Entre Cercas (Bein Gderot), de Avi Mograbi (Israel/França, 2016)

setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

* Cobertura do 5o Olhar de Cinema

entrecercas

Dramaturgias de uma frágil utopia
por Pablo Gonçalo

Se a diáspora marca fortemente a mítica identidade judaica, ela ganha outros contornos com toda a obra de Avi Mograbi. Com esse cineasta, inverte-se o ponto de vista da dispersão. Ao contrário de um nomadismo fundante, seus documentários enfatizam os descompassos de um país – ou de outros arranjos políticos chamados de Israel – que possuem inerentes dificuldades frente a atos como abrigar, acolher, conviver e dialogar com a diferença. No seu olhar arguto, o que se vê são códigos, tácitos e implícitos, que fazem do Estado de Israel uma máquina de classificar, vigiar, cercear e aos poucos, metódica e pacientemente, expurgar as diásporas que não dialogam com sua prevalente tradição cultural-religiosa, por mais que alguns ainda a reconheçam como “laica”. Para Entre Cercas, sua obra mais recente, Mograbi acompanha com atenção e sensibilidade os refugiados de Eritreia e do Sudão que pedem asilo para Israel e encontram-se num não-lugar realmente inóspito: entre fronteiras e regras estatais; a esmo, eles pairam, incertos, numa casa de detenção no deserto de Negev, fronteira entre Israel e o Egito. Eles estão presos entre duas cercas estatais: não podem entrar, mas tampouco possuem autorização para o regresso para casa. Entre estados, seus destinos estão tragicamente cercados por todos os lados.

Com rara simplicidade, Mograbi sublima esses não-lugares. Ele gera um espaço sensível, tão real quanto imaginário, para acolher as inquietudes temporais desse conjunto de homens que abandonaram suas famílias, seus passados, os regimes ditatoriais onde moravam, e fogem, escapam. Entre a espera e a demora, entre a ansiedade de remotas respostas dos Estados e suas inquietudes, Mograbi sugere um instante lúdico. É daí, literalmente no meio do deserto, que ele encontra uma sala de escola vazia, com a parede grifada por giz. Bastam cadeiras, corpos, gestos e jogos dramáticos caros a Augusto Boal para que as angústias do refúgio fragmentem-se (e expandam-se) em minúsculas fagulhas sensíveis. Os refugiados buscam um tom de voz, uma disposição corporal, encenam enquanto ensaiam e o filme acontece nesse latente intervalo que não cabe nem na cena nem no seu ensaio. São instantes traumáticos que se diluem. São invenções improváveis, risos possíveis, que afloram num átimo de gozo estético. Não importa o lugar, não importa o palco, aos poucos os atores-refugiados e os refugiados-atores roubam a cena e fazem do teatro do mundo o mundo do teatro. Apenas encenam – para si mesmos, para os outros e, ocasionalmente, para a câmera.

É no entre-lugar dessas intermitências do ensaio que os corpos revelam uma dramaturgia automática, num teatro do cotidiano, imiscuído por tantas diferenças culturais. Provocados pelo diretor de teatro Chen Alon, os refugiados passam a contracenar com atores e cidadãos israelenses. Em alguns instantes, os papéis se invertem. Os refugiados encenam os soldados do campo de detenção e os israelenses encarnam os refugiados, momentos antes de serem capturados pelo exército do seu país. O curioso não é tanto a diferença entre o profissionalismo e o amadorismo das encenações, mas tão somente como os gestos e os vocabulários caros a um autoritarismo e a uma fuga escapam do controle dos repertórios históricos e culturais que sustentam as encenações. Para os israelenses, de um lado, todos códigos de comando soam naturais, enquanto os gestos dos refugiados flertam, sem querer, com uma estranha gramática de clemência e piedade. Os refugiados, por outro lado, não conseguem representar os carrascos da mesma forma. Hesitam, gaguejam e possuem uma tendência maior a acolher do que a refutar os estrangeiros. Não se sentem à vontade diante das máscaras brancas e dos ordenamentos caros às culturas que possuem os códigos do estado inoculados em suas veias.

O estado, portanto. Chega-se assim ao principal tema da obra de Mograbi, esse inconformado cronista das violências do Estado de Israel. Além da força “legítima”, o que, ao menos teoricamente, caracteriza a soberania de um estado – e, sem dúvida, a sua violência mais evidente – é a gestão do seu território que o marca de forma indelével. Ao estado cabem cercas, controles populacionais, leis de vigilância, carimbos, perguntas, emissão e retenção de passaporte, vistos, controles de entradas e saídas, reivindicação de informações as mais improváveis. Ao Estado cabe reconhecer indivíduos como cidadãos e a desconhecer cidadanias a indivíduos e corpos que julgar mais conveniente ver do outro lado da fronteira. A maior afronta que os refugiados impõem aos Estados, hoje, é a forma como eles subvertem as fronteiras e o volume incontrolável das movimentações populacionais dos desabrigos mais contemporâneos. É algo novo, incipiente, que tende a realmente ficar descontrolado. Os refugiados da segunda guerra mundial, por exemplo, escapavam de instâncias totalitárias, pontuais, de regimes políticos nacionais com feições bem definidas, inclusive, em termos territoriais. Os refugiados que hoje amedrontam a Europa, Israel e outros países tentam escapar de vetores político-econômicos e de catástrofes da natureza que, pela sua inconstância, tornam o próprio espaço da fronteira uma virtualidade totalmente anacrônica. Os refugiados são os fantasmas que rondam um torpe imaginário do perigo do novo milênio.

Embora o filme de Mograbi não abarque essas diferenças, ele é astuto em criar um não-lugar que lhe conota, ao menos, um aconchego simbólico. Ou melhor, ele amplia a conotação territorial da palavra utopia como a emergência de um local inexistente, uma ilha a ser criada que vá além das atuais vilanias políticas. Em hipótese alguma esse território seria apreendido pelos artefatos e artifícios estatais. Nessa escolha estético-política, Mograbi afasta-se das relações entre documentário e encenações de violências estatais e paraestatais, como ocorre, por exemplo, nos filmes de Rithy Panh (S-21 – A Máquina de Matar do Khmer Vermelho) e de Joshua Oppenheim (O Ato de Matar), que buscam, pela dramaturgia, trazer para o presente códigos corporais de uma violência já passada, embora ainda latente. As dramaturgias utópicas de Mograbi e Chen Alon esmeram-se em fabular um espaço futuro, provisório, e em perigo, que dura tão somente o instante da sua encenação e que visa ultrapassar uma violência presente, atual, a qual, no tempo de Sísifo, caro ao ator, voltará, retornará às retinas e aos corpos dos refugiados ao fim de cada ensaio. Instaurando corpos onde as cercas não tocam, os refugiados convidam os espectadores a imaginar outros territórios. E aqui, nesse lapso utópico, não há espaço para Estado algum, já que os refugiados reivindicam uma liberdade nômade que é ontologicamente contra qualquer ideia, conceito ou prática de Estado. Não há reforma. Não há diálogo. Não por acaso o filme encerra-se com um canto entoado de forma potente, que preenche todo o espaço: o espaço da locação, o espaço utópico do filme, os territórios mais remotos de uma sala de cinema. Um canto que ultrapassa a mais sórdida das fronteiras.

Share Button