Entrevista com Alejo Moguillansky

agosto 25, 2014 em Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

AlejoMoguillansky

Por Gustavo Beck (colaboração especial)

Desde Castro (2009), Alejo Moguillansky é um dos principais nomes do cinema independente argentino, seja como realizador, produtor ou contribuindo para filmes de cineastas próximos (ele é, por exemplo, montador de La Princesa de Francia, de Matias Piñeiro, outro dos destaques da safra argentina do ano). Com seu novo longa, El Escarabajo de Oro, se lança numa empreitada também nova, co-dirigindo o filme com a cineasta sueca Fia-Stine Sandlund, a convite do laboratório de um festival dinamarquês – experiência que ele relata à Cinética nesta entrevista.

Cinética: El Escarabajo de Oro (2014) nasce de um convite do laboratório DOX:LAB para se realizar um filme em co-direção com a cineasta sueca Fia-Stine Sandlund, com quem não tinha nenhum envolvimento até então ou sequer a conhecia. Poderia, dentro do possível, nos narrar como se desenvolveu essa parceria ao longo dos dois anos de trabalho no filme?

Alejo Moguillansky: Efetivamente, quando me propuseram fazer um filme junto a Fia-Stune Sanlund, não tinha a menor ideia de seu trabalho, nem de quem ela era. Por alguma estranha razão CPH:DOX pensou que uma artista radical ativista feminista sueca poderia conjugar perfeitamente com um cineasta argentino como eu.

O ponto é, no primeiro contato que tivemos, eu trazia a ideia de trabalhar com um duplo risco que conheci no filme Castro (2009), e que havia construído o choque final do filme. Desde então, eu havia ficado com vontade de trabalhar com ela em um papel central, que ninguém nunca irá saber como teria sido, mas que tivesse ela como centro. Por outro lado, Fia vinha trabalhando em uma trilogia de filmes baseados em Miss Julie, da obra de Strinberg, que, entre a misogenia do autor e o suicídio da personagem de Julie, se transformou em um ícone para o feminismo, mais ainda na Suécia, terra natal de Fia. Esta série de filmes de Fia, um pouco conceituais, é algo como variações em torno de uma reconstrução do suicídio de Miss Julie, e uma direção aprofundada na peça por parte dela mesma. Assim, quando comentei a Fia o meu desejo de trabalhar com esse duplo risco, a ideia lhe veio como um anel ao dedo, e começou a pronunciar a palavra “re-enactment” em cada frase que me dizia. Foi como se chegou à ideia de trabalhar sobre o suicídio, não mais de Miss Julie, mas do personagem real que inspira a Strinberg nessa obra: a escritora naturalista sueca Victoria Benedictsson, que cometeu suicídio ao final do século XIX, e cuja a figura é praticamente adaptada por Strindberg.

Quando logo nos juntamos a trabalhar duas semanas em Copenhagen, esta ideia adotou a forma de uma filmagem de um filme sobre Victoria Benedictsson, cujas circunstâncias eram exatamente as mesmas do próprio filme que estávamos escrevendo, sendo assim um documental de si mesmo. Mas, neste processo, começaram a ser muito mais interessante os pontos que não estávamos de acordo do que os pontos que tínhamos acordados. E assim terminou de dar-se a forma quase final do filme, que é praticamente a mesma de suas condições de realização: uma cineasta sueca brigando com um cineasta argentino em uma produção europeia filmada na América Latina, que devem co-dirigir.

Ao mesmo tempo, a ideia do suicídio tomava cada vez mais força, e eu comecei a questionar o porque de trabalhar com somente um suicida, e não com vários suicidas, ou ao menos outro suicida. Dentro do repertório de suicidas argentinos, cheguei rapidamente a Alem, um político argentino, pai fundador do Partido Radical. É um personagem do século XIX, um orador impecável, filósofo, irreverente, com algo de profeta, que tira a própria vida com um tiro na têmpora quando descobre que seu projeto fracassou, ou ao menos o que ele pode fazer por suas ideias. “Que se rompa, pero que no se doble”, escreve em seu testamento político, explicando as causas de sua decisão, tratando de deixar um legado sabe-se lá para quem. Assim é a polaridade entre Victoria Benedictsson e Leandro N. Alem. Alem começou a ser um marco para o filme de infinitas maneiras. Uma poeta feminista e um líder político com inclinação popular. A tensão entre Europa e América Latina. A capacidade de observar o século XXI desde o século XIX. E, de alguma maneira, isso sempre tinha a forma das discussões entre Fia e eu. Essa relação de opostos é uma das poucas coisas que se mantiveram ao longo de todo o filme, sobrevivendo às não poucas metamorfoses que o filme sofreu.

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E a parceria com Mariano Llinás, com quem já havia trabalho antes como produtor de Castro e aqui, além de estar presente como ator, é também co-roteirista e co-montador?

Llinás é, digamos, um sócio, e um dos meus grandes amigos, dentro e fora do cinema. Compartilhamos uma produtora de cinema, El Pampero Cine (junto a duas pessoas mais, Laura Cintarella e Agustín Mendilaharzu). Digamos que fazem já vários anos, e vários filmes, que um se mete no filme do outro. Eu como montador em Histórias Extraordinárias (2008), ou Llinás como produtor de Castro, ou como um forte colaborador na montagem de El Loro y el Cisne (2013), e aqui colaborou no roteiro e na montagem. Uma vez que houve essa ideia de uma filmagem e de um conflito adentro desta filmagem, a ideia dos cineastas argentinos como piratas enganando aos produtores europeus estava mais que clara. E assim, um dia, almoçando com Llinás e com Iván Granovsky, que foi o primeiro produtor que o filme teve, fantasiamos com a ideia de um tesouro. Se havia piratas, por que também não um tesouro? E, naturalmente, esse tesouro deveria consistir em ouro – me recordo ter ouvido dizer a Granovsky.

Daí, direto a Stevenson e Poe. Suspeito que o papel de Llinás em meus filmes é o de compreensão da estrutura. Para mim é sempre difícil fazer um filme com uma só ideia. Mas também necessito que existam múltiplas ideias dentro de cada filme, dentro de cada pano, como se fossem camadas, que se contaminam uma com a outra. E se essas ideias se contradizem, melhor. E é aí, que surge Llinás, seja em fase de roteiro ou de montagem: a ultra direta narrativa, te digo eu. Ambos temos um mesmo gosto literário, inclusive poético. E compartilhamos um gosto por aumentar sempre a aposta, na multiplicação narrativa, estética, ou no mero risco. Tenho a sensação de que, quando nos juntamos a trabalhar, existe um comportamento mútuo, como de apostadores compulsivos dentro de um cassino. A mim, naturalmente, cabe forçar o limite das formas e as contrapor a um forte realismo documental. Desde que entendi algo desse funcionamento em meus filmes, Llinás se tornou meu colaborador mais íntimo.

O que mais me impressiona em El Escarabajo de Oro é a inventiva narrativa em camadas e tempos distintos. E, a todo tempo, o tom é de humor ou ao menos de divertimento. Poderia comentar a opção de transformar o filme numa comédia de fantasia, que faz lembrar alguns filmes de Jean Renoir ou de Max Ophuls?

Tem um pouco a ver com o que disse mais acima. Por um lado, existe uma multiplicação narrativa que não é premeditada, que não é planificada de antemão, mas que é o resultado de certa errância no processo de escritura: quando existe um problema narrativo de difícil resolução, ao invés de desatar o nó, se inventa um novo problema. E assim se repete. Não sei se é um método de trabalho muito recomendável, mas é o que tenho. Sinto fobia por certas burocracias narrativas de estruturas mais clássicas e, para evitar sentir-me um burocrata, trabalhando em função de certa lógica estrutural, ou por certo objetivo de tal personagem, ou de certa ação, prefiro tomar atalhos que me divirtam, mais do que ocupar-me destas coisas chatíssimas, e assim nascem novas ideias, novas formas. De alguma maneira, é uma definição de modernidade, menos como algo destrutivo, ou negativo, mas como uma maneira de manter uma forma lúcida e imprevisível, ao menos para meus olhos.

O humor, sim, claro, é algo que inegavelmente está sempre aí, quase que como um instinto defensivo. A solenidade é um dos meus principais terrores no cinema, e o humor é, nesse sentido, uma arma, não somente no cinema, mas também na vida. Claro que aparecem novos perigos, ainda que menores que a solenidade: a ironia e a paródia. Esse é o outro lugar de que corro frequentemente. Entre as duas pontas, existem vários filmes que admiro muito, e que são de alguma maneira filmes que El Escarabajo de Oro assistiu: os de Jean Renoir. O gosto pela multiplicidade de personagens, pelo espaço mesmo, pela comédia italiana (Renoir foi o cineasta francês mais próximo da Itália), pelos atores, pela ideia de uma trupe de atores. Creio que os filmes de Renoir, além de formarem um dos melhores conjuntos de filmes da história do cinema, tiveram a capacidade de retratar de uma maneira belíssima um grupo de artistas. Essa é uma ideia que eu quis trazer ao nosso presente, e em particular ao nosso contexto de produção na Argentina. Mas para poder gerar este retrato, é preciso que o filme não seja somente isso, e é aí que certos elementos fantásticos fazem ser possível um retrato realista e por momentos documental, dentro de um contexto de, como bem disse, de fantasia.

Ir ao século XIX também tem que ver com isso: poder ver o presente do passado, inclusive de um ponto de vista político. E Alem, como personagem prévio a quase todas as variáveis políticas do presente, resultava particularmente interessante e comovente. É prévio ao peronismo, é prévio a uma ideia de esquerda e de direita, ao menos dentro do contexto latino-americano, é prévio inclusive ao esplendor do partido que ele mesmo fundou e que hoje vive em um mar de decadência. Por isso resultava interessante, para poder gerar um olhar oblíquo do presente, dividido pela polaridade ideológica que existe hoje na Argentina, entre o oficialismo e a oposição, que nebulam e ocultam qualquer outra posição, em assumi-la ou acusando-a de pertencer ao lado oposto, eliminando qualquer espírito crítico. E neste sentido, nosso lugar de produção tem um pouco a ver com esse lugar difuso, pouco claro, que não obedece nem a uma coisa nem a outra, mas que tem convicções próprias.

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O filme se explora cinematograficamente com tamanha descontração que se faz difícil codificar exatamente quais foram as estratégias de realização. Entre ensaios, improvisos em locação e redescobertas na montagem, existe uma magistral teia subterrânea que conduz esse universo. Há todo um trabalho de mover esse mundo, de orquestrar dezenas de atores em harmonia. Como se dá esse trabalho entre o ator e o roteiro?

É um pouco uma mistura de todos esses fatores, sem que nenhum se resolva demais. O único fator realmente fixo que existe é o trabalho constante, e uma necessidade de flexibilidade e adaptação permanente às circunstâncias que sempre se modificam. Existe um roteiro, claro, com diálogos, nestas cenas plurais com vários personagens, que termina tomando forma e velocidade nos ensaios. A cada vez eu trato de gerar planos longos. Defendo a ideia de plano, da mise en scène, a entendo melhor dentro da ideia de um plano, de movimento, e de enquadramento. Digamos que, basicamente, quanto menos corte, mas contente estou, e assim dou mais valor a cada corte. Inclusive nas circunstâncias meramente documentais, trato de que isso siga ocorrendo e de não estabelecer diferenças entre o âmbito da ficção e o documental. Em El Escarabajo de Oro, isso também funcionou desta maneira. O ensaio e o processo de criação de um plano coincidem, e mesmo depois de várias horas seguimos trabalhando na metade de um mesmo plano, e ainda não temos ideia de como terminará, porque câmera e atores se vão acomodando mutuamente à medida em que avançamos, até que a forma final de um plano, digamos, decante. Mas neste processo os atores também estão muito presentes. E em um filme como El Escarabajo de Oro, no qual dentre os atores principais estão Rafael Spregelburd, Walter Jakob e Mariano Llinás, que são respectivamente dramaturgos geniais e roteiristas (além de diretores, cada um em seu ofício), sua colaboração na filmagem em respeito aos diálogos, e inclusive em coisas que interessem diretamente “a trama” do filme, foi infinita e incalculável. Digamos que éramos um grupo de amigos divertindo-se, fazendo piadas, e com uma paixão irremediável pelo ridículo. Várias vezes durante as filmagens nos perguntávamos se já não seria demais, e pensávamos se não estaríamos fazendo um filme infantil, atormentado de brincadeiras absurdas, uma atrás da outra.

O resultado disso é um material imensamente vivo, e por momentos sumamente débeis em termos de unidade. Mas sabíamos desde sempre da presença decimonómica de Além e de Victoria através da voz em off. Era importante que permanecesse longe de atar essas pontas soltas do argumento, que melhor geram novos assuntos, e novos divertimentos, para narrar o presente desde o passado, e que terminam por ofuscar aquelas lagoas do relato em termos clássicos. A forma final dessas vozes foi a última coisa que esteve pronta neste filme. E ao mesmo tempo isso nos permitia, em certas passagens do filme, fazer o que tínhamos vontade, o que nos divertia no momento. E aí esta, El Escarabajo de Oro, esse grupo de amigos, rindo, jogando futebol, andando em bote, ensaiando cenas absurdas, disfarçando-se, viajando. É um filme muito melancólico.

Por fim; como entende o seu trabalho enquanto diálogo com o cinema mundial, mas especificamente com o cinema argentino?

A verdade é que não sei. Existe um foco político neste filme filme, relativo às circunstâncias de produção de certo cinema, filmado em países do terceiro mundo, com financiamento europeu. Às vezes esses sistemas terminam por padronizar, ou por equalizar os filmes, ou mesmo por maximizar aquilo que estes filmes souberam ter em particular, fazendo dessa particularidade, formal, estética, aquilo que se filma, um grifo enorme, enfatizado, para ser rapidamente catalogado neste estranho mercado mundial de cinema de autor, de cinema de arte, que, por outro lado, não deixa muito dinheiro a ninguém. Esse realismo, que toma por momentos uma forma simbólica, às vezes alegórica, e inclusive – nos piores casos – psicológica, é um pouco consequência destes circuitos de produção. Gostaria que de alguma maneira este filme pudesse existir como um objeto crítico. Ridículo, sim, irreverente, bufo, absurdo, e extravagante; mas crítico – e melancólico.

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