From Gulf to Gulf to Gulf, de Shaina Anand e Ashok Sukumaran (Índia/Emirados Árabes Unidos, 2013)

junho 1, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

from gulfPassagem
por Filipe Furtado

From Gulf to Gulf to Gulf começa com uma legenda que informa que o material seria baseado em eventos reais e em vídeos de eventos reais. Trata-se de uma forma muito particular de abrir um filme de não-ficção, reafirmando algo que à primeira vista não poderia ser mais evidente, mas é uma legenda bastante informativa a respeito deste primeiro longa da dupla Shaina Anand e Ashok Sukumaran. Pois From Gulf to Gulf to Gulf existe sempre num espaço de passagem, não só pelo movimento constante das diversas embarcações indianas que lhe servem de cenário, mas por ser um filme que busca justamente um espaço de fluxo entre a descrição de um meio de vida e a busca constante de uma potência cinematográfica nas imagens amadoras que formam a maior parte do material. O que há de mais relevante nesta descrição inicial é justamente a distinção entre evento e vídeo, já que, na maior parte da sua duração, From Gulf to Gulf to Gulf se coloca nesta passagem do cotidiano para a imagem, para o ato de captá-lo com a câmera de um celular.

Anand e Sukumaran passaram quatro anos em contato com trabalhadores navais do sudoeste asiático, recolhendo os vídeos caseiros que eles realizaram a bordo dos seus navios. A maior parte do filme consiste na montagem deste material, intercalada com ocasionais sequências de vida nos portos, rodadas pelos próprios cineastas. Ao longo do filme, alguns motivos se tornam aparentes, especialmente o do renascimento e da finitude – não à toa, o filme exibe carcaças de embarcações em seu começo, e faz uma visita a um cemitério numa de suas sequências finais. Há uma presença constante das possibilidades do mar, assim como uma religiosidade que acompanha cada trajeto, que se desdobra em como o filme acredita nas possibilidades de potencializar suas imagens. Ao mesmo tempo, os cineastas operam de forma a organizar estas imagens sem que elas apontem para uma progressão. O material parece existir perdido neste movimento de passagem pelo mar, pronto para ser observado de qualquer ponto, o que por vezes torna o filme um tanto solto.

Há, porém, um curioso processo de contaminação na estrutura do filme, no qual o material dos marinheiros aos poucos engole aquele dos próprios cineastas, e se torna ele próprio a verdadeira estrela de From Gulf to Gulf to Gulf. A ação se move sistematicamente da profundidade do plano para a sua superfície, e a etnografia também é desmontada pela opção de identificar regularmente as embarcações, mas jamais os trabalhadores navais, o que aos poucos produz um efeito de despersonalização que os mantém sempre à distância, mesmo quando se faz uso de material íntimo do cotidiano deles.

O filme vai aos poucos buscando revelar a qualidade táctil de suas imagens. Anand e Sukumaran realçam os elementos que denotam a fragilidade da imagem captada em baixa resolução – como o pixel, o serrilhado e as sombras mal definidas – abraçando-os como mais uma forma de localizar força naquele trajeto. O trabalho, os barcos, o mar, tudo se transmuta numa figura chapada de cinema cujo sentido se completa dentro do plano. Em vários momentos, o filme abandona a descrição pela possível força pictórica das suas imagens – como no plano final, em que a ação central é uma procissão, mas o elemento de cena destacado é o reflexo da luz sobre a água suja.

Ao longo do filme, a descrição daquele espaço e sua transformação em imagens passam a se alimentar um ao outro. É um equilíbrio delicado, que também passa por uma relação de poder entre os cineastas – que organizam o material – e os trabalhadores que o produziram. A sequência inicial, na qual dois marinheiros se filmam enquanto encenam cortarem a garganta um do outro, deixa claro que toda a potência daquelas imagens não interrompe um risco e uma violência inerentes àquele espaço.O filme encontra suas maiores possibilidades de escape nas sequências musicais, em que gravações do mar captadas pelos trabalhadores são combinadas com trilha-sonora escolhida por eles mesmos. Os diretores confiam demasiadamente na certeza da potência destes momentos, um pouco diluída na repetição do procedimento, mas é inegável que se encontra ali uma grande força, pelo encontro do trajeto constante dos navios em alto mar e dos eventos em vídeo .

From Gulf to Gulf to Gulf poderia facilmente se acomodar como somente mais um hábil exercício de etnografia, mas o frescor do filme vem da maneira como este material dos trabalhadores é reimaginado pelos realizadores. Há uma tensão constante entre os dois movimentos que o filme realiza: de um lado, o acúmulo de situações ajuda a construir um painel de costumes e atividades daqueles homens; de outro, o filme todo trabalha de maneira a mover seu sentido para sua presença nas imagens. Anand e Sukumaran evitam a saída fácil de transformar o seu material amador num significante de autenticidade, ou numa tentativa de intensificar uma suposta intimidade com seus personagens. Como a distinção entre evento e vídeo na legenda inicial já indicava, aqui estamos sempre muito conscientes de que o filme habita não embarcações, mas imagens de embarcações, e de que seus possíveis sentidos se resolvem muito mais sobre a imagem do que numa imersão no meio que elas retratam.

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