De uma margem a outra

agosto 12, 2015 em Cinema brasileiro, Em Pauta, Marcelo Miranda

O Vigilante (1992)

O Vigilante (1992)

Candeias entre a exuberância e a destruição da imagem
por Marcelo Miranda

“Eu gosto de experiência, eu gosto de vanguardagem mesmo. (…) Eu não quero fazer imagem bonitinha. Eu ponho o que está ali, o que aconteceu, e se não é muito normal, melhor pra mim.”

Ozualdo Candeias

Em trinta anos de trajetória, Ozualdo Candeias nunca conseguiu ver repetida a repercussão excepcional de seu primeiro longa-metragem, A Margem (1967). Comentado em vários veículos de comunicação e quase sempre incensado como uma das obras de maior importância e impacto para o cinema brasileiro da época, o filme ganhou comparações e cotejos dos mais diversos, relacionando Candeias a nomes como Jean Vigo, Frank Borzage, Federico Fellini, Pier Pasolini e Mário Peixoto. A Margem foi, de fato, visto como um paradigma até então inédito na produção local, um marco de ambição e autoralidade que serviu de propulsor a toda uma nova estética dali adiante inserida na alcunha do que se convencionou chamar “cinema marginal”.

Corte para 1992. O presidente Fernando Collor estava para virar ex-presidente e o cinema brasileiro passava por uma crise sem precedentes. Candeias tinha pronto O Vigilante, aquele que se tornaria seu último filme. Diferente de A Margem, quase nenhuma recepção (boa ou má) lhe foi dada, já que permaneceu fora do circuito de exibição, abandonado numa soma de descaso do contexto histórico (a nova configuração de mercado, mais preocupada em reerguer a produção do que em dar espaço a filmes “feios” como os de Candeias) e alguma desorganização natural no processo de trabalho do próprio diretor, acostumado a outras maneiras de fazer seus filmes circularem que não a de “inserção no mercado”. O Vigilante competiu no Festival de Brasília, onde ganhou um prêmio especial, e depois foi colocado no mesmo limbo em que já estava outro título de força e características similares, Olhos de Vampa (1990), de Walter Rogério (curiosamente também apresentado apenas no Festival de Brasília). Ambos sobre uma sociedade doente, filmes de perversidade sem igual no trato com a imagem e com as fissuras provocadas pela combinação explosiva de exposição e confrontação de personagens periféricos (à margem) que tentam encontrar seus centros tendo por base o rasgar da carne do outro, a sujeira do corte, o vermelho do sangue falso (porque verdadeiro).

De uma margem a outra, Candeias teve a carreira emoldurada por estes dois extremos: a receptividade ao novo e ao fresco versus a rejeição ao “feio” e ao “errado”. A Margem, ainda que apresente com contundência o universo fora dos grandes centros, marcado por personagens abandonados pela sociedade capitalista que valoriza essencialmente a funcionalidade do ser (daí que o ser que não “funciona” é escorraçado para fora da linha), guarda uma exuberância que seria poucas vezes repetida no cinema de Candeias. Exuberância, entenda-se, não tem nada a ver com beleza vazia e artificialmente construída, mas sim, pelo menos aqui, com um certo tipo de representação que dialoga com a performance dos corpos, com os jogos de luzes e sombras, com as variações das expressões do rosto, com a movimentação fluida da câmera pelos espaços, por uma geografia transformada em personagem. “Poucos diretores tiveram estreia tão ambiciosa cinematograficamente quanto Candeias. (…) Assim como Godard e Welles, provavelmente as duas estreias mais ambiciosas do cinema, a aposta de Candeias é mais estética do que técnica (ou antes incorpora técnicas novas para expressar uma vontade nova)”, escreveu Ruy Gardnier em artigo na revista Contracampo.

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A Margem (1967)

A Margem (1967)

A Margem (1967)

Quando entrou em cartaz, em 1967, A Margem foi chamado de “obra (…) realista, fantástica e poética” por Rubem Biáfora e lembrou “certas coisas de avant-garde francesa da década de 20” na apreciação de Alex Viany. Mesmo Antonio Moniz Vianna, famoso por se colocar frontalmente contra boa parte do cinema brasileiro, rendeu láureas a Candeias, através de referências sofisticadas: “O realizador (…) não vacila em ascender de repente a um plano surrealista (…) ou mitológico, na substância dramática que, nessa altura, agita sucessivamente as implicações do mito de Caronte e sua barca”. (O livro Cinema de Invenção, de Jairo Ferreira, compila vários textos históricos de análise do filme.)

A maneira como as referências se costuraram na recepção crítica de A Margem não veio por acaso. O filme se presta a olhares transcendentes desde as primeiras cenas, quando a mulher misteriosa aparece num barquinho em pleno rio Tietê olhando (e sendo olhada) atentamente por várias pessoas ao redor, e se dá a compreender mais amplamente no desfecho metafísico, em que o mesmo barquinho ressurge como transporte para algum outro ambiente de existência, entre a salvação e a redenção de uma gente empurrada à exclusão. Essencial nunca se esquecer de que o último plano de A Margem mostra o céu iluminado por um Sol retumbante. Nas palavras de Candeias, o filme “era uma experiência de linguagem. (…) Acabou virando uma fita de geração, era exatamente uma geração que tomava consciência, uma consciência política”.

Realizado vinte e cinco anos depois, O Vigilante não parte de nenhuma premissa potencialmente metafísica nem da consciência de qualquer lampejo de mobilização. Inexiste mesmo a mais mínima fresta de exuberância. A sujeira a tomar conta da imagem é concreta, podre, colorida e, se forçarmos, é possível sentir (imaginar) o mau cheiro. A margem é sem saída, sem linhas de fuga, sem possibilidade de a alma ganhar alguma outra chance para além da exclusão. Não é que os seres em O Vigilante foram colocados à margem; essa é sua condição inerente, resultado de um processo histórico que os faz habitarem ontologicamente aquele espaço determinado. Para Candeias, expô-los pela urgência das imagens vistas no filme é também uma forma de dar conta e materialidade à sua possível desaparição. Nas palavras de Didi-Huberman, “os povos estão expostos justamente por estarem ameaçados na sua representação – política, estética – e até, como acontece com demasiada frequência, na sua própria existência”.

O Vigilante (1992)

O Vigilante (1992)

A falência da metafísica dos povos percebida entre A Margem e O Vigilante não se dá automaticamente. Foram precisos um quarto de século e ao menos 13 filmes para Candeias colocar na tela este esfacelamento, e alcançar o fim da exuberância de uma representação do marginalizado. Se as mesmas inquietações movem o realizador entre cada um de seus filmes ao longo dos anos, é na forma, cada vez mais depurada e violenta, que se percebe a involução do indivíduo como potência do vir-a-ser. A ruptura se consolida em Aopção ou As Rosas da Estrada (1981), quando o senso de comunidade até então muito presente em filmes como Meu Nome é… Tonho (1969) e A Herança (1971) é implodido. Comunidade, que fique claro, como conceito de concentração, jamais de conciliação: nos filmes de Candeias, o confronto é dado por princípio, já a partir dele mesmo, diretor, com um sistema de produção com o qual não se identifica nem coaduna, embate transferido para dentro dos filmes e apresentados sempre na maneira como as narrativas se implodem e na impossibilidade de resoluções pacificadoras. Pela onipresença na região da Boca do Lixo paulistana nos anos 1960 e 1970 e do corpo a corpo com amigos, parceiros e velhos companheiros, Candeias realizou filmes em que se percebe algum tipo de união entre seres próximos para o enfrentamento de um mal comum dentro de determinado espaço delimitado (urbano, em A Margem, rural em Meu Nome é… Tonho e A Herança).

Em Zézero (1974), filme no qual “qualquer esperança respira mal”, como escreveu Paulo Emílio Sales Gomes, algo se modifica. O homem do campo se cansa das frustrações de um cotidiano esvaziado e vai para a cidade grande tentar melhor sorte. Violenta-se de todas as formas e retorna, para constatar que a família já não existe mais. Empodeirado de dinheiro, resta-lhe a impotência. Foi o primeiro ato de Candeias rumo a um olhar devastador para o êxodo característico de processos industriais que tentam atrair o trabalhador rural à vida na metrópole. O mesmo movimento, com variações, se repete em praticamente todos os filmes seguintes do diretor, de O Candinho (1976), passando por Aopção e As Bellas da Billings (1987) e chegando a O Vigilante: personagens de um espaço externo se movem na tentação e na crença de que terão melhores oportunidades na cidade, apenas para serem engolidos e constatarem que um e outro são contrapartes de um sistema destruidor similar.

Manelão, o Caçador de Orelhas (1982), lançado entre O Candinho e Aopção, surge como interstício da abordagem do êxodo. Impregnado de uma crueza talvez sem precedentes no cinema brasileiro, seu impacto é o de eliminar quaisquer falsas impressões de que o rural ainda pudesse guardar a utopia da pureza ou o idealismo da beleza. “O chamado da natureza, tão idílico e aconchegante em certos autores, assume ao contrário em Candeias um alto grau de podridão e repugnância” (Ruy Gardnier). O corpo em Manelão se movimenta entre os espaços abertos apenas por senso de sobrevivência; sexo e assassinato são colocados em cena como necessidades tanto materiais quanto fisiológicas, no sentido de que um é tão necessário quanto o outro num caminhar de errância. O animalesco do matador “profissional” (as aspas aqui são necessárias quase por necessidade política, em coerência com a fenomenologia do “mercenário” de meia pataca colocado em cena pelo filme) caracteriza sua humanidade e o aproxima na mesma medida em que se afasta, por súbitos e constantes closes que tornam a imagem ainda mais impura.

Manelão, o Caçador de Orelhas

Manelão, o Caçador de Orelhas (1982)

Se existe o ser em movimento, concentrado como centralidade num mundo sem escapes em Manelão, as mulheres em Aopção ou As Rosas da Estrada têm na pluralidade da presença dos corpos a máxima representação de um sentido de coletivo que atravessa as escolhas formais do filme. Mesmo no fracasso de se dignificarem (todas as personagens, uma vez instaladas na cidade depois dos perrengues pelo caminho, morrem ou são sugadas pela máquina de exploração urbana) e sem nunca deixarem de ser, aos olhos da sociedade, o Qualquer Um (ser sem singularidade), as moças têm, pela maneira como Candeias as filma e as coloca como ruídos na própria estrutura de um filme-coral, a possibilidade de surgirem como Um Qualquer, ou o Ser Qualquer, únicas e específicas “para o seu ser-tal, para o próprio pertencimento”, segundo conceitos de Giorgio Agamben. Elas, enfim, são reconstituídas pelo cinema à singularidade de serem indivíduos – não sem sofrerem as feridas no processo, mas ainda indivíduos.

Em O Vigilante, esse oferecer-se ao singular se dá única e diretamente na brutalidade da forma. A concretude, o chão, a poeira, a cor esmaecida tomam conta do enquadramento. Não há espaço para mitologização, exuberância ou metáforas de câmera: o asfalto é dominante, a favela tem sua própria noção (coercitiva) de comunidade e a fuga de volta ao campo será interrompida pelas circunstâncias cíclicas do ato destrutivo. José Carlos Avellar, escrevendo especificamente sobre A Margem, reverbera o que seria O Vigilante: “Nem uma projeção da consciência política em estado bruto nem uma projeção da violência suicida em estado bruto. Aqui, só o estado bruto”. O filme surge, então, como um jorro, um machucado em estágio avançado de inflamação, no qual nenhuma saída da roda parece possível porque já se lida com a impossibilidade de existir alguma saída. Nada disso era exatamente o que o cinema brasileiro estava interessado naquele período de retomada de legitimação no começo dos anos 1990 pós-Collor.

Em 2013, aqui na Cinética, Fábio Andrade fez uma tentativa de diagnóstico dos filmes locais que lhe chegavam naquele momento, identificando a conciliação e a “produção de consenso” como elementos centrais em vários deles, como se reagir ao estado (e ao Estado) pelo choque não estivesse mais no horizonte de interesses. “De fato, a impotência – seja ela expurgada em hedonismo, em doçura ou em simples resignação – parece se impor como sentimento dominante do cinema brasileiro recente”, aponta Fábio. Se recuarmos para uma década antes, com O Vigilante na base da perspectiva (e acrescentando, de 1993, Alma Corsária, de Carlos Reichenbach, um outro modo vigoroso de também se conflituar, de dentro do filme, com a realidade exterior), é como se o cinema brasileiro regredisse, anos depois, nas hiperreações aos movimentos históricos do país, talvez consequência dos sentimentos de otimismo e esperança a partir da eleição de Lula em 2002. Um cinema de perturbação da ordem não haveria de ter espaço numa época em que a classe média passa a ser a protagonista dentro e fora das telas. O opressor vira a figura central, e ao oprimido resta se contentar com tal condição. Os filmes deixam de lado justo a singularidade do “outro” (o oprimido, o pobre), tão cara ao cinema de Candeias, em prol da exploração da pobreza, devidamente apontada por Ivana Bentes, no já clássico ensaio sobre a “cosmética da fome”, e por Didi-Huberman, ao anotar que “os povos estão expostos a desaparecer porque são (…) subexpostos na sombra da censura a que são sujeitos ou (…) sobreexpostos na luz da sua espetacularização”.

Não é que a sociedade ou os realizadores recusem a violência nos filmes (vide sucessos como Cidade de Deus e Tropa de Elite); a recusa, de maneira geral, é à forma violenta, a “uma outra camada de violência na relação de uma obra de arte com o mundo que se dá na própria experiência do espectador, e que não necessariamente se expressa em escolhas de ordem temática” (Fábio Andrade). Pois é a forma violenta o que berra em cada plano de O Vigilante, para além das cenas explícitas que ele contém (e não são poucas nem fáceis de fruir). A abordagem da crueza e impiedade do espaço urbano não se resume ao conteúdo, mas principalmente à estética. Cheio de cortes bruscos, quebras de eixo, invasão de sons extradiegéticos, falas dessincronizadas, descentralidade narrativa, interpretações artificiosas, planos imperfeitos e devaneios, O Vigilante machuca na pele, nos olhos e nos ouvidos, incomoda por não seguir nenhuma agenda que não a sua própria de retratar a brutalidade no ato de cortar de uma imagem para outra. Que a montagem sempre esteve na centralidade de parte significativa da inventividade de Candeias, disso não há dúvidas. O Vigilante exacerba o corte porque torna a escolha de terminar um plano e passar para o outro sempre como um grito por sobrevivência e manutenção da imagem, já que todo indivíduo em cena está constantemente sob perigo de ser abatido no quadro seguinte.

Quando não resta mais chance de a imagem sobreviver apesar de tudo, tem-se a impossibilidade da imagem, como fica explicitado no desfecho. “No final do filme, eu não podia tomar uma atitude e eu não quis tomar (…) Arrumei uma solução meio confusa: a briga ficou lá dentro, você não viu ninguém morrendo nem nada naquele puta estouro, e o diretor puxou o carro”, disse Candeias. Os últimos planos são exemplares na abordagem brutal para com essa imagem que berra e na diferenciação dos dois extremos de criação do diretor – entre o Sol pulsante ao fim de A Margem e o cano de um revólver cobrindo todo o espaço do último quadro de O Vigilante.

É pouco mais de um minuto de duração em uns 15 planos que narram a invasão e assalto ao ônibus que levaria de volta para o campo o personagem central do filme (depois da carnificina promovida por ele em vingança ao estupro da filha). A concisão de Candeias é tão precisa quanto desconcertante: nunca se tem a real dimensão dos instantes da ação, pois a montagem não permite que a imagem em cena respire para além da necessidade da imagem seguinte, mas o filme dá a preencher na imaginação cada segundo, numa mistura de sensações e desarranjos próxima a montagens do primeiro Godard. Há só o concreto: dos closes nos rostos dos meninos e dos passageiros no ônibus, chega-se aos hipercloses dos olhos, antes de o quadro fixar-se completamente na abstração das armas de fogo, ascendidas à condição de protagonistas tão logo deixam de ser apenas objetos, depois extensões do corpo e, em seguida, corpo em si mesmas.

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O Vigilante (1992)

Numa obra iniciada pela poesia pessimista de A Margem, em que ao corpo é dada a chance de um além-mundo, terminá-la numa cena como a de O Vigilante é a constatação de uma falência – não só de valores da sociedade, mas da materialidade do cinema enquanto propagador de utopia. Se em 1967 Candeias tentava, pela imagem, permitir algum tipo de paz e serenidade aos excluídos, em 1992 a resignação cínica toma o espaço e só resta atirar contra a própria câmera sem dar chance à reconstrução. O Vigilante é a súmula e o testamento de Candeias.

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