dos traços de sua direção para teatro (e agora para cinema) era justamente o tom de voz extremo dos atores, conectado a uma alta intensidade física – sentida também pelo espectador. Apropriadamente, seus personagens sempre nutriram certo senso de revolta e irritação contra o status quo. A despeito dessa tendência um tanto automática ao grito, o autor incorpora o desejo de não se deixar paralisar pela sua herança cultural. Como um homem a grafitar solitário nas cavernas Lascaux, ele confia em sua época o suficiente para perceber uma ausência e fazer o necessário para preenchê-la. As pinturas rupestres, afinal, nunca foram feitas com a intenção de permanecerem intocadas. Esta dicotomia é plenamente encarnada na figura de Dom Juan, tanto seu próprio pai (o guardião de certa idéia de tradição) quanto o filho revoltado (a blasfêmia contra a ordem social). Mais do que a sedução, é esse poder subversivo e este jogo de poder do original de Molière que vêm à superfície.

Também ele um ator (de estilo bem diferente de sua própria direção), Macaigne se tornou uma espécie de Jean-Pierre Léaud para uma nova geração de diretores franceses, como Guillaume Brac (Tonnerre, 2013), Justine Triet (La Bataille de Solférino, 2013), Sebastien Betbeder (2 automnes, 3 hivers, 2013) e Antonin Peretjako (La fille du 14 juillet 2013). A mudança para trás da câmera chega como movimento natural, primeiro com um média-metragem aclamado em Clermont-Ferrant e indicado ao César, Ce qu’il restera de nous (2011), e agora com este primeiro longa. Apesar da riqueza da empreitada, com idéias fortes na direção, o filme termina um pouco mais exibido, menos autêntico e íntimo que seu trabalho anterior. Ainda assim, seu grito é forte o suficiente para permanecer ecoando interesse nos próximos anos do cinema francês.

Tradução do original em inglês por Fábio Andrade. 

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