Galo de Briga (Cockfighter), de Monte Hellman (EUA, 1974)

setembro 1, 2016 em Em Pauta, Pedro Henrique Ferreira

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Filmar uma briga de galo
por Pedro Henrique Ferreira

É muito improvável que, diante de um tema como o de Galo de Briga (1974), um diretor possa se portar de forma completamente isenta. Animais lutam até a morte. Homens assistem e apostam nos vencedores. O circo sangrento deve tornar-se imagem de alguma forma, deve ser captado pelas lentes da câmera. Diante da escolha de um tema como este, o lado moral é incontornável. Grande admirador de Jacques Rivette, Monte Hellman provavelmente não ignorava esta necessidade vital do cinema quando elegeu o livro a adaptar e viu a produção cair em suas mãos no ano de 1974. E no entanto, há algo de particular na distância com que lida com seu objeto, na forma como rejeita tornar aquilo que é incontornável o ponto central da equação, na maneira como se recusa a emitir máximas ou lançar julgamentos ostensivos sobre seus personagens. Não é plenamente questão de isenção, mas um outro modo de operar juízos sobre aquilo que vemos.

Um breve recuo preliminar talvez esclareça. Em 1971, com Corrida Sem Fim, Hellman levava ao ápice a síntese entre os road movies norte-americanos dos anos 1970 que tiveram com Easy Rider (1969) um protótipo, e a experiência arquitetural de um Antonioni, que por outro lado era o desaguar de uma longa tradição existencialista típica à arte europeia. A trama sobre estas figuras transitórias que disputam pegas nas estradas e vivem para uma única obsessão com a velocidade se tornava, neste filme, um vasto repertório de intervalos e tempos mortos, imersos nas paisagens suburbanas, desérticas e rurais. Os momentos de ação são negligenciados em benefício de paradas na beira da estrada, lanches e almoços, breves conversas com caronas ou descansos. Como o ensaio de Kent Jones sobre o diretor bem notou, “o filme se move em um ritmo uniforme e suave”. Não há ênfase na ação. Não há desenvolvimento dramático rumo a um clímax. As cenas que representariam o ponto de gozo – os pegas propriamente ditos – são inclusive evitadas ou resolvidas rapidamente. O que existe são blocos de tempo, retratos do cotidiano desta tribo de estradeiros que vivem sob suas próprias ritualísticas.

A herança de Antonioni no cinema de Hellman surge no âmbito mais filosófico-existencialista que marxista-materialista. Não estamos diante da crise de consciência burguesa. A angústia não é o beco sem saída de uma classe social. São jovens sem eira nem beira, seres sem passado ou futuro, que lançam-se à estrada e nela reconhecem, com seus pares, uma forma de existir. O personagem de Oates é avant la lettre uma espécie de Jack Nicholson (que firmou parceria com Hellman em alguns filmes) em Profissão: Repórter (1975), de identidade incerta, falastrão, mentindo sobre seu pano-de-fundo e seu destino para cada novo companheiro de viagem. O protagonista encenado por James Taylor é uma esfinge silenciosa obcecada por sua paixão pela velocidade, que sonha em, com ela, desaparecer na imensidão desértica da paisagem. “Um fio comum na arte dos anos setenta”, adiciona Jones, era “a importância da paisagem como tecido conjuntivo, pedra angular, morada, cura ou punição auto-imposta”. Com efeito, os recorrentes planos de carros desaparecendo na imensidão reafirmam o lugar concedido à paisagem antonionesca no cinema de Hellman, como estes personagens desprovidos de um passado e de um futuro mais claros que justifiquem seus atos se encontram sob a égide de certas paisagens e, no interior delas, participam de uma forma de existir.

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Três anos separam Galo de Briga do eterno clássico sobre pegas na estrada. Nesse intervalo, Hellman correu atrás de financiar alguns projetos, mas nada terminou viabilizado até lhe ser oferecida a direção da adaptação do livro de Willeford. A trama é a história de um preparador de galos para briga que, após perder a medalha do ano anterior por ter falado demais e cantado vitória antes da hora, faz voto de silêncio até receber a nomeação ao título no ano seguinte. Assim como nos víamos diante das obsessões de pessoas pela velocidade de automóveis no seu longa-metragem anterior, agora estamos perante um novo cenário de indivíduos que, por razões inexpressas (a voz over inicial procura em vão dar uma motivação, dizendo ‘aprendi a pilotar aviões, perdi o interesse… fui esquiar, porém perdi o interesse… Mas isso é algo que não se pode prever: qualquer coisa que puder lutar até a morte sem fazer um ruído…’), conduzem suas vidas treinando e apostando em galos que se digladiam. O tema é o mesmo: um grupo de homens e suas obsessões. A chocante sensação de familiaridade com o universo também. Mas as formas de construção já não o são.

A paisagem já não tem a mesma preponderância que antes. Ela não é o catalisador dos laços que unem os personagens às coisas. Os bosques temperados sulistas estão lá, com seus ranchos improvisados, moradias em trailers, casas com animais empalhados nas paredes, rios doces, hotéis de beira de estrada, tratores nas florestas, broncos reunidos, vestidos de calças jeans apertadas, macacões, camisas quadriculadas, lenços e chapéus. Há uma clara regionalização dos cenários, mas a paisagem não denota o drama existencialista de Antonioni. Ela não é ponto de confluência. Quase não há mais os planos gerais que aglutinavam figuras humanas. Neste sentido, agora Hellman se demonstra menos um pintor de paisagens do que um retratista de costumes. O repertório é formado por planos médios e fechados que nos introduzem, por vezes até didaticamente, a uma realidade cotidiana. A maior parte deles recorre a uma tática predominante no cinema a partir dos anos 1980: as lentes teleobjetivas à distância, criando planos médios, forçando o foco a um ponto mais crítico e deixando sobrar elementos cenográficos no primeiro plano, utilizando-se de panorâmicas para seguir as ações dos agentes. Hellman parece aqui se adiantar ao cinema por uma década.

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Há algo de essencialista nesta diferente concepção espacial. O quadro não delimita, não abriga ou promove choques e encontros. Ele registra hábitos, características, rotinas humanas. Mas o espaço geográfico se espraia para além dele, dando-nos a sensação de um mundo mais amplo, com figuras que nada têm a ver com aquilo. Em Galo de Briga, ainda nos encontramos no registro dos intervalos da vida, da narrativa uniforme sem montanhas russas dramáticas, nos blocos de cotidiano que são puros estar-aí. Mas o onipresente sentimento de angústia dá lugar a um olhar que beira o antropológico, à seleção, justificativa e inserção do espectador num modus operandi no qual é invasor. Ele pode ou não compactuar com aquilo. Naturalmente, se Corrida sem Fim era um filme sobre o encontro entre duas pessoas no mesmo espaço, Galo de Briga é justamente a inversão dialética disto: o desencontro.

Uma imagem é fundamental. O mesmo Warren Oates, antes falastrão, é agora um túmulo. É pura ação. Faz o que tem de ser feito. É o protótipo de uma faceta da cultura norte-americana tão costumeiramente retratado nos filmes de Ford e Hawks. Em uma sequência, está sentado ao lado da amada à beira de um rio. O reencontro dos dois conduziu-os à cena de amor. Hellman enquadra-os em um plano conjunto em plongèe. As águas do rio refletindo o céu brilhante tomam o fundo inteiro do quadro, de modo que seus corpos ficam quase sem volume, planimétricos. Estão, os dois, isolados do mundo, somente com aquela paisagem, em uma composição que nos recorda um pouco uma imagem semelhante em Terra de Ninguém (Badlands, 1973), de Malick. Mas a paisagem comum não os reúne. Eles conversam sobre as razões que conduziram o relacionamento ao fim: ela queria se casar; ele só quer saber dos malditos galos. É uma estupenda cena sobre a distância entre eles, embora ambos estejam ali, juntos.

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Esta passagem da utilização da paisagem em Corrida Sem Fim para a estratégia de câmera perseguida em Galo de Briga talvez revele um certo heideggerianismo de Hellman (muito mais do que o de Malick). O ser é, mas, sendo, ele é sempre um ente, um ser-no-mundo que só existe como parte e em relação com outras coisas, compondo assim todo uma forma de ser específica. Aqueles homens todos vivem sob uma conjuntura, abraçando-a, compondo-a. Não à toa, tanto tempo é dedicado à ritualística e à descrição de regras. Não há protagonismo ou antagonismo, mas irmandade sob aquela mesma cultura dos que vivem cotidianamente as brigas de galo. Não há brigas importantes e brigas menos importantes, são todas fragmentos de um mesmo todo. Os frequentes planos médios o atestam. O tom monocórdico o atesta. A forma objetiva, realista, anti-dramática, com que observa os animais e seus tratos diários o atesta. Tudo é capturado no registro do estar-aí.

Mas o que torna o olhar de Hellman excepcional é justamente o jogo entre a estratégia descritiva, que beira a antropologia, com a frequente sensação de que não participamos ou conhecemos realmente aquele universo, uma tendência quase niilista de que absolutamente nada daquilo faz sentido algum e que esta brincadeira aparentemente sem a menor lógica irá em algum momento se romper, que o véu irá cair e nos deixar novamente no precipício do nada. Temos, com efeito, familiaridade (é curiosamente um dos primeiros conceitos discutidos em Ser e o Tempo) com o mundo das brigas de galo, é vero, mas devemos ainda adicionar que todos os adereços que nos colocam lá dentro também nos expulsam. Este mesmo ritmo estável, sem subidas ou descidas, que nos dá a sensação de um cotidiano, nos proíbe também de notar o que ali é importante e o que é circunstancial. Ao espectador é reservado um entre-lugar, na dúvida se participa ou não do teatro.

O pulo do gato está aí. Durante a elaboração do roteiro, graças à centralização de Corman, Hellman pôde dedicar-se quase que exclusivamente às sequências do relacionamento entre o protagonista Frank (Oates) e sua amante Mary Elizabeth (Patricia Pearcy). São justamente elas que trabalham narrativamente o problema estético e filosófico de Briga de Galo. Além da cena supracitada, o único outro encontro do casal é na sequência derradeira do longa-metragem. O treinador a convida para assistir a uma competição para que ela conheça este seu universo ao qual ela não pertence. Ela fica horrorizada. É o oposto dos clichês tradicionais onde a chegada da amada impulsionaria o protagonista à vitória. Ele vence, mas ela o odeia. O fim do longa-metragem poderia ser trágico, mas há um quê de complacência. E ironia. Frank arranca a cabeça de seu galo campeão e entrega à sua amada. É o símbolo de seu amor. Ela o recolhe com um lenço, cheia de repulsa, mas entende que aquele é o único gesto de amor possível dentro de seu microcosmos. Então, abandona-o: pertencem a mundos diferentes. Ele sorri e fala (pela primeira vez não em voice over) que ela o ama. Em uma tacada, soluciona o problema que perpassara todo o longa-metragem e, indiretamente, responde à altura o influente plano que marcou época no imaginário cinematográfico na conclusão de L’avventura (Antonioni, 1960), quando o casal encenado por Ferzetti e Monica Vitti observam a paisagem e dão as mãos, reconciliando-se.

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Todo gesto moral do cineasta está contido não nos julgamentos externos, não nas assertivas para com o universo que dedicou-se a filmar, não na sabotagem de seus personagens, mas na simples opção que dá ao espectador de, como Mary Elizabeth, ser convidado a assistir o espetáculo e odiá-lo, sentir que dele não participa. Compreendê-lo, inclusive no uso mais básico de seus signos, e afastar-se. Por focar-se no simples estar-aí das coisas, por não banalizar o que existe e nem torná-lo um mero acessório para nos impor um julgamento externo àquele universo, por tratar seres humanos como seres humanos, é que Galo de Briga adquire um potencial crítico enorme. E nos recorda que a arte tem suas próprias formas de operação que independem daquilo que queremos que ela seja ou diga de antemão.

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