L’Abri, de Fernand Melgar (Suíça, 2014)

agosto 12, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

labri

Fronteiras
por Raul Arthuso

Logo na primeira sequência de L’Abri, temos uma clara noção das intenções estéticas e políticas do filme de Fernand Melgar. Um grupo de pessoas chega à porta de entrada de um bunker no meio de uma praça. O número de pessoas aumenta: são negros, asiáticos, latinos; as línguas ouvidas são múltiplas. Um outro grupo de pessoas sai do bunker e deixa apenas uma parte das pessoas do lado de fora entrar. Uma harmonia tênue se rompe e uma possibilidade de insurgência violenta se forma, criando uma tensão interessante entre os funcionários desse abrigo e as pessoas tentando entrar para protegerem-se do frio. A câmera se intromete na sequência, tenta entrar na ação, captar reações, mas ao mesmo não tempo não interfere. Não há dúvidas: estamos na Europa contemporânea (ou seria durante as invasões bárbaras?).

A apresentação muito clara dos dados revela o objetivo político de L’Abri de ser uma porta de entrada na discussão da imigração na Suíça e, por extensão, em toda Europa, situação-chave na política europeia atual. A Suíça tem sido um dos países mais duros nas medidas para evitar a imigração de africanos e asiáticos, tanto por via direta, como pelas fronteiras vizinhas – muitas das pessoas acompanhadas ao longo do filme chegam ao país vindas da Espanha, por exemplo. Há, então, uma intenção de se colocar no debate político em torno do tema. Para isso, a construção de espelhamento se coloca muito rapidamente: a câmera se detém, durante certo período, num abrigo para pessoas pernoitarem com um número de vagas menor do que a demanda, enquanto outras pessoas chegam todas as noites, esperando um lugar para dormir. Assim, acompanha-se, por um lado, o ritual evidente da mecânica de entrada e saída do abrigo, seu funcionamento, seu ritmo. Por outro, o filme elege alguns personagens acompanhados em outros momentos ao longo do dia – especialmente um casal vindo da Espanha e um africano, Amadou Sow – além de mostrar as discussões de “bastidores” entre os funcionários do abrigo.

Cada um dos elementos do filme torna-se um componente da representação política. Dentro dessa grande questão da imigração, Melgar mostra outras questões como as dificuldades dos imigrantes em conseguir trabalho por imposição de barreiras burocráticas, as questões raciais que permeiam todo o jogo político, as barreiras de comunicação por causa da língua, as idiossincrasias das opiniões sobre as medidas a serem adotadas. Melgar faz do abrigo uma versão in vitro do país. e deixa claro o clima de explosão iminente, dentro das tensões de entradas e saídas.

Quanto a uma coisa, não há dúvidas após ver L’Abri: tanto os imigrantes, cidadãos locais – representados pelos funcionários do abrigo – quanto as autoridades não fazem ideia de como resolver a situação. Seja para um imigrante como Sow, que não consegue trabalho por estar preso nas barreiras burocráticas, e que não pode ficar ou partir – e existe aí uma ambiguidade no plano final em que ele se afasta da entrada do abrigo após saber que não conseguira o emprego: ele está regressando, pois se afasta do microcosmo-país, mas ao mesmo tempo está em pleno país, então sua saída não significa um retorno ao seu país tanto quanto um estado em suspensão de sua decisão -, seja para um funcionário como José, frustrado com sua impotência em ajudar todos que chegam, e que precisa manter sua postura agressiva de autoridade, não há vislumbre de saída para o impasse. Junto a isso, persiste uma postura humanista que evita estabelecer qualquer jogo melodramático que crie vilões e inocentes, ainda que uma ou outra figura acabe ficando menos esmerada, recebendo um olhar apenas solidário – como a família armênia que não consegue lugar e tem de dormir no carro, para logo depois ser esquecida pela câmera – ou o chefe do abrigo que pouco participa do ritual diário e representa o típico burguês que se vê como um “paizão” de todos do abrigo, sendo o personagem com quem o filme menos se identifica. Isso também porque o principal interesse da câmera não está na complexidade das personagens, suas motivações ou desejos – exceto talvez por Sow, que, em determinado momento, tem uma micro-trama dentro do filme – mas em captar o ritual diário do abrigo, do momento de entrada e saída do lugar às relações estabelecidas ali, além dos outros pequenos rituais que as personagens realizam ao longo do dia – como as cenas no sopão comunitário.

Não que L’Abri seja um filme ritualista apenas, mas existe um olhar atento para o comportamento dentro de um contexto, mais que construções psicológicas ou motivações pessoais. Porque é exatamente esse contexto o elemento em questão e não uma ou outra personagem em particular. Se Sow se aproxima de se tornar uma personagem no sentido canônico, isso se dá já na segunda metade do filme e menos por uma questão de dramaturgia; sua situação dentro do contexto geral da relação de entradas e saídas do abrigo é o interesse. Assim, sua resolução não é o desenvolvimento de sua situação de imigrante – se ele volta ou não para seu país de origem -, mas sim a notícia de que não conseguira o emprego à porta do abrigo. O centro gravitacional do filme é o abrigo, sua dinâmica e seus rituais de existência tênue, prestes a falir: os dramas pessoais, as pequenas cenas que estabelecem personagens, os fatos corriqueiros, como crônicas dentro do filme, acontecem por causa e em função da mecânica da vida em torno do abrigo. Curiosamente, isso é centrado em um projeto extremamente realista de cinema. Tudo no filme é tratado com grande franqueza por uma câmera que se apropria do ideário do cinema direto, colocada na cena como uma mosca que sobrevoa a ação, observando, se aproximando e se afastando de acordo com uma narratividade que privilegia a intensidade da integridade da cena.

Existe, porém um jogo ambíguo em L’Abri: sua articulação de linguagem é evidentemente documental e não existem grandes elementos ficcionais no filme, mas seu discurso, através do espelhamento do microcosmo com o macrocosmo, depende de construções mais firmes frente ao ideal “aleatório” da realidade. Assim, conversas como a de dois imigrantes africanos no corredor do abrigo certa noite, na qual um deles expõe sua visão sobre a desumanidade de toda a situação, parecem armadas para fazer o discurso avançar, contrariando o realismo documental do filme. Esse é, talvez, o grande impasse da arte realista, cuja existência se dá na harmonia obscura da mímese da realidade com a construção artística. O abismo do realismo está na morte de um pelo outro. O interessante em L’Abri é que, dentro desse realismo, Melgar não parece esconder as costuras da construção, até mesmo chamando a atenção para cortes em continuidade, o uso do campo e contracampo, e momentos evidentemente encenados para a câmera. O filme se equilibra entre o registro e o discurso, mas Melgar não tem pudor nenhum em chamar a atenção para os holofotes da construção de linguagem. Se existe uma vontade política intervindo no debate da realidade, há também uma política simbólica da linguagem, e L’Abri abertamente quer caminhar – e chamar a atenção de todos para o seu caminhar – na fronteira.

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