Doméstica, de Gabriel Mascaro (Brasil, 2012)
maio 16, 2013 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Fábio Andrade
Dramaturgia imponderável
por Fábio Andrade
Quando escrevi aqui na Cinética sobre As Aventuras de Paulo Bruscky (2010), de Gabriel Mascaro, uma das notas que ficaram fora do texto dizia respeito à impressão de um projeto de pensamento sobre cinema compartilhado entre Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso. Paulo Bruscky avançava alguns dos desejos de Pacific (2009): enquanto Pedroso se dedicava a construir um filme “sem filmagem”, “sem direção”, o curta de Mascaro, feito todo pelo Second Life, era um filme “sem câmera”, “sem matéria” (e as aspas só estão aí porque é claro que todas essas coisas existem nos dois filmes, mas não da forma que elas normalmente estão). Naturalmente, há semelhanças com outros documentários de arquivo (Pacific) ou filmes de animação (Paulo Bruscky), mas ambos eram movidos por uma outra inquietação menos material – tendendo à imaterialidade – que diz respeito às possibilidades criativas diante de certo descontrole. Se a melhor produção documentária é geralmente (embora nem sempre) marcada pela abertura ao imponderável, Pacific e Paulo Bruscky buscavam novas modalidades possíveis desse descontrole. Em uma época em que essa imponderabilidade já se encontra cerceada por padrões muito estanques oriundos da televisão, das artes visuais e do próprio documentário, a inquietação por si já era louvável. Mas, mais do que isso, era um tiro no alvo certo: do descontrole, surgia a chance de dramaturgia.
Doméstica, de Gabriel Mascaro, é um novo passo nesse mesmo caminho. Sete adolescentes são convidados a realizarem um documentário sobre suas empregadas domésticas. Mascaro não participa ativamente de nenhuma das filmagens, dirigindo por meio do trabalho como idealizador, curador e editor desse material – tanto o humano quanto o audiovisual. A primeira escolha decisiva está na deliberação de um recorte: os jovens convidados para empunhar a câmera são todos de um faixa etária extremamente específica, em fase da vida em que as relações de poder ainda não estão totalmente definidas. Quando ouvimos, nos planos de abertura do filme, alguns deles afirmarem que suas empregadas domésticas trabalham em suas casas há 16, 17 anos, é inevitável a constatação de que eles não têm muito mais idade do que isso. Doméstica se infiltra na zona cinzenta em que seus “narradores” deixam de ter as domésticas como figuras de relativa autoridade (de babás) sobre eles, mas sobre quem ainda não “se afirmaram como patrões”, parafraseando uma das personagens do filme. Em cada um dos casos, os narradores que Mascaro desenha a partir do material bruto são narradores oscilantes, ora usando a câmera como ferramenta dessa afirmação, ora como instrumento de curiosidade. A relação de classe que vemos em cena, em Doméstica, é imagem e semelhança da relação entre documentarista e documentado.
Mas, em Doméstica, se concentrar na origem da enunciação é ver apenas parte da questão. Se, em Um Lugar ao Sol (2009) e Avenida Brasília Formosa (2010), o interesse pelas relações de classes se somava à univocidade do título em uma impressão de painel, a primeira grande surpresa aqui é justamente como o filme parte de um recorte tão delimitado para ampliá-lo de dentro para fora. Doméstica é, na verdade, um filme de personagens. Em época em que o documentário brasileiro é dominado por filmes supostamente tão dedicados a seus protagonistas que os carregam no título, em uma operação de equivalência muitas vezes falsa (Santiago, de João Moreira Salles, poderia ser uma imagem equivalente a Santiago, o personagem?), é justamente o de título mais genérico, mais parcial, que parece mais dedicado a ressaltar a especificidade de cada ser em tela (mesmo quando, no caso de Lena, esta especificidade seja a quase ausência) e a modular cada bloco do filme em função disso. Doméstica começa como melodrama, mas de bloco a outro ele pode se transformar em um filme etnográfico, uma tragicomédia, um Bildungsroman, um exploitation.
Não é por acaso que seja possível recorrer ao gênero cinematográfico como recurso de construção, compreensão e fruição do filme, e essa possibilidade é justamente o que faz com que ele demande uma discussão que não se sustenta puramente na relação entre documentarista e material documentado, por mais que seja isso que esteja em cena. Pois o filme não é apenas o choque entre dois olhares, mas três. Um dos planos cruciais está na apresentação de Bia: ao se filmar apresentando seu bloco, já passada a metade da projeção, ela coloca a câmera em frente a um espelho que – nos limites do plano e entre ocasionais movimentos de cabeça – reflete a imagem da câmera. A câmera não é apenas mediação, mas também o artefato que simboliza a presença deste terceiro olhar: o do próprio diretor. Na luta de classes de Doméstica, Gabriel Mascaro é a verdadeira figura de autoridade, o verdadeiro patrão – e, nesse sentido, o filme ganha um improvável e um tanto irônico cruzamento com o já citado Santiago, de João Moreira Salles, a rigor também um filme sobre um empregado doméstico, mas norteado por sentimento oposto ao desejo de imaterialidade que aqui é ponto de partida. Se, em um dos blocos, é notável como a doméstica Lena praticamente não aparece, tendo seu lugar em cena ocupado frequentemente pela patroa, em nenhum momento ficará claro se essa é uma opção de quem empunha a câmera ou uma interpretação feita pelo diretor, na montagem, a partir do material filmado. Talvez existissem inúmeras imagens de Lena e a escolha de representar a relação desta maneira ocorra à revelia do material bruto… de qualquer forma, o importante é que essa escolha permanece indefinida, imprecisável, mas extremamente presente ao longo de toda a projeção. Há um movimento duplo de interpretação do filme (triplo, se considerarmos também o olhar do espectador) que passa adiante essa instância de autoridade, feito um telefone sem fio, que permite que a imagem que chega ao espectador seja já uma imagem reprocessada, reimaginada, redirigida.
Esse movimento se repete na estrutura do filme. Partindo de uma primeira personagem bastante tipificada do mundo das empregadas domésticas – Vanusa, mulher marcada pela dor de amor, que encontra certo conforto no universo radiofônico popular – aos poucos, personagem a personagem, o Doméstica desdobra seu título de maneira sempre improvável, dando-lhe novos rostos, cenários e ações, cada vez mais distante do registro estereotípico deste primeiro encontro. A partir do recorte de classe, Gabriel Mascaro cria mais do que um panorama de tipos, mas uma coleção de pequenos retratos que não se anulam ou se complementam; apenas existem em tela, construídas da maneira mais inteira que se pode imaginar. Vanusa, Dilma, Gracinha, Lena, Flávia, Sérgio, Lucimar… todas as personagens de Doméstica são cuidadosamente desenhadas para existirem em lugares e relações muito específicos, justamente para que possam se afirmar únicas. Há uma articulação constante que cria arcos dramáticos individuais para cada uma delas: a dança de Flávia para o filho da patroa carrega consigo o chute na barriga que a fez abortar seus trigêmeos (operação muito parecida com a de Kung Fu Master, filme de Agnés Varda em que, em pleno estopim da Aids, uma mulher se apaixona por um garoto); o rosto em desmonte de Sérgio contrasta com uma foto de um passado bem mais gordo na parede de seu quarto; a patroa que precisa se afirmar para Lucimar é a mesma garota que segura sua mão sorridente em uma foto, tantos anos antes. Essa apropriação dos recursos da ficção para o universo do documentário traz questões éticas tão antigas quanto o próprio cinema. A questão não é exatamente colocar isso em suspeita, mas sim reconhecer essa condição para, em seguida, devolver-lhe outra pergunta: o que o diretor quer com tudo isso? Se há certa violência em transformar pessoas em personagens, o que se ganha com isso?
Talvez uma apreensão mais justa do termo, dos nomes dados a cada coisa e do caráter ideológico dessa terminologia que o filme precisa adotar sem restrições para poder colocar em crise. A despeito de serem personagens que o filme fará todo esforço para individualizar, cada uma com sua origem (“Se você quiser, depois eu te conto como cheguei a São Paulo”, oferece Dilma, dirigindo sua diretora) e seu possível destino, todas elas são empregadas domésticas. Todas compartilham a atividade que o título traz no singular, justamente porque o foco aqui não é afirmar como esse universo é plural, mas sim partir da pluralidade para investigar a ontologia do termo. Doméstica é um filme de muitos jogos, mas todos eles parecem se voltar para o jogo maior entre parte e todo, da maneira como cada nova dobra altera a percepção da estampa original do tecido. A partir dessa unicidade, cada personagem rebate na estrutura que a determina, provocando alterações no próprio corpo e abalando levemente a estrutura com o choque. Todas as personagens são, ao mesmo tempo, definidas e definidoras do termo que as une, dentro e fora do filme.
É aí que completa-se a volta: para que essa operação se realize, é crucial que Gabriel Mascaro não se deixe fascinar com a mais-valia antropológica que o material inevitavelmente carrega, e encare o delicado desafio de criar dramaturgia a partir dele. Isso se dá tanto nos blocos individuais – como no caso da doméstica que tem hábitos noturnos, revelação feita logo no começo de seu bloco e que será construída como um filme de suspense – quanto na ordenação e conexão entre os blocos. Enquanto Pacific se montava feito um coral, articulando à maneira de Vertov as diversas perspectivas em uma única grande arca, Doméstica tem uma voz única que se transforma com o avanço no tempo. Além do cuidado em fazer com que cada personagem respire em seu próprio espaço, a organização feita pelo diretor (e seu montador) é norteada pelo desejo de que esse espaço geral – esse título tão sintético e singular, que fala não só de uma atividade, mas também de um espaço, de uma relação e de tantas outras coisas – também se reorganize internamente. A cada nova personagem, as chaves dão mais uma volta, mais uma volta, mais uma volta, como se o ímpeto de definição tentasse trancar uma porta que não se permite fechar.
É justamente aí que Doméstica se torna um filme político, pois a política está justamente em se questionar o nome das coisas. O cinema de Gabriel Mascaro sempre esboçou esse desejo, mas por vezes parecia confundi-lo com uma possibilidade de panfleto. Aqui, porém, há uma simples percepção que se impõe: se há possibilidade de política na arte, ela está justamente em deixar as portas escancaradas. Pois a montagem inclui também as imagens dos jovens por trás da câmera e de seus familiares em relação – em alguns casos, mais antigas do que os olhos de quem filma – com os empregados, seus filhos, suas famílias, suas histórias. Em todos os casos, independente de maior ou menor simpatia por esta ou aquela figura, é difícil determinar antagonistas. A todo tempo, percebemos o desejo individual – seja na câmera ou no que está diante dela – de se fazer a coisa certa, sem tirar desse desejo às vezes cego suas visíveis consequências. O filme sustenta e amplifica essas relações com um equilíbrio extremamente preciso, e essa cuidadosa construção embaralha as extremidades do sensível, pois demanda a reorganização dos limites entre público e privado, documentarista e documentado, trabalho e afeto, causa e consequência, masculino e feminino, campo e contracampo. As questões de classe que movem o filme a este universo de maneira tão externa, tão tipificada quanto o universo de Vanusa, vão se mostrando, progressivamente, mais e mais delicadas. A política dessa reorganização se completa justamente no fato de que, após a sessão, voltaremos ao mundo… na melhor das hipóteses, com uma perspectiva mais rica, menos parcial.
Se o cinema não possui mais a potência revelatória dos travelogues de Major Tomaz Reis (e basta assistir a Paulo Bruscky para ficar nítido o quanto esta é uma preocupação de Gabriel Mascaro), ele ganha, hoje, em potencial de estabelecer relações. Essas relações, por sua vez, podem ser reveladoras: nenhum dos blocos de Doméstica teria individualmente a força que eles têm dentro do filme, pois o que mais impressiona não é este ou aquele momento, esta ou aquela realidade, mas justamente a interpretação e organização do diretor, e o fato de que todos eles cabem em uma mesma gaveta, em um mesmo contínuo, em um mesmo termo que dá título a um filme. Gabriel Mascaro parte de uma distância, mas em momento algum usa o dispositivo como escudo para não se comprometer. Ao contrário: ao assumir esse amplo retrato como dramaturgia, fica claro que, em Doméstica, não existe posição mais frágil do que a do próprio diretor. A partir do que há de mais específico e localizável, Mascaro chega a questões amplas que, de tão arraigadas na experiência cotidiana, sequer conseguimos notar. A política do filme está justamente em ressaltar a carga histórica que vem em cada gesto descompromissado, em cada padrão que repetimos na distração de nossa coreografia cotidiana, que inclui, a propósito, a relação a ser travada com um filme. Se vivemos a partir de códigos tão introjetados que sequer percebemos como chagas, não cabe ao cinema fechá-las, tampouco abrir novas feridas; mas há a possibilidade de localizar com precisão onde elas estão e deixá-las abertas, bem abertas.
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