Forma, de Ayumi Sakamoto (Japão, 2013)

junho 3, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

forma

Voltas sobre o não dito
Por Filipe Furtado

O princípio que guia este longa de estreia de Ayumi Sakamoto é o do ressentimento passivo agressivo. Forma se constrói circundando a si mesmo várias vezes, justamente na busca por dar expressão a manifestações que partem do não dito. O título enigmático do filme não deixa de ser bastante feliz, na medida em que o seu processo pressupõe partir de uma origem dramatúrgica muito clara – duas ex-colegas de escola se reencontram após dez anos, mas essa reaproximação é marcada pelo ressentimento – e movê-lo na direção da abstração. Todo o jogo narrativo proposto por Forma busca envolver suas duas personagens nas sombras e manter suas motivações em suspensão pelo maior tempo possível. É um processo que expõe a maior fragilidade do filme, já que todo este esforço de preservar o mistério das suas personagens resulta em pouco mais que postergar ao máximo a chegada até conclusões inevitáveis. Todas as operações e voltas do filme desaguam no mesmo local óbvio.

Sakamoto aposta numa apresentação em estilhaços, na qual a ausência é sempre ressaltada. O sempre muito bem cuidado enquadramento do filme frequentemente opera rumo a reforçar o que está logo após a borda: personagens por vezes conversam com outros mantidos fora do plano, de uma maneira que sublinha o que as suas relações têm de instáveis e irreconciliáveis. O limite do quadro sugere uma fronteira, e tudo fora dele pode se configurar como ameaça de um mundo exterior com o qual as duas personagens centrais têm grande dificuldade em lidar. A outra opção de encenação que reforça os buracos na ação é um gosto constante pelo uso de objetos de cena de forma a bloquear a visão de certas ações, mantendo até mesmo o confronto final entre suas protagonistas somente parcialmente visível. A ideia geral de que ambas as jovens têm grande dificuldade para perceber o mundo para além do seu ponto de vista é um tanto óbvia, mas o uso do quadro em Forma consegue localizar neste conceito alguns momentos de força.

Este mesmo pressuposto também serve para justificar a menos bem sucedida construção em camadas da narrativa do filme. A ação é vista pelo olhar de Ayako Kaneshiro (Nagisa Umeno), que consegue emprego para Yukari Hosaka (Emiko Matsuoka), e logo começa a tratá-la com uma passividade agressiva até pouco mais de uma hora de projeção, confluindo para um confronto entre as duas que não se pode apreender de todo. O filme então retoma a ação por outras duas vezes, usando os pontos de vista da outra amiga e de um terceiro personagem que está presente neste último confronto como testemunha, e serve para triangular a ação. Cada novo retorno oferece outra perspectiva, mas busca também obscurecer alguns elementos que até então pareciam claros.

Forma não busca se afirmar como um enigma a ser decifrado em si, ou um simples jogo de perspectivas aos moldes de um Rashomon (1950). É visível o desejo de Ayumi Sakamoto para que o sentido do seu filme permaneça obscurecido mesmo quando todas as cartas já tenham sido colocadas na mesa, mas é um processo que fracassa, pois sua trama é primária demais para sustentar tal aposta. A estrutura narrativa termina por sugerir pouco mais que um jogo, dando muitas voltas para chegar a uma conclusão óbvia, porque os conflitos não têm imaginação suficiente para sugerir um mundo próprio que sustente o seu mistério para além das soluções para questões narrativas da trama.

Parte do problema é que, por todo o desejo de Sakamoto de manter seu filme envolto em sombras, Forma se revela mais forte nos momentos em que o filme abandona seus princípios mais abstratos. Sobretudo durante boa parte da primeira metade do filme, quando as motivações narrativas permanecem em suspenso, sua força reside quase toda na linguagem corporal das duas atrizes e na maneira em que Forma esquadrinha as diferenças de estar no mundo entre elas – Umeno, em especial, é muito hábil em sugerir agressão sem jamais fazer um movimento abrupto ou direto. Na realidade, boa parte de Forma é uma disputa de poder entre as duas amigas que se revolve menos através de ações do que pela maneira que uma se comporta diante da outra, e é uma pena que o filme pareça muito mais interessado nos seus jogos estruturais.

Todos estes elementos culminam na sequência final, na qual o confronto entre as amigas é finalmente exposto por inteiro e, após duas horas de trabalho sempre na direção do abstrato e o não dito, o filme tenta dar um salto rumo ao visível. É uma sequência notável pelo seu comprometimento: são cerca de vinte e quatro minutos rodados em plano fixo, na qual todo o ressentimento expresso via olhares e gestos até ali é permitido explodir de forma física. A ação se esgota bem antes da conclusão e como um todo beira o insuportável, mas a disposição de Forma de deixá-la seguir até as suas últimas energias lhe garante uma inegável força. O plano geral fixo, o posicionamento disperso dos atores dentro do quadro e o uso cênico do depósito no qual a ação transcorre ajuda a reforçar a impressão de que estamos diante menos de um palco para um drama do que de um laboratório, de um grande exercício em que aqueles personagens servem apenas como peças de um jogo de camadas estético-narrativas que permanece sempre curioso, mas nunca escapa ao estéril.

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