FAVULA, de Raúl Perrone (Argentina, 2014)

agosto 12, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

favula

Os prazeres da ficção
Por Filipe Furtado

Nossa percepção do cinema argentino contemporâneo é marcada por algumas ideias bem decalcadas: ou um encaixe nas regras do filme de arte ou uma grande eficiência narrativa, o gosto pela autoficção, certo naturalismo, temáticas que frequentemente reverberem a interminável crise econômica, etc. Existem, porém, alternativas para olhar esta produção que passam distante dos nomes consagrados (Trapero, Martel, Alonso, etc.) e apontam para modos independentes de produção com objetivos desligados destes referentes. Já falamos em outras oportunidades aqui na Cinética da importância de Mariano Lliñas para jovens cineastas, mas outro cineasta traçando uma trajetória alternativa no cenário argentino, ao mesmo tempo muito mais prolífica e marginal, é Raúl Perrone, que, desde meados dos anos 1990, filma em sua cidade Ituzaingó, geralmente em vídeo (como ele explica na entrevista a Gustavo Beck, prefere o termo a digital, o que por si só diz muito sobre sua perspectiva sobre o cinema) e com poucos recursos. O cinema de Perrone se distancia de seus conterrâneos justamente por abraçar o prazer do imaginário da ficção argentina e tentar transmutá-lo em termos de cinema – abrindo mão dos diálogos, por exemplo, e substituindo-os por som e musica – mas, ao mesmo tempo, FAVULA passa distante de pastiches conscientes como Tabu (2012) ou Independência (2009): não há um desejo de recuperar uma tradição para novos usos e/ou diálogo, apenas a crença de que há algo na sua combinação de elementos que mereça ser explorado.

O que domina FAVULA é a presença da floresta que lhe serve de palco, um espaço mítico deliberadamente artificial ao qual seus atores são sobrepostos. O efeito alcançado lembra o de algumas adaptações teatrais de Alain Resnais, apesar de os métodos de Perrone serem bastante distintos. É um espaço de sonho e pesadelo envolto numa constante ameaça, e neste ponto a imperfeição da captação em vídeo de Perrone é essencial, emprestando um elemento a mais à atmosfera do filme. FAVULA é um filme sobre uma floresta encantada cujo encantamento clama os corpos que por ali passam. Num filme etéreo cujas desgraças existem sempre numa chave essencial, a simplicidade dos seus meios de produção é o que lhe garante um choque concreto, o que lhe mantém ancorado. Perrone joga para o primeiro plano tudo que há de artificial em suas construções, reforçando o que aquele espaço tem de palco (contrastando muito com a simplicidade da casa de família à qual o filme frequentemente retorna) – um processo só amplificado pelo uso de som cuidadosamente construído para servir de guia narrativo. Com isso, FAVULA chega a um resultado muito particular, que é o de se afirmar como um filme de estúdio caseiro, com tudo que tal ideia tem de paradoxal. Neste processo, o diretor recupera a fabulação do terreno da indústria para o cinema experimental, dinamitando a separação entre experimento e fabulação, e afirmando que os prazeres da ficção não precisam ser acompanhados somente pela eficácia do cinema industrial.

No filme anterior de Raul Perrone, P3ND3JO5 (2013), acompanhávamos jovens skatistas de Ituzaingó e aos poucos nos dávamos conta de que assistíamos a um filme de horror em processo: a história de corpos que caminhavam para o desaparecimento. FAVULA acontece num estágio posterior: é um filme de fantasmas e não de futuros fantasmas, como P3ND3JO5. Novamente, vários – se nem todos – os seus personagens centrais são jovens e a câmera de Perrone, a despeito de toda a sua construção deliberada, não esconde sua imensa curiosidade. Sobre tudo paira o espectro da violência, a certeza de que dali não haverá muitas saídas. Se existe uma rota de fuga, ela se dá pelas imagens do próprio filme, cuja imaginação sugere outras possibilidades. Uma vida nas sombras.

Se algo aqui se aproxima do cinema mudo, não é a ausência quase completa de diálogos, mas a ênfase nos rostos. Não estamos distantes da contemplação de rostos de Griffith (ou, de forma mais contemporânea, de Garrel), e, se a arte de Griffith é a do primeiro plano, a de Perrone é de, através do artificio, localizar nova expressão a estes rostos. São rostos cansados e marcados que Perrone privilegia ao retomar um espaço imaginário, permitindo-os se tornarem ficção. Se por mais nada, FAVULA já mereceria destaque por resgatar a capacidade do cinema de tornar estes rostos eternos.

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