E, de Alexandre Wahrhaftig, Helena Ungaretti e Miguel Antunes Ramos (Brasil, 2014)

fevereiro 14, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Juliano Gomes

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Holy Motors
por Juliano Gomes

“- Mas por que há sempre ‘dois’ em Godard? É preciso haver dois para que haja três… Bem, mas qual é o sentido desse 2, desse 3?

– Vocês estão fingindo, são os primeiros a saber que não é assim. Godard não é um dialético. O que conta para ele não é o 2 ou o 3, ou sei lá quanto é o E, a conjunção E. O uso do E em Godard é essencial. É importante, porque todo nosso pensamento é mais modelado pelo verbo ser, pelo É. A filosofia está entulhada de discussões sobre o juízo de atribuição (o céu é azul) e o juízo de existência (Deus é), suas reduções possíveis ou sua irredutibilidade. Mas trata-se sempre do verbo ser. Mesmo as conjunções são medidas pelo verbo ser, vê-se bem no silogismo. O E já não é nem mesmo uma conjunção ou uma relação particular, ele arrasta todas as relações; existem tantas relações quantos E, o E não só desequilibra todas as relações, ele desequilibra o ser, o verbo…, etc. O E, ‘e… e… e…’ é exatamente a gagueira criadora, o uso estrangeiro da língua, em oposição a seu uso conforme e dominante fundado sobre o verbo ser”.

Gilles Deleuze em entrevista para Cahiers du CInema 271, novembro de 1976

E, de Alexandre Wahrhaftig, Helena Ungaretti e Miguel Antunes Ramos, se coloca em um espaço onde convivem uma vontade e atenção voltados à concretude, mas, ao mesmo tempo, um olhar sobre a dimensão impalpável do que se mostra. Os estacionamentos existem, os carros, os terrenos existem, as máquinas já estão entre nós faz tempo. A escolha pelo estacionamento como ponto de partida é fértil na medida em que se trata justamente desse lugar ao mesmo tempo neutro, porque é um não-lugar, e estratégico, por estar ligado a um pensamento sobre o espaço urbano que prioriza uma experiência de exploração via rentabilização dos possíveis. O estacionamento o é justamente por ser esse nada, esse não-ser (um velho cinema, um terreno baldio, um canteiro de obras, as ruínas de residências). E, o filme, quer buscar mapear esse espaço vazio, perguntando aos seus vizinhos, investigando ao redor dos espaços e das ideias.

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Comecemos então pelos buracos. O primeiro deles: não há corpos humanos. No filme, não vemos pessoas. Talvez nas primeiras imagens haja algum pequeno corpo na vastidão das avenidas e dos viadutos. Mas o que importa aqui é que o humano não é a escala dessa imagem cartográfiaca. Trata-se um mundo de máquinas (além dos carros: elevadores, cancelas, guindastes, aviões, helicópteros, catracas, e, obviamente, câmeras). Uma subjetiva da máquina é uma contradição em termos? O que há aqui para ver são imagens de ruas urbanas, estacionamentos, prédios, vias várias. Mas se haver cameras é algo importante, a formação dessas imagem necessariamente se torna um vetor. A câmera é também uma espécie de meio de transporte que leva uma coisa de um lugar ao outro. Desses lugares, temos as imagens geradas “diretamente” pelo filme, as imagens geradas pelo Google Street View, imagens reproduzidas em painéis penduradas em um dos primeiros estacionamentos, e maquetes. A ausência do corpo humano dá lugar a essa variação das imagens da cidade, desse passeio que é também uma exploração das texturas desse mundo oco. A imagem é seu próprio elemento de escala, e daí vamos passando de uma a outra.

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Mas que imagem-máquina é essa? Ela tem uma dimensão dinâmica e outra estática. A segunda são os espaços, os planos abertos dos estacionamentos, que se mostram, um por vez, organizados e planejados em relativa harmonia. Para ver o vazio é preciso de tempo e de permanência, pois é aí que o nada se transforma nele. A outra faixa de imagens é a dos carros em movimento. Há várias subjetivas de carros (outro nome para travelings) e uma certa exposição ambígua da exuberância de seus movimentos e das máquinas que se acoplam a eles, como plataformas móveis e elevadores. Essa zona cinza de representação é fruto de uma beleza cinética que faz dos automóveis primos do cinema (travelings). A diferença moral desse road movie às avessas (filme de trajeto, que encontra cenas que vão se acumulando no caminho) é sua adesão parcial a essa energia pura do movimento, abstrata, como no primeiro plano do filme, das luzes de um túnel vistas em velocidade, tornadas mais imagens que registro. Há uma espécie de reserva de consciência que não permite a entrada neste lugar que visa causar uma sensação pelo movimento, pela eficiência das máquinas rasgando os espaços, justamente por um temor diante do espetáculo. A exploração das variadas formas de imagem é justamente a tentativa de pavimentação de um trajeto que dê a volta no espetáculo – portanto, na publicidade e na sedução.

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De fato, constitui-se um regime de fazer imagem cujo foco não é nítido. Quando os estacionamentos são filmados em funcionamento, são cortados tanto os carros quanto os espaços. Há um certo desnível, um buraco entre um e outro. O que a câmera está filmando? Ela filma o que seria daquele espaço sem carros, ou está mesmo cortando os auomóveis em sua inteireza no quadro? Ou, ainda, será que são tantos carros que não cabem no enquadramento? A opção é por um desajuste na composição, entre o olhar e a cena, mostrando que alguma coisa não está justa nessa relação, ou mesmo, que isso vaza pra fora (o E). Aí se dá uma intervenção bastante marcada nas suas matérias, no sentido de uma constituição não espetacular. As imagens sugerem justamente que isso não acaba aqui, isso se infiltra em outras coisas. Essa invasão de carros no quadro, essa luta entre máquinas, é o retrato de um passado (os espaços sem os carros, como uma foto de família vítima de uma montagem) e de um futuro.

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As sequências com o aplicativo das imagens das ruas dá forma a essa dupla direção. Aquilo já é passado (como os “tira-teimas” das imagens mais recentes transformadas em estacionamentos atestam) também por ser uma imagem fotográfica, sem dinâmica, uma máquina antiga, de instantes congelados. Porém, é também uma peça de ficção científica (um gênero justo para esse filme, de maneira literal, pois ele coloca em choque ficções mecânicas distintas), em seus movimentos simulados entre uma imagem e outra, via interação. A ponta de lança do futuro, o espaço público transformado em imagem acessível, não pode deixar de ser uma forma do passado, obsoleta no jogo dessa ficção mesma que o instantâneo virtual cria. Levado pelo carro, o estacionamento é a imagem que liga esses dois mundos – o mundo dos motores e o das renderizações.

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Não à toa, umas das vozes que ouvimos – a da personagem que mora em um prédio que permite que guarde seu carro dentro de seu apartamento – foi seduzida pela contemporaneidade, é formada justamente por essas duas pontas da ficção científica: a eficiência (dos motores) e a dócil customização. O mais impressionante dessa cena é vermos, no plano que mostra a traseira do carro ao fundo da cozinha, uma continuidade perfeita da paleta de cores e materiais – brancos, vidros e metais obedecendo à lista de cores que o filme narra no início: todos os pretos, os brancos e os cinzas desses carros e dessas cozinhas tendem ao mesmo. O estacionamento de rua, de terreno baldio, se torna, pelos seus materiais, uma espécie de peça de resistência a um mundo que tende ao liso, ao cinza cyber.

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E contrapõe essa tendência ao cinza metálico com o som das falas. As falas, sem corpo na imagem, vão narrar desde o conceito de um estacionamento embelezador até a rentabilidade desse negócio, uma história pessoal de uma ex-residência, um depoimento de um dono de cinema transformado em vagas, a orgulhosa dona do estacionamento dentro do apartamento contemporâneo e as palavras de prospecto imobiliário enumerando as vantagens de seu investimento. Variando entre nostalgia e ironia, o som dá uma medida das interações possíveis do humano nessa ficção dos motores. As narrações são o subjetivo que não se cumpre. Em vez de nomes, lugares são usados como marca. Antes da fala, um endereço: é a voz do espaço que ouvimos. Se é possível fabular, nenhum lugar é realmente vazio. E aceita o convite da fabulação, enumera essas possibilidades uma a uma (o filme dá a impressão de que poderia seguir mais, de que continua), mas recusa o encanto.

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Entre o concreto das ruas e o abstrato das imagens, o filme se coloca justamente no espaço que há entre os dois, para verificar se há alguma linha possível aí. Daí a impressão de que seu escopo é enorme, pois trata-se de uma ideia que está sendo debatida. Uma ideia de espaço que é o espaço de uma ideia, o teste de seu alcance real como matéria do mundo. Até onde isso vai? Que limites isso tem? Qual o alcance desse projeto onde os corpos não têm vez? Nesse sentido da prova da tentativa, de fato pode-se localizar uma ensaística aqui – tão bruta quanto sofisticada -, entre pixels e solavancos, que encontra o contemporâneo pelas sombras, pelos vácuos; daí a força de sua estratégia. Se muito parece haver ainda a se dizer sobre o assunto (um estacionamento de periferia seria uma hipótese), é porque as ligações, dentro de um filme, são necessariamente inesgotáveis. É nessa força de projeção, nessa circulação espiralada, que o filme aposta, nessa expansão contínua de uma ideia materializada em um não-lugar. É visível. 

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