La Princesa de Francia, de Matias Piñeiro (Argentina, 2014)

agosto 12, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

Princesa

Fragmentos de um discurso amoroso
por Filipe Furtado

No começo há um campo de futebol e jogadores correndo de um lado a outro, primeiro numa série de exercícios de aquecimentos e depois numa partida. O encontro da trilha de musica clássica e a posição onisciente da câmera, filmando tudo de cima, tornam o que deveria ser uma pelada espontânea em coreografia, um campo de futebol de fim de semana num palco. Da liberdade do jogo, chega-se a um jogo de cena. É um ponto de partida com poucas relações dramáticas com a intriga central de La Princesa de Francia, mas que diz muito sobre a arte de Matias Piñeiro. Pois se este novo trabalho acrescenta novos elementos ao cinema do diretor argentino, é justamente ao permitir que este jogo entre liberdade e controle ganhe contornos ainda mais fortes: em La Princesa de Francia, o prazer da fabulação ao mesmo tempo permite ao filme grandes saltos de imaginação, mas também obriga suas personagens a lidarem com os papeis que cada uma recebeu. Pode-se dizer que seja um filme sobre esta negociação, esta busca pela liberdade em meio a uma intriga pré-determinada.

Assim como seu trabalho anterior, Viola (2012), La Princesa de Francia nasce a partir de uma montagem de uma comédia de Shakespeare, no caso Trabalhos de Amores Perdidos, cuja ação encontra reverberações na intriga romântica das personagens. Haverá uma montagem teatral à qual todos se dedicaram em momento ou outro no passado e a possibilidade de transforma-la em texto de rádio. Teatro, cinema, rádio – o texto se move e ganha novos possíveis contornos de representação. Não há, da parte Piñeiro, a intenção de adaptar Trabalhos de Amores Perdidos mesmo que de forma livre; trechos da peça ocasionalmente são encenados, mas dela o filme capta o espirito e sobretudo suas personagens femininas, pois, se La Princesa de Francia é uma intriga romântica na qual os vértices apontam para o mesmo rapaz, trata-se novamente de um filme de atrizes (Agustina Muñoz, Romina Paula, María Villar, Laura Paredes e Elisa Carricajo, todas incríveis), dedicado a permitir que cada uma ensaie um tipo de mulher diferente a reagir à presença do personagem central e à câmera do cineasta de maneiras distintas (apesar de, num dos achados de apropriação do filme, a princesa do título ser interpretada, nas montagens dentro do filme, por um homem).

A coreografia da partida de futebol inaugural deixa claro como tudo aqui segue em constante movimento: na segunda sequência, um casal assiste à peça e aos poucos a abandona, para que possam prestar atenção somente um ao outro. A encenação de La Princesa de Francia existe em função da aproximação dos corpos.  Se a intriga romântica pressupõe segredos e motivações guardadas, as imagens de Matias Piñeiro são sempre limpas e às claras. No jogo entre a intriga do drama e o desejo de liberdade das personagens, o diretor lança mão da primeira para reafirmar o segundo, e movimenta-se sempre para um espaço que desnuda as motivações. Em La Princesa de Francia, é impossível se esconder do próprio desejo.

Para um filme previsto sobre um movimento constante dos corpos, tudo paradoxalmente nasce de um hiato: Victor abandona a peça para passar um ano no México com o pai doente e, ao retornar, lida com seu grupo de atrizes. Há entre elas a namorada que prometeu lhe esperar, a ex, a atual amante, a amiga que o deseja e a nova atriz da peça, que, por ser desconhecida, lhe aguça a imaginação. Este ano em suspenso paira sobre a ação, pois num filme em que a encenação tudo expõe, aquilo que é deliberadamente suprimido existe sempre como uma possibilidade, um enigma. É um hiato que encontra contrapartida na passagem do texto de Shakespeare do teatro ao rádio por meio do cinema, do corpo à entoação de voz, como se La Princesa de Francia precisasse encontrar um novo mistério em meio ao vórtice de desejos no entorno do ator. Esse processo é complicado ainda mais pela sequência da visita ao museu, no qual é acrescentada a fascinação pela pintura – e, com ela, outro olhar de espectador – ao fluido universo de possíveis representações de desejo do filme.

Para isso, La Princesa de Francia lança mão da imaginação: sequências se repetem de forma diferente de acordo com os desejos e as expectativas de quem as imaginam. O filme se encerra duas vezes – primeiro com uma separação e depois novamente com um dia perfeito que Victor resolve dar a si mesmo – e, dentro da construção que Piñeiro, propõe ambos registram igualmente verdadeiros como possibilidades de reencenar para a sua câmera uma nova avenida de desejo. Andrew Sarris certa vez descreveu a obra de George Cukor – outro cineasta que, como Matias Piñeiro, amava as atrizes e o teatro – como sendo sobre a imaginação, com o foco sobre aquele que sonha, e é possível dizer o mesmo sobre os filmes de Piñeiro (e este La Princesa de Francia em especial): retoma-se sempre um discurso a dois, com várias novas possibilidades de pensar uma relação que ao mesmo tempo é uma só – do ponto de vista dele – e várias – dos pontos de vista delas.

Como os outros trabalhos do cineasta, La Princesa de Francia ganha as formas de um laboratório, de um grupo de atores e técnicos conspirando num experimento. Que tal experimento nasça de uma intriga romântica em que cada um assume um papel muito decalcado é o paradoxo maior do filme. Entre o método e o texto, procura-se dar vazão à liberdade, e a coreografia de corpos busca a espontaneidade da atração. Nesse esforço de colaboração, localiza-se o prazer da descoberta: o texto se desdobra, encontra novas saídas e permite à intriga romântica um novo frescor .

Share Button