De olhos abertamente fechados: alguns pontos sobre a 9a CineBH

janeiro 25, 2016 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Paulo Santos Lima

* Cobertura da 9a Mostra Cine BH

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por Paulo Santos Lima

Talvez de forma simplificada demais, mas não alienígena, o CineBH costuma ser compreendido em dois blocos firmados: o dos filmes e o dos encontros promovidos pelo Brasil CineMundi, que é a grande marca do festival desde seu primeiro ano. Seriam o cinema já realizado, e o que está em intento de existir. Uma perspectiva mais dedicada relacionaria esses dois vieses, e assim pensaria o cinema junto a um processo material, permeável a uma história e contingências diversas.

Sem diminuir a importância das mesas e encontros entre produtores, realizadores e afins do Brasil Cinemundi, mas é a curadoria (recorte histórico, filmes contemporâneos e convidados) quem pode melhor lançar determinadas questões a todo o tipo de freqüentador, e sacudi-lo na poltrona. É a partir dela que, por exemplo, os realizadores têm a possibilidade de desenhar melhor uma consciência estética, fundamental  para a uma integridade artística mesmo nos projetos mais comerciais e ordinários. Porque não só o diretor, o artista pode ser também um produtor com o tino de um David O. Selznick ou, exemplo mais recente e mais precioso para nós, o do português Paulo Branco. A experiência num festival requer leitura e interpretação: a 8a edição do CineBH reuniu os filmes de dois cineastas, um merecidamente reconhecido (Frederick Wiseman) e outro absurdamente ignorado aos quase 55 anos de carreira e 85 de idade (Paul Vecchiali), e seria um desperdício que essa carta servisse apenas para o consumismo cinéfilo de engrossar lista de filmes vistos ou como essa etiqueta de “eu vi” que é tão bem-vinda nos palacianos coquetéis da cena cinematográfica ou cadernos culturais. A ideia seria observar a situação Wiseman-Vecchiali com outros olhos (ou, melhor ainda, incluir Olivier Assayas, “cineasta da situação” pois autor de um cinema “de arte” freqüente em grandes festivais e claramente identificado como tal, e que teve retrospectiva de sua obra nessa mesma 8a edição) e repensar toda uma situação que o cinema passa e, por conseqüência, quais filmes surgem nessa cena, e por que alguns são eclipsados e outros ensolarados. O que rola, grosso modo, é o efeito reverso de rebaixar a experiência à conservação – conservação de um gosto, de um status, de uma disposição das peças no tabuleiro que permita uma relação fácil e assegurada com a produção artística e também uma conservação de quem detém o poder. O grande paradigma dessa preservação de status está nos festivais de grande marca, como Cannes, Veneza e Berlim, que ganham espaço “a priori” de críticos da grande imprensa, e atenção de um punhado de cineastas, produtores, espectadores etc. Em jogo, há uma certa arrogância de “sei tudo sobre a história do cinema”, uma vaidade de certos jornalistas e críticos que se tornam meros publicitários ao fazer parte dessa linha de montagem que legitima a marca dos festivais de “cinema de arte”; e do outro lado um público que, pelo menos nesses festivais, não é motivado a repensar seus critérios. Cannes & Co. acaba sendo um oásis para realizadores do mundo inteiro, alguns fracos, outros oportunistas, punhado de outros sérios, e todos eles querendo achar água no deserto.

O problema atual do cinema (e do mundo) talvez seja o do espaço… onde estamos e pra onde queremos ir. Quando um festival dá chance de o espectador sair de sua zona de conforto, ele se agarra, medroso, no que lhe é conhecido e confortável – um recurso infantil, mas de sobrevivência. Ancoragem é a premissa, e nada melhor que ter seu punhado de autores canonizados ou fazer filmes que terão vôo e pista de aterrissagem assegurados, em espaços com ISO 9002. Seremos todos zumbis contaminados por Cannes & Co. vagando em busca de um oásis que, no fim, é uma miragem?

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CineBH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte, 9a edição, 2015, retrospectiva da argentina Lucrecia Martel. Além dos filmes, a cineasta também veio para um encontro com público e realizadores. Parece ter sido a primeira vez que os blocos da programação de filmes e do Brasil CineMundi encontraram-se numa interseção mais evidente, pois Lucrecia Martel também falou sobre Zama, seu novo projeto, uma coprodução Brasil-Argentina, com a brasileira Vania Catani viabilizando o retorno da diretora, depois de sete anos sem colocar seu nome nos créditos de direção dum longa. Ficou claro que ainda há um culto, senão mito, por trás de Lucrecia Martel, que se tornou um paradigma de um “cinema a ser feito”. Mas seria Lucrecia Martel uma terra firme ou uma miragem? Sua presença, no festival, desenha um pouco o que foi dito acima, sobre qual é a relação de algumas “pessoas de cinema” com o cinema, ou, mais que isso, um certo tipo de cinema com o qual essas “pessoas de cinema” se relacionam. Importante puxar pra cá outro convidado recente do CineBH, o historiador de cinema e crítico Tag Gallagher, presente na 8a edição, e colocá-lo em relação a Martel. Mas antes é fundamental fazer uma lição de casa: ler a cobertura da 8a CineBH e a entrevista que Marcelo Miranda fez com Lucrecia Martel durante esta 9a edição da mostra.

Além de autor de livros como John Ford: The Man and His Films (o mais importante trabalho em língua inglesa sobre o cineasta), o norte-americano Tag Gallagher é um gênio dos vídeo-ensaios, saindo da recorrente interpretação livre e personalista desse tipo de formato para mediar visão pessoal e evidência concreta, ou seja, moral e fato. Gallagher mantém intacto o que há de melhor na tradição anglo-saxã de análise para flertar com uma certa magia da descoberta de um específico. Vai às evidências da imagem, recorre à história e ao contexto, para assim fundar um novo espaço (na história e no coração) para as obras do cinema. Foi assim nos vídeos e, ao vivo, no Cine Humberto Mauro, na masterclass na qual ele comentou Viagem à Itália, Paixão dos Fortes, Carta de Uma Desconhecida. Gallagher trouxe algo indelével, um outro caminho para se compreender o cinema, sem que esse novo caminho fosse inusitado e sobrenatural, mas sim direto e elementar. Gallagher foi bem recebido e reconhecido pelos inscritos na sua masterclass e teve a dedicada recepção do jornalista e crítico Pedro Butcher, um dos curadores do CineBH. Da grande imprensa, pode-se dizer que Luiz Carlos Merten foi o único a lhe dar um devido espaço. Difícil medir as coisas por isso, mas é perceptível um clima, uma atmosfera, e pode-se dizer que a linda passagem de Gallagher pelo CineBH gerou um entusiasmo similar ao do centenário de Orson Welles, cuja efeméride rendeu não mais que meia dúzia de retrospectivas em 2015.

Acolhimento bem diferente foi dado a Lucrecia Martel, este ano. Autora de um longa que se tornou referência de um cinema autoral, reflexivo sobre um estado de coisas e com uma estética bem particular – O Pântano (2001), ela se tornou uma diretora fetiche para uma horda de acadêmicos, fãs de cinema de arte, críticos e jovens cineastas que percebiam um forte parentesco cinematográfico, pois latino-americana. Mais que Pablo Trapero, Lucrecia se tornou uma certa marca de um cinema latino-americano a fazer presença impetuosa lá fora. Ela seria um contraponto a um Nove Rainhas, outra linha de filme argentino (chamemos de latino-americano) e inspirador a outros tipos de “pessoas de cinema”. Grosso modo, o cnema argentino como um “cinema de qualidade”, um sonho possível de uma cinematografia periférica chegar ao Olimpo da cena mundial, algo referendado por Walter Salles, comprado pelos jornalistas, mas, francamente, uma grande ideia furada.

Perceber o tamanho das coisas ajuda a ser justo sobre a força de O Pântano, grande filme, mas importa mais, agora, acompanhar o decurso da carreira de sua diretora – inclusive para situá-la melhor e indagar por que ela gera ainda uma excitação entre os nossos como se ainda todos estivéssemos na entusiástica perspectiva do cinema nacional em 2001 (sim, falta-nos um F. Scott Fitzgerald no sangue). A começar que Martel faria mais dois longas, A Menina Santa (2004) e A Mulher Sem Cabeça (2008), que deram percurso a uma repetição (não vejo radicalização, tampouco reconfiguração) de certos procedimentos, mas perdendo-se numa bolha, meio que sem relação entre forma e base. Terry Gilliam faria melhor. Mas o drama de Martel é quase padrão na história do cinema, sobretudo quando se faz necessário disputar a ocupação do espaço apertado e ameaçado oferecido por janelas cada vez mais perversas, essas do mercado dos festivais. O artista é muitas vezes empurrado, o trem da notoriedade e reconhecimento surge em aço reluzente no horizonte, mas é forte a chance de entrar no vagão da morte – vide o cinema dos irmãos Dardenne, indo da novidade à banalidade (termos bem adequados à gramática desses festivais e de imbecis formadores de opinião).

O afastamento de Lucrecia Martel da cena confirma uma integridade, mas os filmes feitos já foram lançados ao mundo. Será que o cinema da diretora caducou? A reverência dos presentes na conversa com a diretora, neste 9o CineBH, disse que não, que a marca LM continua longeva. Na plateia, muitos olhos brilhavam com a fala de Martel, sem dúvida inteligente e bem interessante ao explicar o seu cinema. Mas os princípios que ela colocou ao público não me pareceram fundamentais, mas circunstanciais, pois sugeriam uma verdade sobre o cinema, mas era uma verdade de Lucrecia Martel sobre o cinema de Lucrecia Martel. Pessoas tiveram os olhos arregalados quando Gallagher reconsiderou critérios como “clássico” e “moderno”, mas ninguém suspeitou de Martel, em colocações como a realidade não ser algo objetivo, fora de nós ou a que defende a verdadeira arte sendo aquela que encontra o instante da “grieta” (rachadura, fresta) que revela algo sobre essa “construção inverossímil que se chama realidade”. Martel citou até Milton Santos para afirmar que o espaço existe pela presença e relação entre os personagens, e não o fez por oportunismo, mas… isso importa para se pensar o cinema mundial hoje? E qual realidade é essa que ela diz não ser objetiva, ainda mais numa era em que tudo flutua em relativismos e tal afirmação é minimamente cômoda? Ou a tal “grieta”, o postulado mais frágil de Martel, porque o grande cinema clássico, aquele que já desde sempre era moderno e feito por diretores com inclinação formal, já lidava com ambigüidades e fissuras reveladoras de um inferno por trás do aparente equilíbrio do mundo. Quando uma cineasta que fez um filme formidável, como O Pântano, coloca isso para justificar suas opções formais (redimensionamento espacial e uso expressionista do som, algumas de suas marcas), ela passa por cima de toda uma história da arte.

Ano passado,Tag Gallagher trouxe o novo, um caminho inédito, convidou-nos à aventura. Lucrecia Martel contou a história que todos conhecemos, repetiu o efetivo “era uma vez…” que faz a criança nanar, manteve-nos protegidos num mundo tão velho que parece de faz de conta. O caso CineBH não é o de Cannes & Co., porque sua seleção reúne marginais, malditos e desconhecidos aos bastante renomados, cabendo a outrem (nós) fazer a justa leitura dos filmes, mesas, encontros com cineastas, produtores, teóricos. Nem Martel é única deusa do conservadorismo, porque, antes, há todo um pessoal que preserva a tradição Cannes & Co., seguros nas suas roupas de marca. Festivais não são um camping ou sessão de massoterapia, mas espaços de dúvida, de certo estoicismo e esforço. É uma experiência sobretudo física (o espírito sempre requer o corpo como seu contraponto). E a programação do CineBH, assim como Gallagher e Martel, nesses dois anos que acompanho o festival, pedem mais que um passeio no shopping.

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