Life After Life (Zi fan ye mao), de Zhang Hanyi (China, 2016)

setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

* 45º New Directors/New Films

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Uma questão de tempo
por Elie Aufseesser (colaboração especial)

Quando a edição deste ano do New Directors/New Films começou, o último filme de Apichatpong Weerasathakul, Cemitério do Esplendor (2015), era exibido em Nova York atravessando a rua de uma das salas do festival, no centro Elinor Bunin Monroe do próprio Lincoln Center. Não surpreende que, na descrição do festival, o primeiro longa-metragem de Zhang Hanyi seja comparado ao mestre tailândes: de maneiras diferentes, ambos cordialmente abraçam a vida após a vida e trazem um personagem central com aptidão para se comunicar com o outro mundo. A mulher no filme de Apichatpong se comunica com comatosos e sonâmbulos compartilhando seus devaneios, vidas passadas e últimos desejos; Leilei (Zhang Li), protagonista de Life After Life, recebe diretamente a “visita” de sua falecida mãe, que se comunica com ele e através dele com o pai do rapaz, Ming Chun (Zhang Mingjun). Nos dois filmes, as questões do espírito são, na verdade, aparentemente acidentais, definitivamente mundanas e primordialmente literais (mesmo que se possa caçar uma metáfora nas relações). Ambos os cineastas estão preocupados com a sobrevivência desses espíritos em uma paisagem em transformação. No caso de Zhang Hanyi, é principalmente o terreno movediço entre o campo, ainda protegido por cavernas ancestrais, ignorado por árvores antigas, e a cidade contemporânea, inexoravelmente fundindo o estilo de vida, habitat e meio social rurais. As imagens constantemente nos lembram, em diferentes níveis, dessa dicotomia.

Esse é o campo de batalha, o espaço de confronto franco, como quando uma modesta picape, guiada pelo pai de Leilei, tem de dar passagem para uma imponente escavadeira amarela. O fazendeiro e o operário se veem num caminho no qual apenas um por vez pode passar. Evidentemente, aquele que sobe, o veículo pequeno, tem de desistir e dar meia volta. Mas os termos que o filme arma não são da conquista, derrota e vitória. Estão à procura de algum tipo de acordo: como podem esses dois mundos se tolerar? Afinal de contas, é bem provável que o motorista da escavadeira fosse fazendeiro também há pouco tempo. Talvez a resposta dessa “batalha” só virá com o tempo: a aceitação entre ambos de que não estão no mesmo fluxo, apesar de compartilharem o mesmo espaço. O operário tem de levar a máquina pela estrada e realizar sua tarefa diligentemente, o relógio contra ele; enquanto, por outro lado, Leilei e Ming Chun tem a favor deles, confrontados com essa grande pá mecânica, precisamente a ausência do cronômetro. Ou isso, ou eles tem seu próprio relógio: o tempo da natureza, das árvores crescendo e ficando velhas; o tempo do filme revelando o próprio tempo.

Num país freneticamente em construção, o deslocamento do ritmo, através do pai e do filho, se torna inevitavelmente político, próximo do que está em jogo nos filmes de Jia Zhang-ke, um dos produtores de Life After Life. O filme, então, não é político pelo confronto, como na tradição mais revolucionária (da qual a China atual continua oficialmente se dizendo tributária, mas está muito distante). Seu aspecto político está mais próximo da ideia de “partilha do sensível” de Rancière; o sensível, aqui, sendo o tempo.

Mas a cidade permanece em segundo plano. Life After Life não é sobre as mudanças observáveis, quase em tempo real, das formas que a cidade está tomando. O que está em cena aqui é uma partilha porosa, como um deserto (espiritual) cuja areia vai e volta todo dia. A maioria das pessoas não notaria, exceto ao decidir suspender seus compromissos para testemunhar o movimento.

Através dessa política do tempo, é difícil não nos ver espelhados em todas aquelas árvores povoando o filme – por vezes como numerosos figurantes, outras como personagem principal sem igual. De fato, esses seres naturais são testemunhas privilegiadas da vida e morte dos humanos. O pai faz essa observação debaixo de uma majestosa e monumental árvore, provavelmente com séculos de idade (meu conhecimento restrito de botânica limita a descrição). Pessoas, tanto quanto animais ou espíritos, podem se refugiar ou aconselhar-se nas árvores, apesar delas estarem constantemente ameaçadas pelas próprias pessoas. Abrigam pássaros, também habitados pelo espírito da mãe. Mais à frente, um longo plano se fixa numa cabra cujo pescoço está prestes a ser cortado em frente de todos na vila; nós permanecemos por um tempo, mas nunca veremos, e por isso nunca saberemos, se o ato foi finalizado. Um pouco depois, um pequeno rebanho das mesmas cabras aparece dentro de uma árvore, numa imagem surreal, das mais impactantes e cômicas do filme, apesar de sua precisão. O caminho para fugir das garras da morte é entre ramos, como frutos brotando na primavera.

A incumbência necessária é, então, protegê-las, as árvores, mesmo com uma cerca pequena e quase patética. Uma das tarefas principais do filho ao longo da narrativa é mover uma árvore nascente do terreno de sua caverna-casa para um campo aberto. A mãe confiou-lhe a missão. Esta, por si só, será uma aventura: a referida árvore sai de seu lugar de origem e atravessa a cidade, na caçamba da picape, até chegar numa floresta. Seu caminho está intrincado com o de Leilei e sua mãe, e o destino deles amarrado ao nosso: tudo é móvel, desalojável, até uma rocha – que, em outro momento poético, é designada a ir para a cidade. O longo deslocamento de uma árvore numa picape (sob a vontade de uma alma errante) e a árdua viagem de um pedregulho evocam inevitavelmente a figura de Sísifo e sua angustiante, infindável tarefa: enquanto alguns veem uma oportunidade de cair em depressão profunda e ceticismo lúgubre, outros, numa espécie de gesto camusiano, podem argumentar que o esforço por si só é o bastante para “preencher um coração humano”.

À câmera mesma é dada permissão de experimentar seu próprio mito de Sísifo. Primeiro, sente-se que a mise en scène pode se tornar prisioneira de sua própria imobilidade formalista, numa imitação muito óbvia dos mestres anteriormente citados. Mas a tocaia é rapidamente vencida, confirmando esquema armado no início: nada está cravado na pedra, especialmente um plano. Essa liberdade da câmera, transitando do inerte ao movimento de modo orgânico, não é, contudo, como os corpos são organizados no espaço. Parece haver uma desnecessária dicotomia entre a mencionada fluidez do registro, observando um espaço aparentemente intocado, e a extrema rigidez ensaiada dos atores – um pouco como se o universo de Pedro Costa invadisse o de Apichatpong Weerasethakul, e o encontro parecesse forçado. É uma válvula bloqueando uma mise en scène de resto inventiva que até permite toques de humor advindos dos menores acontecimentos.

Nessa decisiva experiência imanente, talvez não há nada da figura mitológica grega, apenas um círculo espiritual, no qual todos os pequenos eventos – e pessoas, animais, árvores, ramos – existem numa vida após a vida.

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