Faroeste, de Abelardo de Carvalho (Brasil, 2014)

março 1, 2015 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Marcelo Miranda

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Entre os sons e os excessos
por Marcelo Miranda

Nas primeiras imagens, uma série de planos-detalhe focaliza, um a um, objetos da indumentária do protagonista de Faroeste enquanto ele se veste. São elementos reconhecíveis na iconografia do gênero que dá título ao filme. É como se, naqueles instantes iniciais, o próprio longa-metragem de estreia de Abelardo de Carvalho estivesse se trajando daquilo que vai lhe orientar. O nome, porém, surge na tela apenas ao final da projeção, mais como uma assinatura de identidade (“faroeste”) do que exatamente o título de uma obra. Há uma relação genérica e particular com a tradição: ao mesmo tempo em que a produção carrega no batismo a geografia de suas origens (“oeste distante”) e toda a carga e peso de uma história que remonta ao começo do próprio cinema, ela se vincula mais assumidamente a certo tipo de tradição – no caso, aos faroestes spaghetti italianos, principalmente os realizados por Sergio Leone e Sergio Corbucci. Pode haver a nostalgia das matinês dos anos 1920 ou das grandes sagas aventureiras de John Ford, Anthony Mann e Budd Boetticher no inconsciente de Abelardo de Carvalho, mas o que ele faz é emular os primeiríssimos planos, a música constante, a distensão temporal, os longos silêncios, a montagem orquestrada e a ambição dos personagens por dinheiro tão característicos especialmente em Leone. Não deve ser à toa que o título internacional escolhido para o filme seja Baroque Western (“faroeste barroco”).

Abelardo de Carvalho faz, então, uma espécie de filme “pós-pós-moderno”, imiscuindo elementos em sua realização sem referenciá-los a outros elementos. Uma coisa apresentada em cena não leva a outra coisa a qual se refere, mas é, sim, a coisa ela-mesma. O faroeste de Carvalho não é um bangue-bangue tal qual se conhece, nem faz paródia (como Quentin Tarantino faz com os gêneros que o mobilizam), mas é um bangue-bangue assim mesmo, e somente o é porque o espectador conhece e identifica um bangue-bangue. Em alguma medida, o que o pesquisador Rodrigo Carreiro escreveu no livro Era uma Vez no Spaghetti Western, ao estudar o cinema de Sergio Leone, se aplica ao processo empreendido por Faroeste: “Leone trabalhou dentro de uma tradição, revisando-a e atualizando-a – e, mais importante, intensificando-a – sem necessariamente desafiá-la. Em outras palavras: a aparição e o desenvolvimento de características associadas ao pós-modernismo constituem um processo de revisão de esquemas clássicos dominantes”.

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Dentro de um contexto como este, algo particulariza Faroeste de maneira surpreendente: o desenho de som desenvolvido por Bernardo Uzeda. Há alguma coisa de realmente perturbadora (pelo menos a um público acima dos 25 anos) em ouvir os atores com vozes de dubladores imediatamente reconhecíveis de filmes da televisão. Porque, aqui, a pós-produção sonora (não há um único som ou voz que tenha sido diretamente captado) serve não apenas para dar um fecho ao processo de realização, ao dublar atores e ambiente (como era praxe na produção italiana), mas, de fato, cria uma terceira camada de apreensão – e, ao seu modo, um trabalho autônomo por si só. O espectador precisa lidar com as imagens, os sons e vozes e a relação criada entre todos os elementos.

Reconhecer as vozes e ser impossibilitado de identificá-las aos atores que entoam os diálogos, ou vice-versa, torna a experiência de ver o filme bastante mais estimulante (e não cômica, como poderia ser num primeiro momento). Exige outro tipo de atenção, para além do entendimento daquilo que é dito. Ouve-se e compreende-se tudo, mas é como se aquele som ou voz não pertencesse àquele momento ou corpo (e não pertence), como se a massa sonora estivesse acontecendo num outro plano de percepção, numa camada de textura mais abstrata e inapreensível. Carvalho faz desse curto-circuito um elemento de estética, sem cair no paródico ou nostálgico. As vozes reconhecíveis estão lá porque pertencem à tessitura do filme.

O som ganha importância capital em Faroeste ainda por canalizar os momentos de conflito e violência. Provavelmente pelo baixo orçamento, o filme se exime de mostrar explicitamente cenas mais complicadas, disfarçando-as com sons e cortes de montagem que as encaminham ao impacto da ação em elementos naturais do ambiente. Assim, a morte do bandoleiro Luís Garcia, logo no começo, não é vista, mas ouvida, enquanto a imagem (decalcada, por sua vez, do início de Era uma Vez no Oeste, de Leone) mostra um bando de pássaros assustados pelo estampido dos tiros; o confronto entre o bando de Garcia e os policiais se dá numa plantação de girassóis, que balançam ao vento no momento em que um massacre acontece no local, em meio a gritos e estouros apenas escutados.

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O anti-naturalismo de Faroeste serve-lhe muito bem tanto quanto lhe causa problemas. O barroquismo de algumas cenas por vezes trava a fluidez do filme, como se não lhe permitisse avançar para aquilo que ele está efetivamente desenvolvendo. Nunca fica claro, afinal, se Faroeste pretende narrar o mito de Luís Garcia ou construir cenas operísticas a partir dele. No plano do enredo, tal qual O Homem que Matou o Facínora, de Ford, o longa de Carvalho se desenvolve por uma oralidade ambígua, através de recordatórios – no caso, do parceiro de Luís Garcia, homem que o acompanha até uma emboscada a qual ele sobrevive de maneira obscura. São lembranças imprecisas, pouco confiáveis, nebulosas, de um homem que conta apenas aquilo que lhe convém. Como propulsor narrativo, muito se poderia tirar desse jogo de esconde-esconde (tão bem trabalhado na voz off, aliás). Na construção visual e nos enquadramentos, promove-se um balé de movimentos, corpos e objetos (embalados pela música quase onipresente), no qual a cadência das imagens segue muito de perto as batidas da trilha sonora e pelo qual aparentemente inexiste o interesse do filme em ir adiante com a narração da história, ainda que pareça ser esta sua vontade em vários instantes.

A indefinição estética causa excessos prejudiciais, especialmente no uso da câmera. Em alguns momentos, assume-se o plano subjetivo, com todos os cacoetes típicos (imagem tremida, mudanças de perspectiva, viradas bruscas), mas há dois planos em particular que se moldam como subjetivos, mas não são: o ajuste de uma porteira defeituosa, quando Luís Garcia a atravessa. A câmera é posicionada na lateral da parte de cima da porteira, de forma ao plano poder acompanhar o movimento de abre e fecha. O efeito provocado é puramente fetichista, na medida em que não representa nada do antecampo, exceto chamar atenção para aquele ponto de filmagem em particular. Mesmo a um filme de excessos (Leone era especialista neles, é bom frisar), este parece fora de qualquer propósito.

Na montagem, Faroeste tenta relacionar diretamente algumas das imagens, de forma a permitir rimas entre umas e outras. Como quase tudo no filme, há um desequilíbrio bastante aparente. Por vezes os cortes causam momentos de força (Garcia, no escuro da mata, olha para o nada; corta para a amante dele, nua e ensaboada na banheira, imagem idealizada da mulher que ele deseja e por quem está profanando túmulos de ciganos para roubar ouro), em outros as escolhas de edição soam apenas gratuitas, simplistas ou de mau gosto (a cena de Garcia transando com a amante intercalada com a esposa dele batendo pilão; Garcia tenso e raivoso se prepara para atirar no melhor amigo intermediado pela imagem de panelas a ferver num forno a lenha). São instantes pontuais, muito específicos, que juntos provocam fissuras na relação do filme com seu próprio material.

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