Dramaturgia da dúvida

maio 13, 2013 em Em Pauta, Pablo Gonçalo

Blade Runner (1982), de Ridley Scott

Blade Runner (1982), de Ridley Scott

Um tríptico binário e não linear
por Pablo Gonçalo

“A dúvida pode ser concebida por uma procura de certeza que começa por destruir a certeza autêntica para produzir certeza inautêntica”.

Vílem Flusser.

No seu estudo sobre as mídias óticas, o teórico de mídias Friedrich Kitler propõe compreender a história das imagens não a partir daquilo que elas revelam. Diferentemente, ele se debruça sobre o que suas configurações tecnológicas escondem e escamoteiam. Os truques do olhar são prenhes de técnicas de desaparição, que convidam para infinitas variações das falhas fenomenológicas do olhar. Se seguirmos esse percurso histórico, deveremos encarar alguns dos gestos miméticos e narrativos que consolidam o fluxo da imagem na sua formatação tecnológica contemporânea. Da sala escura ao algoritmo, delineia-se um trajeto, um caminho, um projétil, talvez, que também perpassa os poros do aparato cinematográfico. Sinuoso, enigmático, cheio de falhas – é preciso percorrê-lo. Três filmes ímpares nos dão pistas. Três momentos distintos. Obras sem nenhuma ligação direta, mas que são potencialmente sugestivas das geometrias desenhadas por esse percurso.

Memories of Murder (2003), nosso primeiro filme, realizado por Bong Joon-ho, conta a trajetória de dois detetives que procuram por rastros e evidências de um serial killer e estuprador que atuava na província de Gyunggi, na Coréia do Sul. O ano da narrativa é 1986 e os dois policiais passam décadas atrás dos vestígios, dos índices e das possíveis provas de um assassino que eles acham ter visto, que eles supõem estar na iminência de encontrar. Ficam de frente a todos os rastros: os gestos característicos do assassino; a música que pedia para tocar no rádio minutos antes de cometer o homicídio; os atos repetidos durante o estupro. Ao fim e ao cabo, esse criminoso sempre desaparece. Como um dopellganger, um reflexo fantasmático das próprias obsessões dos detetives – e dos espectadores –, o assassino acaba por ser ninguém. É um retrato imaginado, não visto, pois não se materializa em blow up algum, não se co-substancia em imagem, não completa a parte final, o último lance, os desvendamentos ficcionais – num contracampo que almeja despertar uma revelação cara ao jogos miméticos mais tradicionais.

Memories of Murder (2003), de Bong Joon-ho

Memories of Murder (2003), de Bong Joon-ho

Esse tipo de ambiente misterioso e de suspense é, obviamente, uma tônica comum nos gêneros de film noirs e nos seus desdobramentos mais recentes. No entanto, há em Memories of Murder uma espiral sem fim, uma novidade, talvez, sintomática: uma busca menos por um espelho preciso, uma imagem assertiva, do que por projeções escópicas, que fiam uma narrativa tênue entre essas zonas imprecisas – uma narrativa que tem na ausência um dos seus alicerces. Busca-se, como ponto de partida, as potências estéticas da sugestão e da especulação. Trata-se de um gesto dramatúrgico cujos pressupostos não estão mais num desdobramento teleológico do plot – pólo da transparência, calcado numa força assertiva, nem na sua recusa e agonia, resistência singular dos filhos do cinema moderno.

Em Cachê (2003), de Michael Haneke, há, simplesmente, uma câmera que filma. Um sujeito oculto; não se sabe ao certo como, quando e por quem aquelas imagens foram feitas. Mas sente-se a presença da câmera, como um corpo, como uma mídia, cuja força de índice e indexação é dramaturgicamente diluída, estendida ao máximo, com um anseio inalcançável de anulação semântica do próprio índice. Embora Haneke enfatize logo no título do seu filme que escondeu algo, não revela – e talvez sequer saiba ou queira saber – o que de fato está abscôndito. Trata-se de um trompe l’oeil cético e solipsista quanto ao seu manejo, certo quanto aos seus efeitos, mas que desconfia e compartilha desconfiança quanto aos seus próprios truques (sejam eles dramáticos, narrativos ou midiáticos). Tanto em Cachê como em Memórias de um Assassino as desaparições são o cerne e mesmo o âmago da relação com a imagem e a narrativa. Os índices do real não são apenas fugidios, mas dissolvidos, corroídos e deglutidos pelas espirais narrativas. Se todo índice pressupõe uma afirmação, Haneke e Bong Joon-ho se esquivam em propor esse gesto aos espectadores.

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Cachê (2003), de Michael Haneke

Num flashback certamente inusitado, voltaríamos para uma das cenas mais conhecidas dos anos oitenta. Na verdade, uma ficção científica cuja narrativa ocorre na já não tão distante, mas distópica Los Angeles de 2019. Chamo a atenção para o método de investigação que os caçadores de andróides de Blade Runner (1982), de Ridley Scott, usam para diferenciar humanos de replicantes. No questionário, o detetive fia-se pela empatia e pela projeção de emoções frente a questões simples, que envolvem o cotidiano. Reações são digitadas, catalogadas, automatizadas, decodificadas, comparadas, interceptadas. Entre o investigador e o investigado, uma máquina, que armazena, executa, controla. O índice é mediado, torna-se tripartido, despistando, constantemente, as possibilidades de descortinamento mimético. Entre o discurso e a palavra, a imagem do olho à espera de uma pista, da retina espelhada; em busca de uma falha, de vestígios que consigam distinguir entre gestos demasiadamente humanos de outros, robóticos, que nos imitam com perfeição.

É claro que o filme de Ridley Scott é mais ilustrativo e temático do que propriamente gramático. Como se sabe, trata-se de uma adaptação da ficção científica do livro Do androids dream of eletric sheep?, de Philip K. Dick, que, por sua vez, inspirou-se no “jogo da imitação” proposto por Alan M. Turing, fundador da informática moderna e dos pressupostos da inteligência artificial. Provocativo, Turing sugere que as máquinas podem “pensar”, de forma autônoma, armazenando, processando e controlando todos os gestos, atos e conceitos até então exclusivamente executados por humanos. Se puderem fazer isso, conclui, serão capazes de tudo reproduzir e imitar, ad infinitum. Pouco importa se homem ou máquinas, esse jogo da imitação corrobora programas, controle, funções  e respostas. Nada mais.

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Blade Runner (1982), de Ridley Scott

A era digital – é dela que estamos tratando – certamente representa uma guinada radical e uma nova etapa no jogo mimético e de representação da realidade. Não é por acaso que a “Máquina de Turing” é denominada como universal: ela tudo engloba e deglute, para processar e reprocessar. Palavras, imagens, personagens, gestos, emoções tornam-se tão somente sintomas de uma inteira e inevitável digitalização do cosmos e do universo (quando antropomórficos). De fato, a sutil distinção procurada pelos caçadores de andróides não é apenas improvável como, sobretudo hoje, improducente. Afinal, como podemos procurar fendas em questões sobre a ontologia se estamos no seio de uma configuração digital que programa, desprograma e reprograma a própria afirmação do índice? É por meio da sua insistente dissimulação que esses novos jogo miméticos pretendem anular, matematicamente, os flertes sobre uma ontologia da imagem numérica. Estamos diante de uma geometria com curvatura negativa, numa secção cônica, cujos traços esboçam um universo hiperbólico.

Do que duvido?

No entanto, algumas perguntas permanecem: qual seria o impacto da imposição dessa máquina de Turing no cenário cinematográfico? O que muda? Ou bem precisamente: há algo que muda? Afirmar que o cinema fenece é mais do que um chavão, como carece de qualquer compreensão dos passos da sua história. Não bastasse ter passado de mudo para sonoro, ter enfrentado todas as bitolas, suas metamorfoses, e formatos de tela, a televisão, o vídeo e o desmonte globalizado das suas salas como templo dos cinéfilos; a despeito de todo esse determinismo tecnológico, o cinema, como linguagem, tem um quê de Fênix. Renasce, ressurge, permanece – sai revigorado. Ainda assim, o digital instala-se como um vírus que reprograma os próprios conceitos do que hoje reconhecemos como cinema, ou linguagem audiovisual.

Sutil e pacientemente, o digital corroeu o substantivo cinema, para deixar tudo mais cinematográfico, para adjetivá-lo. Em vez de ser a janela e a linguagem matriz, o cinema tornou-se uma mídia a mais, contável, enfileirada. Aos poucos, passou a circular em museus, como um refúgio, um abrigo, protegendo-se e dialeticamente aderindo à sua hiper-institucionalização. Tornou-se objeto de culto, de colecionador, com um passado glorioso, romântico, por demais acadêmico, já distante do ardor underground quando, heroicamente, desdenhava o glamour dos festivais. O digital inoculou as molduras de uma mídia a uma linguagem que se esmerava em representar a realidade, o real. Instalou o vírus da dúvida.

São três as conseqüências mais imediatas e difundidas dessa museificação e densa historio-grafia do cinema. A primeira e mais evidente é um olhar nostálgico para a sua própria história. Trata-se de uma percepção de que o cinema deixou de ser um ator propulsor da história – de representar um país, uma época, uma sociedade – e passou a fazer parte da história, como um adorno secundário. Conseqüência: várias obras passaram a olhar para a própria história, os períodos passados do cinema, de uma forma nostálgica, que algumas vezes descamba para um maneirismo decadentista ou “vintage”. O Oscar de 2012 foi sintomático nesse sentido. Filmes como O Artista (2011) e A Invenção de Hugo Cabret (2011) não eram homenagens fortuitas às primeiras décadas do cinema, mas reveladores de uma agonia interna entre uma linguagem com seu suporte e seu papel social de representação do real. Em outras ocasiões, mais ousadas, esse pathos da nostalgia propõe cadenciamentos estéticos interessantes, como podemos ver em Tabu (2012), de Miguel Gomes, onde o ato de olhar para o passado, e para tudo que nele foi perdido, suscita um contraponto dramático, que acaba por não levar essa nostalgia tão a sério. Miguel Gomes talvez prefira o riso de Demócrito às lágrimas de Heráclites.

A Invenção de Hugo Cabret (2011), de Martin Scorsese

A Invenção de Hugo Cabret (2011), de Martin Scorsese

As outras decorrências estão em pólos opostos. Elas são respostas radicais advindas do jogo de imitação, tal como formulado por Turing. De um lado, o cinismo, como gesto que já não crê, mas que, ainda assim, dissimula um poder na força e no impacto da mise en scène. Essa tendência flerta diretamente com a gramática dos gêneros, transcodificando-os, e tem em obras de Tarantino, os irmãos Coen, Lars von Trier e Almodóvar alguns dos seus exemplos mais notáveis. Do outro lado, surge a fé na imanência da imagem como gesto redentor e diferenciador das sua banalizações espetaculares. Esse veio flerta com ambições metafísicas e icônicas, que apostam fichas deveras religiosas, numa imagem que almeja a transcendência. Diretores como Terence Malick e Alexander Sokúrov, com instantes e forças distintas, são alguns que seguem por esse viés. No entanto, essa linhagem tem lampejos em momentos e mapas diversos do audioviosual contemporâneo, com uma genealogia instigante que talvez comece com Dreyer e passe por Kieslowski.

É nesse pantanoso terreno de assertividade digital – e frente a algumas das suas conseqüências – que a dúvida brota, como um gesto ambíguo, prenhe de paradoxos, potencialidades e frustrações. A dúvida não surge apenas na oscilação e fronteira imprecisa entre o documentário e os seus jogos ficcionais. Seja nessa estética da performance, seja na ênfase da presença como força motriz de atuação, encontram-se, nesses casos, uma assertividade e um anseio de persuasão. Um gesto que busca lidar com o modus mimético vigente e  parte, sobretudo, de uma vontade de interação. Diferentemente, a dúvida instala-se antes, durante e depois do jogo – ela contamina e degenera, numa metástase, as próprias engrenagens que desperta. É um gesto dramatúrgico que transcende as molduras dos dispositivos ou as leituras adornianas do ensaio, as quais, às vezes – seja na teoria, seja na prática – são muito fixas, funcionais, pré-fabricadas, totalizantes, cerradas ou ansiosas demais por um acaso redentor.

A dúvida, ao contrário, não redime, denuncia ou sintetiza. Penso na agonia muda de Verônica (Maria Oneto) em A Mulher sem Cabeça (2008), de Lucrécia Martel. Ela sai num dia comum, no seu carro, escutando uma música no rádio. Na estrada, em alta velocidade, ao passar por um trecho um tanto deserto, seu carro tromba, atropela algo. Embora proto-dramática, a música continua, indiferente e talvez insensível frente ao tal acontecimento. No retrovisor: um corpo envolto pela poeira de terra seca, levantada pela freada brusca. Não se sabe se um menino ou um animal – algo agoniza. O contracampo, não por acaso, confunde mais do que revela. No entanto, importa pouco o que de fato aconteceu. Por meio da dúvida, aqui compartilhada entre o personagem e o espectador, Lucrécia Martel quer enfatizar os impasses, as reações e decisões. A ré que Verônica não deu. Seu arrependimento inócuo. A própria dúvida inoculada na memória da personagem, que, numa verve pós-traumática, acaba por esquecer, apagar e remontar o que realmente ocorreu. Nessa narrativa, a elaboração da experiência não passa apenas por um escalonamento entre o real, o imaginário e o simbólico, mas confunde-se entre essas transições, hesita, titubeia, gagueja.

A Mulher sem Cabeça (2009), de Lucrecia Martel

A Mulher sem Cabeça (2008), de Lucrecia Martel

Aos poucos, a própria dúvida fica em xeque e instala um beco sem saída. Esta dúvida da dúvida, a dúvida de si mesmo – a pergunta cartesiana que, momentaneamente, se esquiva em apontar para o logos – é mais do que labiríntica; ela fragmenta, deixa rastros incompletos, inconclusos, abandonados, que oscilam entre uma implosão de todos os significados ou uma nova metamorfose. Como se fosse necessário abandonar a realidade para outra buscar ou, por meio de fios tão ficcionais, arquitetar uma nova cosmogonia. Tal como em Sísifo, no seu mito, deixa-se a pedra cair, ladeira abaixo. É preciso recomeçar, recomeçar, recomeçar.

Talvez seja em Cópia Fiel (2010), de Kiarostami que essas hesitações, essas dúvidas frente ao real vivido, experimentado e imaginado, ganhem sua melhor composição dramática. Os gestos assertivos, mesmos os narrativos, são todos transitórios e dissolvem-se no compasso do metrônomo, tal como numa ampulheta, que cria novas imagens e sensações, enquanto se desfaz materialmente. Aos poucos revela-se que um casal encena para si mesmo, num anseio de recuperar um mito de origem: a viagem de lua de mel, a viagem romântica pela Itália. O que era uma dúvida narrativa para o espectador, quando cadenciada por pistas falsas e revelações, contamina-se entre os próprios personagens. Duvida-se do próprio amor, duvida-se do fim, duvida-se do recomeço. Astuto como poucos, Kiarostami tece um contraponto singular ao deixar essas dúvidas fluírem dentro do plano fixo, assertivo, impregnado de um real que supomos real, mas que, desgastado, já não convence mais.

Cópia Fiel (2010), de Abbas Kiarostami

Cópia Fiel (2010), de Abbas Kiarostami

Propositalmente, Kiarostami faz a cópia da cópia da cópia. Seu filme remete não apenas ao Viagem à Itália (1954), de Roselinni, mas também ao Godard de Le Mépris (1963), como se fosse uma forma de ir além da  dicotomia entre áurea e cópia. Aqui, a própria cópia é tida como informação, beat, píxel, nesse tríptico da reprodução, nesse jogo mimético proposto (e implementado) via Turing. A cópia surge como um dado, como um modo contínuo e ininterrupto – um índice inventado; é trabalhada, reprocessada, interceptada. Essa cópia da cópia, tripartida, fake e desgastada, não reivindica nem possibilita interpretações, mas convida a descontroles, a dúvidas sobre os próprios comandos que a possibilitaram e a reduplicaram, exponencialmente, como cópia. Num gesto hacker, (des)programa-se o DNA da cópia – e a dúvida sobre uma origem transcodifica-se, dramaturgicamente, na própria origem da dúvida.

Uma legião sem rosto

Fundamental para erguer a política dos autores, a expressão “câmera-stylo”, a câmera-caneta de Astruc, talvez seja hoje das mais anacrônicas. Não apenas porque passamos de uma escritura manual e artesanal, caligráfica, para a tipografia e a digitalização, mas porque a própria afirmação do autor, sua assinatura, reivindica gestos que lidam com esse cenário intermidiático. Nesse contexto de convergência, no qual o suporte torna-se volátil, é a própria assinatura que se desmaterializa. Os coletivos, o anonimato hacker, o coro dos twitters e os nicknames – essas máscaras sem rostos – são sintomas de uma afirmação autoral com novas tonalidades. E as faces ausentes repetem-se, randomicamente, como o capuz de Banksy, o já velho gorro do Sub-comandante Marcos, ora o gato, ora o saco plástico na frente da face – o humor de Chris Marker. Num mundo de convívio com índices fantasmagóricos, opta-se pela encenação, a dissimulação da própria presença e a assinatura pela mise en scène que, quando não desgastada e reificada, ganha novos contornos, impalpáveis, intangíveis. Plenos de ambigüidades, criam-se rastros dramatúrgicos claudicantes, que não afirmam de maneira direta, desprovidos de uma ênfase assertiva; nem negam, rejeitam ou se afastam de um afã de encantamento.

Em Parallel (2012), recente vídeo-instalação de Harun Farocki, o diretor contrapõe a imagem analógica à digital. Inspirado nos irmãos Lumières, ele vai buscar o vento, o balançar das árvores, o fluxo da água, a forma como a natureza seria cinematograficamente traduzida. Na sua genealogia, ele nos conta, brevemente, uma pequena história do vídeo-game, da forma como a própria natureza é lá reproduzida, reduplicada, programada; como, dos anos oitenta aos nossos dias, essa mímesis digital acumulou um conhecimento que desperta um novo fluxo imperceptível. Nas computações numéricas, o digital anula o índice e, em vez de imprimir uma duplicação da realidade, simula uma realidade duplicada. Ciente de que seu paralelismo é inócuo, Farocki encara uma certa natureza dessas linhas algorítmicas, linhas que nunca se encontrarão, que traçam rumos paralelos, infinitos, que desenham superfícies transparentes e imateriais, desafiantes às linhas de uma cultura letrada, racional, alfabética e interpretativa. É por um contraste bobo e inútil que o digital, às nossas retinas analógicas, adquire existência e autonomia.

Parallel (2012), de Harun Farocki

Parallel (2012), de Harun Farocki

Mesmo que faça algum sentido, essa dramaturgia da dúvida não perdura; ela não convida a linhagens. Dúvida alguma cria parâmetros, escolas, tendências, estilos, seguidores, ou coerência entre filmes desconexos. Seu gesto não ultrapassa o intento da pergunta, o toque da perturbação, do estranhamento do instante, volátil, em que algo foi colocado em xeque. A dúvida não se resolve nas contorções da dialética, nem se conforma com roupagens niilistas. É como a escada de Wittgenstein: seus degraus desmoronam enquanto escalamos, eles se anulam, não se sustentam, não criam sistemas, mas atos, gestos, instantes. É no seio dessa névoa, prenhe de imprecisões provisórias, que a dúvida aponta para algo novo e indefinido. Algo inominável, invisível, impronunciável.

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