How to Disappear Completely, de Raya Martin (Filipinas, 2013)

junho 4, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Victor Guimarães

how to disappear

A vingança de uma mulher
por Victor Guimarães

Logo nas primeiras imagens, How to Disappear Completely delineia o terreno sobre o qual irá se debruçar: num plano com as bordas desfocadas, um rosto ocupa o centro do quadro, o medo estampado em cada poro, e uma voz feminina sentencia: “Eu vou matar você. Eu vou matar todos vocês”. A intriga que vem a seguir é a saga da dona dessa voz, uma menina atormentada pelos mais diversos fantasmas (familiares, religiosos, sociais), que decide empreender uma vingança implacável contra todo um estado de coisas. A homenagem à canção do Radiohead no título é ambígua: a trajetória da protagonista não expressa apenas o desejo de não estar aqui, mas também o de fazer desaparecer do mundo tudo aquilo que a faz querer não pertencer a ele.

A escolha de Raya Martin por narrar essa história não é das mais comuns. À aridez do tema – uma situação em que se misturam diversas camadas de violência cotidiana –, o realizador não oferece um tratamento moderado, calcado no realismo sóbrio, mas justo o contrário: o filme é profundamente artificial, pop, imerso em códigos do cinema de horror. Sobram desfoques incisivos, trilha sonora eletrônica bastante expressiva, minutos e minutos de câmera lenta, um tom videoclipesco em diversas sequências e uma fotografia de cores esmaecidas que tende a um verde doentio. O mergulho em uma trajetória trágica é amparado por uma liberdade na encenação que não hesita em abraçar o excesso calculado.

A primeira parte do filme consiste no cotidiano da garota, entre as voltas para casa pela floresta, as frases bíblicas da mãe e as atrocidades do pai bêbado e viciado em rinhas de galo. Ela é um corpo estranho, prenhe de desejo represado. Em chave onírica, o filme faz com que as pequenas crônicas de costumes (as conversas doutrinárias na cozinha, as bebedeiras regadas a um machismo renitente) se misturem aos devaneios que transfiguram os fantasmas reais – a mãe, o pai, o conservadorismo da sociedade filipina – em assombrações (como a lenda da velha senhora que ainda procura os familiares após uma tsunami no século XVII).

Momento chave do filme, a peça apresentada pelos alunos na escola da menina é didática. O grupo de adolescentes tece uma narrativa épica sobre o país em que vivem: “As Filipinas. Divididas entre muitas ilhas. Serenas. Sem perturbações. Os filipinos são conhecidos por sua gentileza e hospitalidade. Levam vidas simples e valorizam a religião e a família acima de tudo”. A hipocrisia latente na sociedade filipina – que já era bastante clara nas figuras caricatas do pai e da mãe – é explicada em poucas frases, e o esquematismo já perceptível até ali encontra uma prova inconteste. Diante da peça, a sequência em que a menina tentava carregar uma santa de porcelana e duas garrafas de gim ao mesmo tempo se torna uma metáfora ainda mais óbvia das forças morais em jogo. Após narrarem um episódio histórico em que um soldado norte americano assassinava um garoto inocente em um mercado, os jovens atores encerram o espetáculo com uma ameaça frontal dirigida à plateia: “Um alerta para todas as pessoas que fazem coisas atrozes: nós vamos caçar vocês”.

A melhor sequência do filme é muito potente em si mesma, mas sua dramaturgia é a do presságio. A frase é o disparador para o que vem a seguir: logo após a apresentação, a menina desaparece do carro dos pais e os atrai até a floresta. Na noite iluminada pelo fogo de uma cruz em chamas, ela consuma sua vingança anunciada a tiros, enquanto a montagem oscila entre a figura da menina e a da assombração da velha senhora. Fundida materialmente a essa imagem mítica, a atitude particular da garota é plasmada em uma vingança imemorial, a-histórica, contra tudo e contra todos. O epílogo que se segue à consumação do ato (um grupo de jovens skatistas profana um cemitério e estupra um grupo de colegiais que passava por ali) contribui para a tessitura – igualmente mítica – de uma malaise generalizada, de uma doença moral que penetra o tecido social e contamina tudo o que vemos.

É então que o esquematismo de Raya Martin encontra seu limite: não há atitude política mais estéril do que não distinguir os inimigos. O atentado à moral de uma sociedade hipocritamente enraizada na família e na religião, ainda que filmado com ares de contemporaneidade, termina velho e desgastado. Ainda que construída dramaturgicamente como reparação de um dano, a vingança faz parte do mesmo manancial de símbolos unidimensionais, sem ambiguidade alguma. O investimento na metáfora – a santa e as garrafas de gim, a cruz em chamas – é a pior forma de combater fantasmas que parecem bem reais.

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