Fruitvale Station, de Ryan Coogler (EUA, 2013)

fevereiro 9, 2014 em Em Cartaz, Filipe Furtado

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A segunda morte de Oscar Grant
por Filipe Furtado

Nas primeiras horas de 1º. De Janeiro de 2009, Oscar Grant III, um jovem negro de 22 anos que comemorava a virada do ano com amigos, foi abordado por um grupo de policiais numa estação de metro e, no meio de uma discussão, terminou executado por um deles. O crime – que lembra muitos casos que lemos sobre por aqui – foi registrado por câmeras de celular e recebeu ampla cobertura da imprensa americana. Quatro anos depois, ele serve de base para este Fruitvale Station, estreia na direção de Ryan Coogler, de ótima carreira pelo circuito dos festivais.

A primeira questão que Fruitvale Station levanta é justamente como erguer uma ficção a partir de uma tragédia tão recente, cujos detalhes gerais foram divulgados amplamente. A opção do filme é abrir com imagens de celular do ocorrido – as mesmas imagens autênticas que serviram para amplificar o impacto da história na opinião pública – e retornar para o momento anterior para acompanhar o último dia de Grant. Toda a força de Fruitvale Station deriva destas imagens iniciais e sua reencenação na sequência final do filme: sua razão de existir está ligada às possibilidades de a ficção recriar a brutalidade do abuso de poder que custou a vida de Grant.

O último dia de Grant é reproduzido por Fruitvale Station com uma fragilidade incapaz de esconder como cada sequência e cada personagem existem exclusivamente para cumprir uma função simbólica neste trajeto até a morte. Trata-se de um último dia em que tudo grita o tempo todo para sua condição de dia final. Há dois modos de sequências em Fruitvale Station: aquelas que reforçam a bondade de Grant, a quem o filme é incapaz de imaginar como algo menos que um santo indo ao sacrifício para melhor sublinhar a brutalidade de sua morte; e aquelas que reforçam o caráter determinista deste dia final. Se Fruitvale Station é um filme sufocante, é menos pelo triste destino do seu protagonista, e mais porque antes cabe a ele ser prisioneiro de uma lógica de ficção de boas intenções que ultrapassa o ineficaz para se tornar somente opressiva.

Qualquer potência dramática que o último dia de Grant poderia ter é substituída pela necessidade de ilustrar como ele chegou ali, seja por coincidências risíveis, seja por momentos que reforcem sua posição de vitima de violência policial. O que impressiona em Fruitvale Station é como sua funcionalidade sacrifica qualquer chance de celebrar as últimas horas de vida do seu protagonista. A ele não cabe viver, mas somente morrer. O filme só é capaz de funcionar sob a lógica do sacrifício: se o “baseado em fatos reais” costumeiramente é uma cartela que aponta para a necessidade do filme em se apoiar em tal ideia, Fruitvale Station pouco faz além de vampirizar o assassinato de Grant. O status real do crime é essencial para justificar a pobreza da ficção que Coogler ergue ao longo do seu filme.

Tudo isso chega no ponto máximo na sequência grotesca em que Grant encontra um cachorro atropelado e acompanha a sua agonia. É um momento bem característico da abordagem de Coogler do material: ao cachorro, falta somente uma coleira que aponte sua função simbólica, e não há nada na encenação capaz de fazer com que o momento escape do ilustrativo. Há uma tensão clara entre a estética naturalista do filme – que deseja sempre reforçar a sua autenticidade – e a sua dramaturgia – toda construída sobre saídas e soluções que se alternam entre o fácil e o grosseiro.

Se o verdadeiro Oscar Grant foi vitima da brutalidade da polícia, o Grant ficcional é antes de tudo vítima dos realizadores com boas intenções. A Fruitvale Station, ele interessa somente pelo caráter de símbolo da opressão policial. A atuação de Michael B. Jordan é o que o filme tem de melhor – e sua única justificativa para existir como ficção e não um documentário –, mas há um limite para o que o ator pode fazer diante da violência simbólica que o filme de Coogler impõe sobre a sua personagem. Se Fruitvale Station é um filme determinista, este determinismo não é só o da violência da polícia, mas de realizadores dispostos a massacrar seu personagem até que lhe reste somente o caráter simbólico. O Grant de Fruitvale Station termina sacrificado para a edificação da sua plateia cheia de bons sentimentos, mais do que disposta a encarar um snuff movie das boas intenções. Mais do que seus crimes estéticos, o filme se revela abjeto pela forma que reduz a vida e morte de Oscar Grant a uma espécie de corrente de Facebook. Fruitvale Station encena a morte de Oscar Grant duas vezes: primeiro pelas imagens de arquivo e depois como ficção. Faz sentido, pois o movimento do filme é o mesmo, partindo de uma violência concreta e reduzindo-a a outra abstrata. Se há algo a dizer sobre Fruitvale Station é que o filme demonstra como a violência do discurso – independente da posição ideológica – pode se revelar ela própria somente destrutiva.

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