Entrevista com Matias Piñeiro

agosto 12, 2014 em Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

por Gustavo Beck (colaboração especial)

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Matias Piñeiro é uma das jovens revelações do cinema argentino cuja obra segue pouco conhecida no Brasil, com apenas seu filme anterior, Viola, exibido por aqui, no Festival do Rio de 2012. Seu cinema com gosto pela literatura e teatro retratando a cultura jovem de Buenos Aires existe bem distante do que costumamos encontrar no cinema argentino que chega por aqui, tanto em festivais como circuito. Nesta conversa, ele fala sobre seu novo longa, La Princesa de Francia, que acaba de estrear no Festival de Locarno.

Cinética: La Princesa de Francia surge para complementar com maestria o conjunto de filmes que realizou até aqui. Em se tratando de um quinto filme que atua sobre uma base de estrutura estética e narrativa muito próxima dos demais, como entende uma possível potência de acúmulo e individualidade nesse conjunto?

Matías Piñeiro: O objetivo cada vez foi fazer um filme, um filme que eu gostasse. Eu gosto de fazer um filme, do que se leva, decada parte do processo, assim que, uma vez que termino um filme, em um mesmo gesto se encontra o germe de um novo filme, que deve ser desenvolvido a partir deste momento, sem dar muitas voltas. Por que demorar-se tanto? Este movimento é guiado pela curiosidade de como podemos contar uma história uma e outra vez, que se desprenda de mim, do que me rodeia e das pessoas com quem compartilho a vida.

Rosalinda (2011), Viola (2012) e La princesa de Francia (2014) são parte de um projeto maior que intitulo “Las Shakespereadas”, que penso em seguir desenvolvendo até que descubra que não tenho nada mais a oferecer, ou melhor, até que não me restem mais personagens femininos das comédias de Shakespeare que me interessem. Ainda sinto que Isabella, Porcia, Beatriz, Hermia e Helena mereçam seus filmes, ainda que seja um curta ou um longa de duas horas e meia.

Quero que este conjunto de filmes tenha um movimento duplo: por um lado, que sejam independentes, que se possam ver individualmente, que não dependam das outros, mas que também, colocadas lado a lado tragam uma nova potência que dependerá do jogo combinatório que o espectador se submeta.

A ideia é em geral, não muito estranha; somente confie pacientemente nos efeitos de acumulação e no vai-e-vem entre variações que cada filme formula. É certo que os dois ou três filmes anteriores à série, Todos mienten (2009), El hombre robado (2007) e A propósito de Buenos Aires (2006), contêm também algo deste efeito; ainda que não tenham muito o que haver com Shakespeare. Mas também é natural que algo tenham dado que sigo sendo eu o que as põe a andar, com uma mesma equipe, com motivos que se repetem, em uma mesma cidade, com uma mesma tecnologia e um mesmo sistema de produção.

Creio que se deve a que, em mim, sempre tenha havido esse primeiro desejo que menciono ao princípio de simplesmente querer fazer um filme. Querer exercitar o pulso, o traço, fazer filmes um atrás do outro, sem pressa nem pressão, mas também sem demora. Conquistar certa continuidade, certa regularidade que mantenha nossos olhos e nossos músculos em movimento, em exercício, buscando ainda por que e como podemos fazer um filme juntos.

La Princesa de Francia, Matias PIñeiro

La Princesa de Francia, Matias PIñeiro

Em que momento William Shakespeare surge como um par no seu processo de escrita dos roteiros? Seria correto considerar que os filmes se tratam de livres adaptações ou as célebres comédias surgem mais como uma companhia?

Eu gosto da palavra que você escolhe: companhia. Talvez seja exatamente isso. Filmes que acompanham um texto, que se somam a uma família. Serão objetos que não querem passar por ser o objeto dos quais se parte, mas sim objetos novos que se somam pelo caminho que a obra original tem percorrido já há tantos anos. Ainda que seja certo que há obras mais acompanhadas do que outras e, de alguma maneira, a mim me dá vontade de acompanhar algumas obras mais do que outras.

O vínculo com Shakespeare está desde o mesmíssimo começo e, ainda, não são adaptações. Não me sinto ainda capaz de fazer uma adaptação no sentido convencional do termo. Talvez a minha maneira de proceder não abrace bem o sentido de totalidade que uma adaptação requisitaria. Eu gosto de ver adaptações como as de Welles, Gus Van Sant, Kozintzev, Olivier, mas isso não tem a ver com o que me estimule a fazer. Posso aprender com eles, mas isso não quer dizer que eu queira ou possa fazer o que eles fazem.

O texto de Shakespeare é o disparador da história, o ponto de partida para gerar uma nova ficção, o primeiro estímulo para se pensar uma fórmula e que me dá vontade de se fazer um filme. Ao mesmo tempo, existe em mim uma vontade de compartilhar o prazer vivenciado a partir destes textos a quem queira olhar, estender essa experiência, e, pelo outro, abrir uma nova oportunidade de dar luz a estas personagens femininas e às comédias que em geral seguem injustamente ofuscadas frente aos personagens masculinos das tragédias e dramas históricos.

O que mais me impressiona em seus filmes é a capacidade de colocar esse mundo em movimento. Suas personagens se expressam a todo tempo: sentem, andam, falam incessantemente, e ainda há sempre um sentimento de feel good nos filmes. Poderia falar da relação do constante fluxo dos corpos em combinação com a musicalidade dos diálogos?

Tanto os corpos como a fala têm que compor um duplo ritmo, um em si mesmo e outro em relação. Não somente é importante o que diz o texto, ou quem o diz, mas também quem o escuta e como vemos aquele que o escuta. Em La Princesa de Francia, Víctor diz às atrizes o que ele quer dizer a uma delas. Ele diz a ela o que ele quer que ela escute e entenda, a põe a prova, uma prova que não se expõe de maneira evidente mas que vai perfurando a superfície dos planos. O filme tem que sustentar-se na eficácia do trançado entre o que se vê e o que se escuta. Esta relação tende a desligar as bocas que falam do som que emitem, gerando um tipo de montagem no próprio plano. Dizer não é necessariamente ver o dizer. Às vezes sim, mas muitas vezes não. Me interessa como um texto atua sobre o rosto daquele que o escuta e o que isso pode gerar no rosto daquele que escuta, espiando do lugar do espectador. O ritmo não é simplesmente produzir defasagens entre som e imagem todo o tempo de maneira sistemática, mas também quebrar esse mesmo sistema para observar o que acontece quando de repente me atento a uma boca que fala. Não nego a força do texto de Shakespeare em relação ao que se diz, mas que ao mesmo tempo também enfatizo como se o escuta. E assim surge o ritmo do filme, sua musicalidade.

Penso que essa sensação de feel good é relativa. Talvez pareça ser assim porque em mim não existe uma vontade de condenar os personagens de maneira vil ou de manipulação e condenação moral. Creio que se trata de mostrar um equilíbrio entre as coisas. Por isso gosto dos filmes de Ozu. Me interessa como ele não mostra ou como atenua os momentos dramáticos, e como dá lugar aos momentos mais triviais. E com essa incompatibilidade consegue tocar um nervo. Meus filmes tendem a contar o momento em que um casal ou um grupo se separam. Ou seja, é um momento não muito feliz, não muito good feeling. Mas para contar esse momento recorro ao gozo do sofrimento dos feel shit movies, porque não me estimula manipular desta maneira o espectador. Não me atrai o dramatismo que cega e que não permite pensar… o cínico que gera uma hierarquia opressora.

Gosto de fazer como em A Cantora Careca (La cantatrice chauve, 1950), de Ionesco: pentear-se para o outro lado. Se algo é alto, tratá-lo como se fosse baixo, se algo vai em direção à cor ciano, levá-lo ao magenta; se algo é alegre, escurecê-lo um pouco, e assim atingir uma nova posição, algo que possa surpreender-me. Assim mesmo, não creio que esta vontade de ir a contra corrente negue o drama ou o relativize, mas que o trabalhe de outra maneira para conseguir gerar uma outra coisa. Não creio que gere um sentimento de feel good porque essa relação carece de tensão, é demasiada temperada para poder requerer a quem está assistindo, e eu necessito de um diálogo de maior cumplicidade. O feel good termina diminuindo a comédia ao campo da condescendência.  Por agora, prefiro a comédia que não é estridente, que trabalha em busca de um equilíbrio entre dois tons, o alto e o baixo, o dramático com aquilo que não o é. Eu gosto da ambiguidade e da distância que necessita a comédia para funcionar melhor.

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Em seu trabalho como diretor de cinema, existe um sólido processo de colaboração com as atrizes. Em especial com María Villar, Romina Paula e Agustina Muñoz, que juntas parecem capazes de criar uma negociação secreta entre suas personagens e como se transformam e se reinventam de filme para filme. Poderia comentar como se dá esse trabalho com as atrizes, do roteiro à cena?

Quando escrevo os roteiros, escrevo já sabendo quem fará cada um dos personagens. O personagem está escrito para um ator específico em mente. É um convite não somente para o filme, mas também para que jogue com o que já fez nos filmes anteriores. Como sigo pensando nos planos e nas tramas, um filme ajuda a construir o seguinte. Há sempre uma relação entre o filme que estou fazendo e o imediatamente anterior. Eles se tornam irmãos, construindo continuidades e diferenças. Foi o encontro de consonâncias entre as atrizes e os papéis femininos que me levaram a fazer estes filmes shakespearianos. Estes filmes estão dedicados e compostos pela relação que tenho com elas. É o começo de tudo.

Contudo, em La Princesa de Francia, o sangramento mais óbvio é que o papel da Princesa está feito por um homem e não outra vez por uma mulher. Assim mesmo, as variações continuam: em Rosalinda trabalho um ponto de vista, enquanto que em Viola, dois ou três e já neste terceiro filme são seis os pontos de vista que compõem o retrato da Princesa. Também, de Rosalinda surgiu o convite para fazer uma obra de teatro que é a que funda e aparece em Viola e cujos textos também formam a La Princesa de Francia. E assim como em Rosalinda, Shakespeare se põe em cena através da instância do ensaio; em Viola se trabalham os textos no contexto de uma obra de teatro; e em La Princesa de Francia é o rádio o que coloca em ação o texto Shakespeariano.

Com Romina, María e Agustina existe um vínculo de amizade fortíssimo e isso ultrapassa ao filme. Também creio que em outros personagens também se veja a evolução de nossos vínculos filme a filme. Mas com elas três, os anos e as coisas divididas são muito potentes, e acredito que os personagens são projeções de nossa forte relação de amizade. Em cada uma dessas mulheres existe algo meu, algo de minha mãe, e de cada uma delas. É algo que não se pode reconstruir, mas somente acompanhar de filme para filme.

Ao mesmo tempo, gosto que haja diferenças entre os personagens que cada atriz interpreta em cada filme. Não fazem o mesmo. Não são iguais: Mercedes Montt – María em El Hombre Robado – é extremamente ativa, enquanto que Viola – María em Viola – é extremamente passiva, e agora em La Princesa de Francia seu personagem, Ana, é um personagem de decisões fortes, como a de ser mãe solteira. Depois, claro, é a mesma pessoa que evolui lentamente ao curto prazo de 8 anos e que não há uma vontade de heterogeneidade, de entender o ator como a figura de mil faces. Mas é permitir que algo da personalidade que eu intuo de cada uma delas se integre aos personagens, e nesse convite que elas também tenham algo a dizer. É necessário não somente dar carne aos personagens escritos, mas também ar.

Uma vez que as envio o roteiro, escuto muito o que têm a dizer, e acomodo todos os textos à impressão e à cadência do ator. Me interessa escutá-los porque os considero muito inteligentes e sensíveis, e podem me fazer ver algo que eu mesmo não posso. Por isso os convoco: para tratar de melhorar essas páginas que os enviei. E assim se arma um trabalho em diálogo que, com a medida do passar dos anos e os filmes, se fortalece. Já existe um código compartilhado, então trata-se simplesmente de colocar-se em ação e fazer o filme com todo o trabalho e esforço que se necessita.

Poderia também comentar as parcerias com Fernando Lockett como fotógrafo e Alejo Moguillansky como montador, desde o primeiro filme? A transição da película para o vídeo mudou em algo a sua maneira de trabalhar?

Assim como com o grupo de atores, também tendo a trabalhar com a mesma equipe de trás das câmeras. Não é um fundamentalismo, mas sim uma confiança em um grupo de pessoas. Confio no valor de voltar a dividir o tempo sempre que posso com as pessoas com quem sinto afinidade e um gosto por passarmos tempo juntos concentrados em uma mesma coisa. Isso gera um entendimento mais além de nossas diferenças. E ainda há as contingências da vida de cada um, que terminam definindo a equipe. No caso de Fernando e Alejo, ambos são pilares fundamentais dos filmes. O vínculo é tão forte que deles surgem filmes inteiros. Alejo Moguillansky, que também é cineasta, foi o montador de vários destes filmes. Em El Hombre Robado, foi ele quem levou este projeto iniciado como um curta-metragem a desenvolver-se como um longa-metragem. Com ele aprendo a desenvolver a minha sensibilidade cinematográfica sempre. Creio haver absorvido certo rigor e noção de ritmo ao vê-lo trabalhar, e hoje em dia, quando assisto ao meu material, sinto que o observo através de um prisma que tenta seguir seu pensamento. Quando não pude montar com ele, sempre foi porque estava ocupado com algum filme próprio. Sempre quero voltar a falar do que fazemos. É uma relação de irmandade, confiança e admiração. O mesmo ocorre com Fernando. Nunca filmei um filme sem ele. Ao dia seguinte de contar-lhe um começo de ideia que tinha para La Princesa de Francia, me enviou uma imagem. Esta:

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Se Viola tem em seu interior a energia acumulada de uma obra de teatro que fizemos em Buenos Aires com as quatro atrizes, La Princesa de Francia surge do arrebatamento que produziu esta imagem em mim, da confiança de que neste tráfico de imagens se escondia um filme não somente em término de trama – um homem envolto por quatro mulheres, a circulação de um postal com esse mesmo quadro, referências ao pintor deste mesmo – mas também em termos formais – o movimento circular, a estrutura de ligações organizadas, as panorâmicas que parte de um ponto, dando uma volta e terminando onde começamos. Gosto das conversas com Fernando antes da filmagem. Também se trata de escutá-lo, porque o melhor do filme se realiza com a cooperação de todos e não pela imposição de ideias de uma única pessoa. Fernando, por outro lado, conhece minhas manhas, como minha tendência a não utilizar angulares e a mover a câmera a todo tempo. E eu também intuo as suas. Seu entusiasmo é contagiante e dá vontade de seguir filmando. Isso é um prazer. Há certa vibração quando as coisas na filmagem fluem de uma maneira íntima e intensa.

Por fim, como entende o seu trabalho enquanto diálogo com o cinema mundial, mas especificamente com o cinema argentino?

Formo parte de um grupo cada vez maior de cineastas argentinos que realizam seus filmes em um sistema de produção muito limitado economicamente e que contudo seguem preocupados pela forma que o cinema pode tomar. Creio que faço filmes de câmara que não necessitam de muitos recursos materiais para existir; filmes de muita ficção; filmes que se interessam por formas alternativas de narrar o que narram; filmes em que se fala muito e que se tem muitas legendas; filmes pequenos que, frente aos limites de suas dimensões económicas, tentam extrair com gozo o melhor rendimento; filmes realizados entre amigos que se dedicam com entrega ao que fazem; filmes que passam em festivais; filmes que tentam encontrar circuitos alternativos de projeção mais além dos festivais; filmes com sorte que permitiram que viessem mais filmes; filmes que evitam cair na precariedade, no fetiche festivaleiro e na burocracia; filmes pelos quais se trabalha muito e com muito prazer; filmes que não são muito vistos, mas que finalmente vão sendo assistidos por aqueles que tem vontade de vê-los.

A UNIVERSIDAD DEL CINE fez com que eu pudesse ser diretor de cinema graças ao que pude contar com seu apoio e seus equipamentos de câmera. O BAFICI tem sido um espaço fundamental para estrear os filmes e o museu do MALBA e a SALA LUGONES foram igualmente fundamentais para conseguir os exibir por um tempo mais longo em Buenos Aires. E, fundamentalmente, pude fazer filmes graças a todas as pessoas que formaram as equipe de cada um deles.

Não creio que a afinidade e a admiração cinematográfica corresponda aos limites geográficos, nem do tempo. Admiro e aprendo com gente como Mariano Llinás, James Benning, Edgardo Cozarinsky, Dan Sallit, Nicolás Pereda, Lou Li, Alejo Moguillansky, Santiago Loza, Dan Schmidt, Santiago Palavecino, João Pedro Rodrigues, Sebastián Lingiardi, Mati Diop, Hugo Santiago, José Celestino Campusano, Hong Sang-soo, Eric Rohmer, Otto Preminger, Jean Renoir, Roberto Rossellini, Ernst Lubitsch, R. W. Fassbinder e outros tantos mais.

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