La Última Película, Raya Martin e Mark Peranson (Filipinas / Dinamarca / México / Canadá, 2013)

março 1, 2015 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pedro Henrique Ferreira

laultimapelicula

A fumaça e a chama
por Pedro Henrique Ferreira

“Se se compara a obra que cresce a uma fogueira, o comentador está diante dela como o químico, o crítico como o alquimista. Enquanto que para aquele madeira e cinzas permanecem os únicos objectos da sua análise, para este [o crítico] só a chama é um enigma, o do vivo. Assim, o crítico interroga-se sobre a verdade de que a chama viva continua a queimar por debaixo das pesadas achas do passado e da cinza ligeira do vivido”.

Walter Benjamin

Chamas ardem sobre um punhado de rolos de filme incinerados no prólogo e epílogo de La Última Película. A imagem evoca um motivo temático que permeia todo o longa-metragem de Raya Martin e Mark Peranson: de um lado, o espectro de um fim, concretizado no ato de se queimar películas cinematográficas; do outro, a fumaça nebulosa que sai do fogo, a presença etérea que subjaz à matéria destroçada e, enquanto a elimina, a transforma em poesia. No ato mesmo de eliminá-la, poetizá-la. Este motivo temático, simbolicamente expresso nestes breves quadros, ganha a magnitude de um monumento; o eixo de discussão da obra  – cinema, civilização, história – a eminência do término de cada uma destas coisas, emaranhando o fim da produção de películas cinematográficas pela maior empresa do mundo (Kodak), por exemplo, ao apocalipse previsto pela cultura Maia que poria um fim à humanidade como um todo.

Mas La Última Película discute o tema grave e austero em um acorde simples e jocoso; ou melhor, as duas coisas convivem. E é justamente isto que salta aos olhos e torna o longa-metragem uma experiência excepcional, desconcertante. Faltam parâmetros adequados para classificá-lo e definir, por exemplo, se há mesmo uma pretensa refilmagem de Dennis Hopper, e o quanto a experiência de realização cinematográfica no México do personagem de Alex (Alex Ross Perry) é com efeito a experiência autobiográfica dos realizadores (como nos cultuados Autohystoria ou Now Showing, de Martin). Principalmente, faltam parâmetros para se dizer o quanto as platitudes ditas pelo personagem são crenças deliberadas dos autores, ou se são por eles ridicularizadas.

Em uma das entrevistas que dão um quê de making of ao filme, Alex expressa abstratamente do que se trata sua trajetória em Yucatán na realização de um longa-metragem sobre o apocalipse Maia. Fala, não sem certa pretensão e religiosidade, sobre suas aspirações artísticas últimas, sobre os problemas da humanidade. Logo em seguida, o diretor é preso por motivos esdrúxulos, situação de um absurdo quase buñueliano. Comenta sobre a autenticidade dos rituais culturais indígenas enquanto caminha com seu guia local, Gabino (Gabino Rodriguez), figura que marca um contraponto ao protagonista e interrompe as assertivas altivas com naturalidade, espontaneidade e graça. Operando nesta curiosa harmonia entre a seriedade e o cinismo, La Última Película carrega consigo o mesmo tom dual de Honra de Cavaleiro (2006), obra de Albert Serra à qual Mark Peranson paga tributo em seu documentário anterior, Waiting for Sancho; ou, ainda mais, ao primeiro filme de Serra, Crespià (2003).

Há um desleixo no tratamento da imagem que só denota ainda mais uma folga, um relaxamento em relação a ela. Se existe um exercício de composição, este jamais é levado à plenitude. A sensação é de que as imagens podem se proliferar no vácuo, vindo de algum lugar e indo a lugar nenhum. Uma quantidade enorme de imagens flácidas, todas elas montadas juntas; ou melhor, “não montadas” – várias tomadas da mesma cena coladas em sequência com a justificativa esdrúxula de que, nas palavras de Alex, foi o mesmo autor que as filmou e, por consequência, todas devem carregar um pouco do sentimento presente na hora de encená-las. Múltiplas bitolas se conectam ou aglomeram, como rastros evanescentes, mais do que aspirações a uma forma pictórica plena da cena, o que, em outra camada, remete novamente à morte da película, exigindo que a natureza da imagem seja entendida de outro modo a partir do século XXI.

Mas não há sombras da altivez aristocrática de um Serra, por exemplo. Somos reavivados com um gesto de inocência mais típico do cinema de Raya Martin, que encenara dramas históricos épicos da tradição do povo filipino em Uma Pequena Película sobre o Índio Nacional (2005) e Independência (2009) numa imitação barata de imagens de arquivo e cenários de papelão. É uma inocência consciente, perpassada pelo sentimento de ser ínfimo diante destes temas mais escabrosos, destas quimeras – consciência que se confunde com uma preguiça de sequer sair do lugar e começar a elaborá-la. O que, por princípio, soa condenável, em La Última Película, é recebido com congruência: é preciso se esforçar e tentar, pelos meios mais banais possíveis, criar (recriar, inventar) estas imagens que vêm de lugar nenhum, e vão a lugar algum, mas que revelam a proximidade da chama. A arte, como diz Alex, é uma questão de destruição. E a fumaça não é a chama. As imagens não podem ser chamas. Só podem ser a fumaça que emana ao destruí-las.

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