Entrevista Monte Hellman

setembro 1, 2016 em Em Campo, Entrevistas, Fábio Andrade, Marcelo Miranda, Raul Arthuso, Victor Guimarães

monte

Fora do caminho
por Marcelo Miranda, Fábio Andrade, Raul Arthuso e Victor Guimarães

Em excelente entrevista a Nicole Brenez e Toni D’Angela publicada na revista La Furia Umana, Monte Hellman responde a pergunta do crítico italiano sobre sua leitura do mito da fronteira do western com notável dissonância: “Você está falando uma língua que é totalmente estrangeira para mim”. Os ruídos entre diretores de sensibilidades pragmáticas e críticos afeitos a mergulhos interpretativos são frequentes e renderam registros clássicos como as entrevistas de Peter Bogdanovich com John Ford e a de um time de alguns dos mais reputados críticos dos Cahiers du Cinéma com Eric Rohmer – para não falarmos, claro, de todas as entrevistas abortadas (só na Cinética, temos diretores como Chantal Akerman e Naomi Kawase entre as conversas que nunca foram). Aproximamo-nos de Hellman totalmente cientes desse intervalo. À gentileza e presteza do diretor em atender-nos, soma-se uma precisão materialista cortante que parece a todo tempo reafirmar que o grande trabalho do diretor – seja na realização, seja na conversa sobre sua obra – está em manter-se, ao máximo, fora do caminho. Façamos o mesmo; assim como em seus filmes, é justamente nas reticências ausentes de cada resposta que o mistério se instala e o aparente laconismo de seu não-saber se abre como poesia ou sabedoria. (Fábio Andrade)

Cinética: Sua trajetória como artista começa como diretor de teatro. Como você vê a relação entre cinema e teatro e quais foram as implicações dessa transição?

Minha formação em teatro me deu segurança no trabalho com os atores, em especial permitindo que eu me tornasse amigo deles e ganhasse sua confiança. Embora eu tenha começado esse trabalho “dirigindo” os atores, eu gradualmente fui aprendendo que isso era contraproducente para os meus objetivos. Aos poucos descobri que algumas das teorias a respeito de ênfase e timing que aprendi no teatro eram igualmente aplicáveis ao cinema.

Entre o começo de sua carreira, como diretor contratado e muitas vezes diretor de segunda unidade para Roger Corman, e a total independência com Caminho para o Nada (2011), seu mais recente filme, você cobriu diversas possibilidades de trabalho na indústria americana de cinema. Você sente que essa necessidade de se reposicionar constantemente reflete mudanças na própria indústria?  

A forma mais clara em que percebo uma mudança na indústria é vê-la se aproximar cada vez mais de filmes que são feitos por comitês. Obviamente, não vejo isso como um progresso ou evolução. Criativamente, minha independência em Road to Nowhere foi de enorme valor, mas é possível que ela também tenha praticamente inviabilizado que eu continue a fazer filmes.

No livro de Brad Stevens sobre sua vida e obra, há uma fala de Steven Gaydos (n. do e: editor executivo da revista Variety, roteirista de Iguana Caminho para o Nada e amigo de longa data do diretor) sobre seu desejo de filmar uma adaptação de Logan’s Run em Brasília, à época recém-inaugurada capital do Brasil. Você tem maiores lembranças do processo e do porquê do interesse por Brasília? 

Não tenho lembranças de quaisquer detalhes do meu processo de raciocínio na época.

Perguntamos isso porque o espaço tem uma presença muito expressiva em seus filmes, e ficamos curiosos de saber em que momento na realização de um filme as locações se tornam preponderantes. Sabemos que você admira o trabalho de Tsai Ming-liang e ele já disse em entrevistas que concebe os filmes a partir da escolha de determinados espaços, por exemplo.

Normalmente, escolho as locações depois de ter escrito o roteiro. Assim como a escolha dos atores, as locações afetam todas as escolhas que vêm em seguida. Eu agrupo ambas as etapas sob a mesma categoria de “casting”.

Em uma entrevista recente, William Friedkin disse que sempre que um ator o pergunta a respeito de backstory sua resposta é: “I don’t know, if it’s not written on the page, it’s not on the stage” (“Eu não sei, se não está no papel, é porque não faz parte da cena”). Os personagens em seus filmes têm uma presença de tela tão forte que parecem tornar o desejo por backstory, pelo passado deles, irrelevante. Como você trabalha com esses elementos?  

Na entrevista concedida por Millie Perkins para as edições da Criterion Collection dos meus westerns, ela diz que, sempre que me pedia para explicar algo sobre a história pregressa dos filmes ou dos personagens, minha resposta padrão era “Eu não sei”.

Disparo para Matar (1966)

Disparo para Matar (1966)

Da mesma maneira que o espaço é estrutural em seus filmes, o tempo também tem papel primordial na sua construção cênica, em especial pela dilatação da duração e o favorecimento de pequenos momentos em relação a grandes acontecimentos dramáticos. Como você concebe a temporalidade dos seus filmes?

Eu dou liberdade aos atores para que eles encontrem seu próprio ritmo em cada cena. Naturalmente, há variações no ritmo entre um take e outro. Por conta disso, eu passo a ter possibilidades de escolhas, assim como outras escolhas possíveis que posso fazer na montagem. Em Road to Nowhere eu passei a acreditar que o filme tinha sua própria consciência. Ali, senti que meu trabalho era simplesmente não atrapalhar e ficar fora do caminho do próprio filme.

Em que medida a espera é um estado artístico pelo qual você está conscientemente interessado? Sabemos que você dirigiu uma versão de Esperando por Godot, de Samuel Beckett, no teatro e que isso teve enorme impacto nas suas preferências estéticas.

Acho que a palavra-chave da sua pergunta é “conscientemente”. Com o decorrer do tempo, meu processo criativo passou a acontecer basicamente no meu inconsciente. Mas anos atrás eu fiz uma exposição de fotos que se chamava “Waiting” (esperando).

Críticos frequentemente apontam relações entre os seus filmes e algumas escolas do cinema não-narrativo americano – em especial o Estruturalismo e Conceitualismo, assim como a Land Art. Você em algum momento teve interesse nessa interseção com o cinema não-narrativo ou é algo que não faz parte das suas preferências?

Eu não sei o significado de nenhum desses termos.

Corrida sem Fim (1971)

Corrida sem Fim (1971)

Em diversos dos seus filmes, a música tem um papel dramático preponderante ou serve como contraponto às imagens. Como você vê essa relação entre música e imagens?  

Um dos problemas que sempre encontrei ao inserir trilha-sonora em meus filmes é o fato de que não consigo me relacionar com esse processo de criação. Eu prefiro meus filmes que não possuem trilha original, como Corrida sem Fim Caminho para o Nada, que usam apenas música já pré-existente.

Em um documentário de 1989, há uma entrevista em que você diz que não ter a oportunidade de dirigir um novo filme em anos era um atentado artístico. Esse intervalo, que chegou a ultrapassar duas décadas, mudou sua forma de pensar essa questão? Há diferenças entre este longo intervalo e a espera pelo seu novo filme após Road to Nowhere?

Minha filha, que produziu meu filme mais recente, está levantando dinheiro para financiar o meu próximo – Love or Die. É um processo impreciso, imprevisível e frustrante. Não há como saber se o filme levará um, dois ou 100 anos para ser feito.

Warren Oates é uma figura muito associada aos seus filmes. Como você o conheceu? E como vê o trabalho que fizeram juntos, já com a distância do tempo?  

Eu o vi em uma adaptação para o teatro de Um Estranho no Ninho. Nós imediatamente nos tornamos amigos. A única maneira com que ele conseguiu escapar dessa nossa parceria foi morrendo.

Briga de Galo (1974)

Briga de Galo (1974)

Nós acreditamos que ao menos dois de seus melhores filmes não são tão conhecidos quanto deveriam: China 9, Liberty 37 (1978) e Iguana (1988). Sabemos que Iguana foi uma produção complicada, de baixíssimo orçamento, mas o filme continua tendo uma força muito particular. Anos depois, quais são seus sentimentos em relação ao filme?  

Eu não consigo assistir ao filme sem reviver os horrores da produção, mas ainda sou capaz de apreciar sua potência. E continuo a me regozijar na maneira criativa com que usamos recursos tão limitados. Isso não teve relação com o orçamento, necessariamente, mas sim com uma produção que estava funcionando a partir de entendimentos conflitantes a respeito do filme.

Você dirigiu vários westerns que parecem se colocar numa encruzilhada entre o pertencimento a uma tradição e o desejo de desconstruí-la. Qual é a sua relação com o gênero?

Eu vejo o western como o meu equivalente à Tragédia Grega. Minha atração pelo gênero não diminuiu em nada ao longo dos anos. É uma pena que ele tenha sido substituído pelo gênero dos filmes espaciais.

Steven Gaydos já disse ter tentando te convencer inúmeras vezes a desenvolver vários roteiros diferentes e que Caminho para o Nada foi o primeiro que você concordou. O que a história tinha de especial? Você também já disse em entrevistas que era como se todos os seus filmes anteriores fossem um grande ensaio para Caminho para o Nada. O que o torna tão singular para você?

Com Caminho para o Nada eu descobri uma nova forma de trabalhar, que tornou meus filmes anteriores obsoletos, no meu entendimento. Não me lembro do motivo que me fez reagir positivamente à descrição do Steve, mas o filme acabou se transformando em algo muito diferente, inclusive em relação ao último tratamento do roteiro.

Caminho para o Nada (2011)

Caminho para o Nada (2011)

A presença de um duplo é bastante comum em seus filmes, mas em Caminho para o Nada ela se torna primordial, inclusive na criação de um personagem que é também cineasta, que dirige um filme com o mesmo título que o seu e que compartilha suas iniciais. O que o atrai neste conceito e em que medida ele se torna mais consciente no seu longa mais recente?

Acredito que há duplos de mim mesmo em vários dos meus filmes. O que acho que Caminho para o Nada tem de peculiar é a forma como ele trabalha com a “suspensão da dúvida” (n. do e.: “suspension of disbelief” – expressão bastante usada para descrever o pacto entre uma obra de ficção e seu espectador, ou leitor, que deixa de se ater à artificialidade da construção e é envolvido por um mundo ficcional que é artificial, mas que ressoa como verdade). Nós quebramos esse feitiço repetidas vezes ao longo do filme, mas ainda sim a platéia tem tamanha necessidade de acreditar que não leva mais do que alguns segundos para ser novamente enfeitiçada.

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