Em Berkeley (At Berkeley), de Frederick Wiseman (EUA, 2013)

outubro 18, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fabian Cantieri

atberkeley

Representatividade abatida: símbolos de uma sociedade em formação
por Fabian Cantieri

You only get one shot do not miss your chance to blow
cause opportunity comes once in a lifetime, go”.

Eminem

A cartela-contexto: após a crise de 2008, o Estado mais rico dos Estados Unidos passou pelo pior colapso financeiro de sua história desde o crack da bolsa de 1929. A rede pública de ensino da Califórnia, considerada a jóia da coroa da educação americana, recebeu o impacto direto: um corte de quase 3 bilhões de dólares no orçamento. Como conseqüência, a determinação de que professores e funcionários tirassem licenças não remuneradas obrigatórias (furloughs) e o aumento de 32% das taxas (fees) pagas pelos estudantes.

O filme: o dispositivo de Frederick Wiseman, como de costume, é aparentemente simples. O Em antes de Berkeley, como diz o próprio diretor em recente entrevista ao mubi, denota uma visita à universidade em 2010, mais do que um entendimento cabal de suas engrenagens num momento de “crise”. Sua estrutura na superfície parece segmentada em blocos facilmente apartáveis: ao longo de quatro horas de duração, vemos a complexidade que é o empreendimento da gestão de uma universidade pública gigantesca através de reuniões administrativas, entremeada por aulas diversas, sejam elas de Física, Literatura, Astrologia ou Zoologia. Entre uma combustão de discussões extensas, o ritmo ameniza em planos de respiro do campus, necessários para se digerir tanta informação por segundo.

Mas sabemos também que, em se tratando de Wiseman, raramente essa estrutura macro das situações nos entregará a chave de compreensão plena do filme. Antes, precisamos nos ater ao dispositivo no sentido mais básico, a essa superfície formal de abordagem: no como ele filma, no que ele nos mostra e deixa de mostrar, na justaposição de imagens, na tensão do corte e do contraplano e, fundamentalmente, na própria palavra.

Existe um dado técnico que pode ser encarado como uma informação valiosa: na maior parte do tempo de filmagens, só havia três pessoas na equipe. Como de praxe, Wiseman assume também a função de homem do som. Com ele, apenas o fotógrafo e um assistente para carregar os equipamentos. Quem tem o enquadramento final é o fotógrafo, mas quem dirige a cena é quem fala, é quem tem o poder de voz. Dirige no sentido de “dar uma direção aos nossos sentidos” – se fala, está sendo filmado – e não por pretensa manipulação ao saber que está sendo filmado. Eternamente indagado durante toda sua carreira se a câmera diante de alguém não modificaria a conduta do personagem enquadrado, Wiseman responderia sempre a mesma reposta: “bullshit”. Se esse processo não parece ser tão branco e preto assim, pelo menos em sua última obra essa questão é minimizada: a maior manipulação que os professores, administradores ou alunos poderiam fazer é se esforçar ao máximo em sua argumentação, é mostrar seu ponto de vista da maneira mais clara possível.

Se este fator minimizado é prescrito aqui, isto acontece por refletir em dois processos peculiares: o primeiro, de natureza mais filosófica, é o próprio processo do pensar que vemos, na sua mais livre espontaneidade, na cadência de sua ação, aferição e reação expositiva. O segundo, de natureza psicológica, é de como Berkeley e sua representação de “uma das maiores instituições de ensino do mundo” afeta o estatuto de quase todo pensar ali dentro (e isto parece ser um dos motes do filme): os administradores estão a todo tempo planejando a partir dessa conceituação já alcançada que nunca pode perder seus padrões. Mesmo com menos dinheiro, os alunos precisam provar para os outros e para si mesmos suas “inteligências”, seus méritos (a não ser, como diz um casal asiático num tom irônico, que consiga enganar a todos a partir de imagens falsamente construídas como fazer perguntas e se mostrar interessado nas aulas ou simplesmente “usar óculos”). O nível de pressão psicológica é tão grande que um rapaz do grupo de estudo com ex-combatentes de guerra chega a falar que na guerra era mais fácil, pois pelo menos lá a pressão era dividida e a ordem era de cima, ali tudo está concentrado nas mãos de cada um.

Para muitos então, Berkeley, neste sentido, não deixa de ser a one shot que o liberalismo norte-americano oferece a cada cidadão – oportunidade tão proeminente pela qual vale a pena até se endividar com empréstimos a juros altos, pois o diploma é quase a certeza de um bom emprego, o que teoricamente quitaria esta primeira dívida e recompensaria cada aluno a longo prazo. A educação funciona como investimento – prático, financeiro, em última instância de capital -, o homem como branding.

Para evitar conseqüentes condenações marxistas mais óbvias, fiquemos e limitemo-nos a estes carimbos de representatividade. Para além desta generalizada marca de “aluno Berkeley” que finda num valor de mercado, assistimos outras “tags” que, se por um lado se parecem mais universais, por outro, chegam aos nossos olhos como um caminho bastante particular (americano) de segmentação de uma comunidade. Um dos planos mais longos não só do filme como de toda a carreira de Wiseman é o de uma professora introduzindo o assunto das taxas estudantis, e depois uma personagem reagindo a esta condenação, pois a princípio isto só estaria sendo discutido naquele momento porque só agora estaria atingindo a classe média e não mais só a classe baixa e negra, da qual ela diz fazer parte. O escamoteamento do discurso não se restringe a obnubilar as fronteiras entre uma suposta classe negra e outra suposta classe baixa, mas também em assumir para si o peso e fardo (negativo e/ou orgulhoso) de representar toda esta pretensa classe dos negros. Por um fator estatístico – os negros são geralmente minoria na universidade; ela era a única negra em sala – estes poucos, que tiveram o mérito de aproveitar sua one shot, se sentem na obrigação de falar por outrem. Quando o outro se des-individualiza, se des-substancializa – este espectro abstrato do mencionado invisível – temos então uma aberta disputa do “eu versus você”. Uma falsa disputa entre combatentes reais e fantasmas.

O aparente paradoxo desta apropriação por representatividade – um representa o outro, logo o outro não é mais necessário no embate – é que isto precisa acontecer para que exista uma mínima organização coletiva – a política. Em um conselho de alunos, alguns necessariamente anulam outros ao se manifestar contra algo. Não pelo egoísmo da coisa (por parte da acusação, por parte de quem acusa), como delata uma aluna de que, por causa do protesto, sua prova foi cancelada, e outro que questiona o falso alarme de incêndio; mas pelo caráter de alteridade em comum percebido por um certo número de pessoas. A grande dificuldade que se apreende da parte final é que esse caráter de alteridade foi elevado a um tal grau de especificidade (afinal, somos todos outros, temos todos poder de voz) que se torna impossível um representar o outro.

O prefácio à partida de futebol nos comprova: não há como filmar mais um plano à Leni Riefenstahl. Até mesmo quando todos na platéia tentam o coro em uníssono visual de seu time, a coisa sai sem leitura, disforme. Essa tal crise de representatividade, tão exposta em dias de conflito direto, se conflagra como a era limite da modernidade, de um tempo que embalou o indivíduo para um ascetismo do eu. A reação do reitor que toca gravemente na ferida é sintomática: “eu fiz protesto nos anos 1960, as manifestações eram sobre coisas sérias, sobre o Vietnã, sobre um assunto só… nós podíamos ser demitidos”. Existia foco e não existia imunidade, algo que outro na mesma sala percebe “eles parecem querer reclamar de muita coisa ao mesmo tempo com a prerrogativa da imunidade”.

Berkeley é nacionalmente conhecida como a universidade de protestos históricos. Para aqueles que saem de suas faculdades com o patrimônio da “inteligência”, a sabedoria da manifestação nos entrega: é preciso estar disposto a correr riscos para vislumbrar uma efetiva mudança. Esta geralmente acontece sem diplomas em baixo do braço, à custo alto. Não há jornada sem sair de casa. Ainda assim, ao fim, quem nos ensina é um aluno fazendo PhD: “Andar é flertar com uma queda para trás”.

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