El Escarabajo de Oro, de Alejo Moguillansky & Fia-Stina Sandlund (Argentina/Dinamarca/Suécia, 2014)

agosto 25, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

escarabajo

Aventuras da História
por Raul Arthuso

Nos primeiros momentos de El Escarabajo de Oro, as cartelas de créditos inicias entrecortam o estopim de toda a trama do filme com letreiros, cores e músicas que emulam a mais rasteira comédia de erros do cinema comercial. Na ação, um ator de meia idade argentino tenta convencer seus colegas produtores de cinema da existência de um tesouro secular escondido em algum lugar das Missões Jesuítas no norte do país. Seu plano é fingir a realização de um filme para descobrirem o tesouro. Conhecemos bem a fórmula: o filme de golpe charmoso, divertido, ligeiro, ponte entre um elenco de estrelas e o deleite do público, demonstrado em nosso tempo pela franquia Não Sei Quantos Homens e mais Outros Segredos. Não é difícil imaginar El Escarabajo de Oro realizado por algum eficiente diretor local, com Ricardo Darín como capitão-mor da empreitada. Porém, logo nos primeiros minutos fica evidente o projeto debochado de Alejo Moguillansky e Fia-Stina Sandlund, tratando não apenas da paródia do filme de golpe, mas propondo uma ideia de aventura e curtição.

O filme será, então, colocado na estrada, e não apenas numa viagem entre Buenos Aires e as Missões, como também para outros lugares – Copenhagen, Brasil, Nova York – e outros tempos na história. El Escarabajo de Oro é um elogio do “pôr em cena” no sentido mais laico possível: pelo cinema e seus recursos emprestados das outras artes, especialmente as artes cênicas, é possível reconstituir tempos, inventar histórias como quem faz piada, manejar personagens, criar motivos e figuras, fazer da Buenos Aires dos anos 2000 uma Copenhagen do século XIX. Convivem, no filme, espaços, tempos, narradores, sem a impressão de fragmentação extensiva do todo; El Escarabajo de Oro é um lugar de existência dessas esferas numa releitura do gênero que se reapropria da História (com maiúscula mesmo) sem, na verdade, tirar do horizonte que essa História está sendo relida pela reapropriação do gênero cinematográfico.

Pois, no filme, tudo é fingimento: Buenos Aires que finge ser Copenhagen, o fingimento da filmagem pretexto para a busca do tesouro, as mulheres que fingem colaborar com os homens, a aventura metalinguística se fingindo de filme de golpe. O fingimento é a base da história e da forma, na medida em que as personagens existem enquanto caricaturas de si mesmas, sejam as personagens históricas que aparecem como pessoas fantasiadas – e o jeito tosco das caracterizações amplifica essa impressão – ou os membros da equipe representando a si mesmos, como clichês rasteiros do diretor impotente em meio ao contexto de pressão dos produtores e de sua co-diretora sueca ausente frente aos colegas de golpe, ou o ator canastrão tentando o dinheiro fácil para compensar a vida difícil de artista. As figuras de El Escarabajo de Oro vivem numa grande festa à fantasia.

Dentro disso, a metalinguagem exerce um papel fundamental, já que existe um filme dentro filme – e o filme que vemos é o resultado desse filme em produção. A certa altura, um dos narradores usa a expressão “filme fantasma” para se referir ao filme em realização como desculpa para a caça ao tesouro. A palavra aqui reproduz bem o jogo em abismo proposto em El Escarabajo de Oro, pois é impossível precisar a verdadeira natureza tanto do filme que vemos quanto daquele que se realiza, ou ainda o das reconstituições históricas. Dentro do filme de Moguillansky e Sandlund, todos os filmes são possíveis, mas nenhum o é. Essa ambigüidade é fundamental: El Escarabajo de Oro propõe uma aventura amorada na curtição, o espírito feel good do jogo e da brincadeira, como se o cinema pusesse em evidência o lado infantil da criatividade como potência artística. O mundo é um grande parque temático onde os realizadores podem se divertir à vontade, propondo regras e usos a seu bel-prazer. Nesse sentido, o filme é o irmão caçula de Aquele Querido Mês de Agosto, inclusive com cenas e piadas aprendidas diretamente com o irmão mais velho – por exemplo, as recorrentes piadas com o técnico de som direto, especialmente a cena do acostamento em que câmera, ação e o microfone em quadro criam um jogo disjuntivo muito semelhante à cena do jogo de malha no filme de Miguel Gomes. O diferencial para a vantagem de Gomes se dá no claro papel de AQMA como processo de cinema, um trajeto que, por mais descaminhos e imprevistos, parte de um ponto claro – a música regional de uma vila no interior de Portugal – para chegar numa ficção que se rearticula enquanto se faz, na medida em que em El Escarabajo de Oro, por sua vez, os limites entre a brincadeira e o desleixo estão borrados.

Apesar de seu clima de curtição, o filme lida em diversos momentos com temas sérios: feminismo, a visão eurocêntrica do mundo, processo criativo, política partidária, discurso histórico e economia do cinema de arte mundial hoje – e poucas vezes se viu uma formulação tão ácida e certeira quanto a reflexão de Rafael – o ator que propõe o golpe – sobre o financiamento europeu ao filme argentino, resumindo esse sistema como algo “entre a experimentação artística e a caridade”. Se os temas são sérios, a discussão é ambígua. Nada é dito com firmeza se não como uma firmeza jocosa, como um cinismo que, nem ele, se afirma como tal. Nessa nebulosa do discurso em que tudo é piada, o filme se reafirma como gincana e, então, expõe seu calcanhar de Aquiles em poder não se levar a sério. A tônica não é de descrença – não se trata de um filme de Lars von Trier, um verdadeiro cínico – mas de instabilidade; ou melhor: de transitoriedade. Nenhum discurso se afirma porque sua validade e apropriação se dão também pelo decurso do tempo. El Escarabajo de Oro é um filme, então, sobre Histórias e histórias.

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