Double Play: James Benning & Richard Linklater, de Gabe Klinger (EUA, 2013)

outubro 28, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

doubleplay

Encenar uma amizade
por Filipe Furtado

Se quase todas as sequências de Double Play versam a principio sobre o cinema, é preciso dizer que ele é somente um tema secundário do filme. É uma forma de dizer que, apesar do atrativo inicial deste primeiro longa de Gabe Klinger seja ele versar sobre dois cineastas importantes – James Benning e Richard Linklater -, não se trata de um filme ocupado pela informação. Ao seu final, se aprendemos um pouco sobre seus protagonistas e seus respectivos olhares sobre o cinema, será mais pela forma que eles se relacionam com a câmera do que pelos ocasionais vídeos ilustrativos e pronunciamentos sobre o meio. No centro do filme, está a relação entre Linklater e Benning – mestres em esferas a princípio irreconciliáveis do cinema americano, e amigos desde o fim dos anos 1980 – e um desejo de encenar um encontro entre eles.

Double Play é um documentário dominado por este desejo de colocar em cena. É um filme muito simples que, na maioria do tempo, consiste em colocar seus dois protagonistas frente a frente e deixar que a relação entre eles se desenvolva. Salvo pela aparição do público na exibição de um filme de Benning no cinema que Linklater administra em Austin, que serve de ponto de partida para o reencontro deles, e da presença em cena da montadora Sandra Adair numa sequência chave próxima ao final, o filme sequer abre espaço para outros personagens. Double Play alcança um movimento expressivo de permitir que seus dois protagonistas dominem as suas sequências, com a intervenção de Klinger e sua equipe notáveis somente pelas suas escolhas de como chegar até eles.

O cineasta, em parceria com o fotografo Eduard Grau, encaram Linklater e Benning como personagens de ficção cuja amizade eles precisam encenar. Não que o filme pareça ensaiado – pelo contrario, parte do seu prazer surge justamente da naturalidade com a qual os dois protagonistas se relacionam – mas ele transpira um desejo de pensar como aqueles dois homens se relacionam com a câmera. É um desejo que ajuda a explicar o efeito emotivo que algumas das melhores passagens do filme sugerem.

Boa parte da graça de Double Play se encontra em como o filme cataloga gestos e posturas e os torna essenciais para o seu olhar – como, por exemplo, quando filma Benning e Linklater a jogar beisebol e lembrar das suas respectivas carreiras amadoras no esporte, e o visível prazer de ambos torna-se por um momento o centro do filme. É um movimento muito natural para um filme que lida com dois cineastas cuja obra sempre valorizou uma curiosidade diante de espaços e atores – Linklater pode trabalhar sobre uma tradição muito mais evidentemente narrativa do que Benning, mas seus filmes sempre foram muito mais sobre como cada personagem se comporta a partir do drama do que sobre a dramaturgia em si. É, por exemplo, muito hábil a maneira como Klinger contrasta o entusiasmo constante de Linklater com o tom muito mais distante de Benning, como quando as várias declarações sobre não ser um cinéfilo do segundo se chocam com os muitos pôsteres a decorar o escritório do primeiro. Se Double Play informa o espectador de algo, é justamente de como o comportamento diante da câmera de cada um dos cineastas sugere um estar no mundo próprio, e a forma como eles se aproximam e se distanciam.

Double Play nem sempre se despe por completo das necessidades protocolares do “documentário sobre cineasta”: em alguns momentos, seu uso de sequências de filmes de Benning e Linklater pode parecer excessivamente ilustrativo. Se, por um lado, a simples presença de momentos dos filmes de Benning tem uma força política muito grande, um lembrete que algumas formas de cinema são sub-representadas mesmo em eventos pretensamente arriscados como a Mostra, por outro é também verdade que a importância da duração para seu impacto faz com que eles sejam pouco adequados para serem usados desta maneira.

A ideia de duração é uma que transpassa muita das conversas entre os cineastas, dada a importância que ambos colocam sobre ela – a duração do plano em Benning; o recorte temporal nos filmes de Linklater – e há certamente bons momentos que o filme extrai ao colocá-los para falar sobre cinema. Em especial, há uma ótima sequência na qual Linklater exibe partes de Boyhood, filme que ele vem rodando aos poucos ao longo da última década, a Benning – em particular, o momento em que Benning observa que foi bom para o amigo optar por rodar o filme em 35mm, não por algum fetiche pela película (o próprio Benning trabalha em digital desde 2009), mas porque as mudanças constantes de tecnologia tornariam impossível manter o padrão uniforme de imagem que o filme pedia. É uma observação simples, mas que diz muito sobre como a realização cinematográfica é sempre um processo eminentemente histórico, algo que é sempre presente nos filmes de ambos.

Double Play é um filme marcado por estas observações simples, por gestos e pelo afeto genuíno dos dois artistas, um pelo outro, assim como algumas digressões inspiradas, como o momento em que Klinger e Grau lançam Benning num longo plano que deseja se aproximar dos seus filmes. Com sua curiosidade e paciência, o filme consegue juntar todas estes elementos para colocar em cena sua relação central. Se os documentários sobre cinema que chegam a eventos como a Mostra sofrem invariavelmente do mal de parecerem, mesmo nos melhores casos, extras de Blu-Ray, Double Play representa um frescor raro no subgênero.

Share Button