Dheepan, de Jacques Audiard (França, 2015); Krisha, de Trey Edward Shults (EUA, 2015)

maio 21, 2015 em Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

* Cobertura do Festival de Cannes 2015

Dheepan (2015), Jacques Audiard

Dheepan (2015), Jacques Audiard

(De)Formar uma família
por Eduardo Valente (colaboração especial)

Jacques Audiard é um cineasta extremamente eficiente – cabe a cada um ler esse adjetivo segundo sua própria concepção de mundo ou de cinema. O começo de seu novo filme, Dheepan, é um resumo disso: o filme passa pelo Sri Lanka, onde uma guerra civil assola o país e gera multidões de imigrantes e exilados, com a rapidez e o descuido (com direito a um travelling sobre corpos mortos que não tem como não trazer à lembrança de Kapó) de quem na verdade apenas precisa fazer um mínimo de exposição para dar base ao que realmente lhe interessa, e que virá a seguir: o processo de aclimatação de três imigrantes na França. Esse tipo de operação (passar batido por coisas muito densas para poder seguir adiante com sua narrativa) marcará toda a duração do filme, impedindo que, de alguma forma, aquilo tudo consiga deixar de ser apenas um discurso sobre as (im)possibilidades da integração e se torne mais pregnante num nível individual, de relação com seus personagens.

Mas o peso do discurso de Audiard não se resume ao tema da imigração e da situação de vida nos banlieues franceses, e é pena que toda sua “eficiência” impeça que seu segundo nível de discussão ganhe uma presença mais firme. Trata-se da questão da formação de uma família mesmo, uma vez que os três imigrantes (um homem ex-guerrilheiro, uma mulher e uma menina de 9 anos) não se conhecem, mas resolvem fingir formarem uma família para poder fugir do Sri Lanka como tal (explicar isso é tudo o que Audiard faz no citado prologo). A dinâmica interna na casa nunca é explorada para além dos conflitos mais óbvios, nas idas e vindas de uma intimidade forçada entre estranhos que precisam decidir se são (ou querem ser) mesmo uma família ou não. O desfecho idílico parece particularmente forçado e idealizado, repisando o que parece ser o maior interesse de Audiard com seu “retrato social”: afirmar que, afinal, “eles são como nós” – o que pode até soar (e eventualmente ser) importante nos tempos de recusa à alteridade vividos em especial na França, mas que no fundo é muito pouco.

Um dos motivos de ser pouco, talvez, seja poder questionar se “ser como nós”, afinal, é algo de bom em si. A julgar-se pelo final de Dheepan, sim. Mas a julgar-se por Krisha, um primeiro filme americano exibido na Semana da Crítica, parece que não. No filme de Trey Edward Shults, a pergunta deixa de ser o que forma uma família, e passa a ser como ela se deforma. A partir de quais rituais (no caso, ele volta ao clichê – de grande significado nos EUA – do encontro no feriado de Ação de Gracas) esse modelo se revela no seu mais sufocante justamente quando funcional, quando ideal.

Krisha (2015), Trey Edward Shults

Krisha (2015), Trey Edward Shults

A escolha de Shults que diferencia o filme da maior parte dos filmes de família disfuncional (e que pode tanto atrair quanto causar repulsa) é a de filmar um ambiente em que tudo parece normal, desde o começo, com uma câmera e um trabalho de som e música que reforçam sua estranheza. Na verdade, como o título e os planos que abrem e fecham o filme deixam claro, não se trata de um filme sobre a família exatamente, mas sim sobre a perspectiva de uma pessoa (Krisha, a tia que não encontra com os outros membros da família há algum tempo e chega para o jantar) sobre essa família. E esse talvez seja o grande acerto de Shults, pois ao mesmo tempo em que fica claro que não há nenhuma distância possível entre a perspectiva dela e a do filme, por outro lado ela segue insondável em vários níveis para nós (onde resulta especialmente inteligente os closes dela que abrem e fecham o filme, permitindo que se leia/projete no seu rosto coisas muito distintas).

Se por um lado seria possível se ler o filme como um “cautionary tale” sobre os efeitos do vício em uma família, talvez seja igualmente possível (e mais rico) pensar nele como sobre os efeitos da família num vício. Nesse sentido é que a perspectiva visual e sonora de Shults (que trata o evento todo como um pesadelo, muito antes de qualquer menção ao problema do vício vir à tona) parece muito bem resolvida, porque se em nada o resto da família parece disfuncional, pelo contrário, para Krisha é o peso daquela normalidade que está sobre seus ombros, o peso de uma história vivida sob aquela doçura e compreensão que se mistura com uma afirmação de culpa para ela por não poder ser “como eles”.

Toda essa culpa e esse desespero desembocarão numa inevitável confrontação aberta, mas mesmo nessa o que parece estar interessando a Shults não é a encenação disso em si, mas como a resposta da “normalidade” ao que não se adapta pode ser horrível mesmo quando busca o entendimento. Krisha sabe que, por mais que todos se esforcem ao seu máximo (inclusive ela mesma), existe ali uma tragédia da não adaptação, dos mundos que não se tocam. E é disso que trata o filme, afinal: formar a família pode ser, em si mesmo, uma maldição, porque o convívio amoroso com os mais próximos nunca deixará de ser uma forma de sufocamento da individualidade formadora de cada um.

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