Jauja, de Lisandro Alonso (Argentina/Alemanha/Brasil/ Dinamarca/EUA/França/Holanda/Mexico, 2014)

maio 23, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

* Cobertura do Festival de Cannes 2014

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Rastros que as paisagens desmancham
Por Pablo Gonçalo

Um quadro com uma janela mais estreita – este é o primeiro elemento que chama a atenção no filme que Lisandro Alonso apresentou na seção Un Certain Regard, em Cannes. Logo no primeiro plano vê-se um pai, o capitão Gunnar Dineses (Vigo Mortensen), conversando com a sua filha (Vilbjørk Mallin Agger); falam dinamarquês, abordam a viagem que está por vir – e olham para o horizonte. Clássico, o tom do plano é o de uma típica paisagem europeia do século XIX: a luz, a roupa, os gestos comedidos e respeitosos, cerimoniais, a valorização da natureza. De costas, eles miram o mar.

O mote visual da paisagem convida a um olhar dispersivo, mas há um constrangimento inerente à restrita moldura do quadro (filmado numa janela um tanto quadrada, e com certeza mais curta que o normal, mimetizando, talvez, algumas das janelas típicas do 16mm ou do primeiro cinema). Nesse recorte do plano dentro do plano, essa operação da imagem dentro da imagem, parece faltar espaço nas paisagens marinhas – lá, paradoxalmente, onde tanto espaço sobra. Constrangidos pelo quadro, seduzidos pelas paisagens que não conhecem, é precisamente o limite do plano que expele os personagens, que, numa espiral endógena, exerce uma força centrífuga. É um começo que instiga e expõe as principais inquietações do filme: a vontade de desbravar, os projetos e anseios civilizatórios rodeados por paradoxos, entre às delícias e as desventuras das paisagens.

Vem o corte e, num primoroso uso do contracampo, Lisandro Alonso nos leva ao outro lado do olhar daqueles personagens. Mais: percebe-se que fomos conduzidos à face oposta do mar dinamarquês, num corte e numa elipse que, ao mesmo tempo, omitem e transmitem uma travessia. Vemos soldados argentinos falando castelhano. Um deles masturba-se numa poça d’água, enquanto, ao fundo, o mar flutua, sonoro, entre os murmúrios das suas ondas. Novamente, o plano não é apenas lento, bem cuidado, mas propositadamente solene, com uma panorâmica que oferece uma descrição precisa do local, num espaço onde tudo parece possível e imprevisível. Esse será o trecho, ou o ato, mais narrativo de Jauja, como se o diretor argentino precisasse elucidar os minúsculos vasos sanguíneos que bombardearão as espalhadas moléculas da sua história.

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Sabe-se que estamos numa expedição à procura de ouro (mais precisamente na ‘conquista do deserto’, na Patagônia, 1882), um projeto capitaneado por Gunnar Dineses, que trouxe consigo a sua filha, uma bela e rara figura feminina numa terra onde há de tudo – ouro, índio, paisagens e ganância – tudo, menos códigos civilizados. Alguns quadros bastam e revela-se o óbvio: a filha passa a ser cobiçada pelos soldados e se consuma como objeto de disputa entre eles e os índios, e de inócua proteção por parte de Gunnar Dineses. São necessários certos atos dos personagens e um único fato, mínimo, previsível, para que a trama surja e o filme, assim, já pareça ter obtido a engrenagem que faltava para novamente lançar seus personagens mundo afora. Lisandro Alonso filma fugas encadeadas: a fuga da Europa, a fuga ao deserto, a perda da preciosidade familiar. Fugas vãs.

O plot de Jauja remete diretamente a Rastros de Ódio (1956), de John Ford. É o roubo da figura feminina que leva os personagens a montarem seus cavalos e a desbravarem a terra mítica de Jauja, para onde todos querem ir, mas donde ninguém jamais voltou. Lisandro Alonso flerta com os aspectos míticos do Western – o mito como uma força que aglutina e dispersa, que junta povos distintos, gera fricções, mas também leva a um apagamento, mútuo e constante; o mito como uma arquitetura de símbolos, fatos e personagens espalhados, difusos, que recusam uma visão global da narrativa. Mais do que a moral do mito, Lisandro Alonso mergulha nas suas lacunas, numa narrativa cujos quebra-cabeças, peça a peça, quadro a quadro, refutam o plano geral.

No entanto, é curioso, não estamos na mitologia da terra de Cocanha, ou no mito de Eldorado, que levaram os europeus às Américas. Tampouco passeia-se por um Western norte-americano, em que a descoberta do Oeste, junto com a guerra civil, transforma-se no mito fundador desse país. Com uma dramaturgia arguta, Lisandro Alonso refaz e desfaz um Western justamente por instalá-lo nas amplas paisagens dos pampas argentinos, à beira da Patagônia, e, mais audaz ainda, por colocar a perspectiva indígena, tão presente e ausente, como o ponto de vista que atrai e abocanha a civilização. Curiosamente, dos índios vemos muito pouco, o mínimo, como partes, vestígios dos corpos, pedaços da história, cacos de cacos da mitologia sobre Jauja, que é contada, mas que, objetivamente, não conduz a nada. É como se os rastros de uma perseguição, que guiam uma narrativa, fossem apagados junto às cavalgadas não dos índios, mas dos cavalos que portam o afã civilizador de contar uma história de conquista, desbravamento – e extermínio.

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Ao mito, Alonso sobrepõe as paisagens e o deserto dos pampas, terra inóspita, mas misteriosamente atrativa, que a filha do ventre europeu (ou a menina cujo ventre geraria os filhos do novo continente) escolhe para viver. Se o mito e o Western são diluídos e se desfazem, sobram, nesses desmontes e nessas desarticulações, tão somente imagens. Como se fosse preciso engendrar e descombinar as molas que contam a história para começarmos a ver. Junto às paisagens, aos planos, lentos e amplos, do pampa sem fim, e dos pedregulhos das montanhas, Alonso oferece as imagens e os símbolos de um pequeno soldadinho de chumbo, que boia numa poça d’água, e um cachorro ferido, que acaba por conduzir o personagem por cavernas, chuvas, encontros e desencontros com uma velha dinamarquesa que habita essas ásperas paisagens, entre cavernas justapostas que, no escuro, guiam para além do tempo presente. A partir daí, as histórias possíveis multiplicam-se num vetor com tanta pujança exponencial – no cerne da força motriz da fábula – que qualquer interpretação corre o saudável risco de uma especulação aleatória – um perigo, diga-se, próprio à química das imagens.

No epílogo do filme, voltam as paisagens iniciais e, de forma ainda mais complexa, salta-se, numa elipse radical que merece o prazer da descoberta. Lisandro Alonso compartilha gestos inesperados e oferta poesia nos intervalos dessas paisagens que filma, pinta e retrata. Mais do que hiatos temporais, esses intervalos – como alguns dos intervalos musicais – geram desmanches, contrastes e choques sensíveis, numa narrativa paradoxal, que se anula enquanto conduz, opera e articula. Suas imagens, concisas e centrífugas, acabam por dispersar todos os rastros daquilo que chamaríamos de civilização, rastros que não se sustentam, como pegadas narrativas, e tampouco geram uma conquista do deserto.

Nessa ausência de linhas possíveis, não há histórias, mas apenas instantes, resilientes aos adjetivos, como na única cena noturna, na qual o personagem dinamarquês é abocanhado pelo céu enquanto escuta-se uma melodia. Perdido no deserto que não teme (e perdendo-se entre o mito que desdenha), o capitão Gunnar Dineses parece sintetizar o próprio desmonte de um olhar europeu. Tal como o Horácio Oliveira do Rayuela, de Julio Cortazar, o célebre romance que oscila entre Paris e Buenos Aires, ao fim e ao cabo é a própria narrativa quem fica paralítica, catatônica e em estado de choque. Cortázar e Alonso abordam um não-dizer que transforma-se em versos, em prosa, em imagens. Nesse amálgama, qualquer interpretação será como uma viagem por um deserto de desvarios… mas arrisca-se e, quem sabe, mesmo bem distante das alegorias, Lisandro Alonso talvez tenha captado, sensivelmente, o impasse narrativo de uma herança colonial e civilizatória. Oferece o reverso do olhar ocidental apenas para enunciar que existem outros sujeitos, com outras poéticas do olhar. Há, na singela imagem de um soldadinho que flutua na água e atravessa oceanos, uma requintada poética e política – e, claro, não é todo dia que testemunhamos empreitada similar.

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