Corrida Sem Fim (Two-Lane Blacktop), de Monte Hellman (EUA, 1971)

setembro 1, 2016 em Colaborações especiais, Em Pauta

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O acidente da película
por Luiz Carlos Oliveira Jr. (colaboração especial)

O famoso último plano de Corrida Sem Fim termina numa imagem congelada que começa a se autodestruir depois de alguns segundos. O freeze frame não é abrupto: a imagem vai parando aos poucos, ficando cada vez mais lenta, até se fixar num fotograma que, como ocorreria numa projeção em que a película travasse, põe-se a queimar. Surge um furo na imagem, uma chaga que rapidamente se espalha devorando todo o conteúdo da tela. É como se a única forma de terminar um filme que não tem fim fosse interromper arbitrariamente o desfilamento da fita no projetor, assim como a única forma de parar a eterna perambulação dos dois heróis lacônicos de Corrida Sem Fim seria cortar o combustível ou furar um dos pneus do seu Chevrolet ‘55. O fotograma queimado, imagem que figura sua própria destruição, assinala um limite para além do qual já não há mais cinema, já não há mais imagem. O nomadismo das personagens ganha uma dimensão metafílmica após esse final, afirmando-se como o correlato narrativo-representativo de um movimento sem parada – a passagem da película pela luz – que nada mais é que uma condição estrutural e funcional do cinema.

Cinco anos antes de Corrida Sem Fim, em Persona (Bergman, 1966), já havia uma cena em que a película queimava e se destruía. A tela, depois de consumada a devoração da imagem, ficava em branco, como que devolvida ao vazio anterior ao início do espetáculo. Em seguida, algumas imagens que já haviam aparecido no começo do filme retornavam: fragmentos de um pastiche de comédia burlesca dos primórdios (o mesmo já usado por Bergman em Prisão, de 1949), uma mão trespassada por um prego como na crucificação do Cristo etc. A tela esburacada dava acesso às imagens pulsionais originárias do filme, que, de certa forma, recomeçava a partir daquele momento. O plano em que a película queimava, carregado de significado simbólico, mostrava o rosto de Bibi Andersson por trás de uma cortina (feita de um tecido delgado, facilmente atravessado pela luz e o olhar – evidente metáfora do suporte cinematográfico) que ela havia acabado de abrir, como se o filme estivesse a virar uma página ou a passar de uma camada de imagem a outra mais profunda, mais antiga. Violentando sua própria superfície icônica, o filme extenuava as possibilidades de figuração do conflito psíquico de suas personagens ao mesmo tempo em que anunciava uma nova etapa de seu desenvolvimento dramático.

Persona, Ingmar Bergman

Persona (1966), Ingmar Bergman

Em Corrida Sem Fim, a história é outra: o fotograma paralisado e depois queimado, além de um atestado traumático da realidade material do cinema, da evidência inelutável da fragilidade do seu suporte, representa também a combustão interna de um filme que se comportara como um simples motor trabalhando em velocidade constante. Aqui não há recomeço: a película travada implica o fim não apenas desse filme, mas, antes de tudo, da própria condição de possibilidade do espetáculo cinematográfico. A fita estragada pelo calor, qual a borracha do pneu queimada pelo atrito com o asfalto, desencadeia um evento figural que, enquanto efeito estético decorrente de um desastre técnico, refaz o significado do automatismo e até mesmo do autismo das personagens do filme, esses sujeitos sempre em movimento, mas nunca mobilizados por nada (pelo menos não em aparência).

A ulceração da imagem corrói a face neutra do real para revelar sua função – que não é outra senão a de recalcar o afeto – numa economia psíquica que até então parecia não ter lugar num filme de tal forma empenhado na destruição total do psicologismo. Na primeira cena de “racha”, logo no início do filme, a vertigem da aceleração alimentava o puro espetáculo cinético de um mundo absorvido no ciclo hawksiano de dispêndio e renovação da sua energia mecânica. No plano final, diferentemente, o motorista (James Taylor), o herói de rosto inexpressivo e imutável, acelera contra a dor e a raiva de ter sido abandonado pela garota (Laurie Bird) a quem dava carona. Na penúltima cena, a garota se mandou na garupa de um motoqueiro que ela acabara de conhecer numa lanchonete de beira de estrada. O último plano, então, vem para implodir a narrativa, para mostrar que sua radical opacidade escamoteava uma componente sentimental que, irrompendo de uma vez por todas, arrebenta a superfície do filme, cria um trauma na viagem – como um acidente na estrada, a exemplo daquele terrível e fatal acidente que o motorista contempla com ar aparentemente (mas só aparentemente) indiferente. Não é por acaso que a película começa a queimar exatamente no ponto da imagem onde está a cabeça do motorista, que suportou em silêncio o golpe da partida da garota, mas agora se dilacera por dentro. Se houvesse um muro na sua frente, ele continuaria a acelerar. E, na impossibilidade de se resolver como enredo dramático e destino trágico (a narrativa interditou essas opções já na largada), a catástrofe afetiva se produz, nesse plano final, como deformação plástica causada por intervenção direta na matéria da imagem.

O espaço abstrato

A jovem que viaja de carona com os protagonistas é uma ruptura no sistema. A cena em que ela chega ao filme (de onde? para onde?), tão sorrateira quanto marcante, é um dos momentos altos de uso da profundidade de campo no cinema da década de 1970: o motorista e seu fiel escudeiro (o “mecânico” interpretado por Dennis Wilson) tomam café da manhã, sentados a uma mesa numa lanchonete. Pelo vidro da janela panorâmica atrás deles, vê-se a moça saindo de uma van colorida (bem à moda hippie) e entrando no Chevrolet ’55 com sua bolsa de viagem. A partir de então, a lei do eterno movimento será relativizada por sua presença. Ao lado dela, tanto o motorista como seu rival “G.T.O” (Warren Oates) chegam a falar em ir para a Flórida, se assentar, interromper o perpetuum mobile. É quase o mesmo sonho de repouso dos heróis nômades do faroeste, mas transposto para esse mundo motorizado e asfaltado.

Em certa medida, o que Hellman faz em Corrida sem fim é reduzir ao essencial a fórmula mais básica do cinema de alguns dos principais pioneiros de Hollywood (Walsh, Hawks, Dwan): o desenvolvimento da ação no espaço. Ele dá seguimento a um processo – já iniciado com seus westerns – de depuração dos elementos constitutivos do cinema físico norte-americano, que é levado por ele a um nível de abstração sem precedentes. Em Disparo para Matar (The Shooting, 1966), essa abstração já se afirmava pelo tratamento antidramático da narrativa, pela neutralidade das paisagens, pela supressão proposital dos signos que identificavam o western a um quadro histórico específico (a época de formação dos Estados Unidos). O filme se limitava a medir o desgaste físico de uma travessia motivada por um crime ocorrido no fora de campo. Pode-se até comparar as paisagens de Disparo para Matar com os desertos subjetivos de Antonioni, mas há um constante choque de forças corpóreas no filme de Hellman que não deixa a comparação ir muito longe. Em A Vingança de um Pistoleiro (Ride in the Whirlwind), realizado quase em concomitância com Disparo para Matar, Hellman reitera a falência do mito da ação positiva e do heroísmo restaurador: a perseguição aos protagonistas é gratuita, fruto de um equívoco, e o filme acaba sem conclusão, da mesma forma que havia começado sem introdução. A narrativa é um rastro de poeira deixado pela passagem de um conjunto de corpos em movimento.

Do western ao road movie, do dístico de 1966 a Corrida Sem Fim, há uma transição lógica. Pois a estrada, no imaginário da segunda metade do século XX, substitui as grandes paisagens do western em sua função de romantização do espaço: a identificação da estrada com a liberdade individual, no universo do road movie, revitaliza no imaginário coletivo uma espécie de aspiração ao sublime que parece inseparável, na cultura norte-americana, da própria noção de espaço. O road movie desponta como a narrativa paradigmática de uma nova etapa cultural e de um novo estilo de vida que entroniza a velocidade, encarada aí tanto como uma experiência estética desejável quanto como uma demanda imprescindível para o funcionamento da vida moderna. O mundo da estrada configura um espaço plano, pleno, supercondutor, adaptado à fluidez, à facilidade de circulação exigida pelo sistema de trocas comerciais. Trata-se de um espaço em que o volume se desmaterializa na superfície, engendrando uma abstração generalizada, o que o torna mais facilmente planificável e controlável (não à toa, os heróis de Corrida Sem Fim viajam sempre pelas vias secundárias, para evitar a polícia, o rastreamento, o controle de velocidade).

Mas a promessa de liberdade e velocidade da highway total, do mundo-estrada, é tradicionalmente vista pelo cinema com desconfiança, como é o caso em Corrida Sem Fim. O topos da estrada no cinema americano é antigo, e a ideia do road movie como narrativa distópica não é uma novidade da Nova Hollywood, longe disso. Ela já pode ser encontrada em filmes do final dos anos 1950, a exemplo de Plunder Road, de Hubert Cornfield, no qual já consta também a ideia de apresentar os créditos iniciais sobre um plano do asfalto rodado a partir de um carro em movimento, que Hellman retomaria em Corrida Sem Fim e David Lynch, em Estrada Perdida (Lost Highway, 1997). Na verdade, jogar o espectador diretamente na vertigem do deslocamento já havia sido a estratégia de introdução de A Morte num Beijo (Kiss Me Deadly, 1955), de Robert Aldrich, precursor de Lynch e de boa parte do cinema moderno norte-americano. Mas é com Corrida Sem Fim que vemos um filme inteiro, e não apenas a sequência de créditos, fundir-se com esse deslocamento, ser esse deslocamento, esse movimento que avança no escuro, sem horizonte (portanto, sem progressão).

Kiss Me Deadly, Robert Aldrich

Kiss Me Deadly (1955), Robert Aldrich

Plunder Road, Rubert Cornfield

Plunder Road (1957), Rubert Cornfield

Corrida Sem Fim, Monte Hellman

Corrida Sem Fim (1971), Monte Hellman

Estrada Perdida, David Lynch

Estrada Perdida (1997), David Lynch

Movimento e imobilidade

Corrida Sem Fim é um desses filmes que, na mesma medida em que cristalizam as correntes atmosféricas que atravessam uma sociedade em determinado momento histórico e funcionam como valioso retrato de época, trazem também em sua bagagem uma parte imensa da história do cinema. Em volta dele, em diálogo direto ou indireto, encontra-se uma constelação de outros filmes que lhe são anteriores, contemporâneos ou posteriores.

Ficando só nos anos 1970, podemos identificar uma série de filmes que de certa maneira antecipam, corroboram ou desdobram Corrida Sem Fim. Em Zabriskie Point, o filme que Antonioni realizou nos Estados Unidos em 1970, a platitude do espaço se apresenta não só como cenário superficial, indiferente, mas, sobretudo, como princípio norteador do estilo de composição das imagens: Antonioni se nutre tanto das revoltas estudantis daquele período quanto das tendências formais da pintura abstrata americana (planaridade; sensorialidade; antipsicologismo) e das neovanguardas transgressoras da década de 1960, sem esquecer as energias psicodélicas do rock. Em Taking Off, de 1971, Milos Forman filma a juventude hippie com a sensação de que já chegou um pouco atrasado a esse universo: tudo o que encontrou foram adolescentes que fugiram dos pais para poder viver em liberdade – uma liberdade que, no entanto, não se traduz mais em contracultura e gestos libertários, mas tão somente num cotidiano improdutivo, que provoca a incompreensão de uma geração de pais caracterizada como patética. Em Milestones, de 1975, Robert Kramer mostra a ressaca da juventude que se engajou na militância política em 1968-69: derrotada por um conservadorismo sistêmico muito mais profundamente enraizado e muito mais fortemente armado do que imaginava, essa geração se refugiou para dentro de pequenas ilhas sociais formadas por afinidades eletivas, numa espécie de segmentação das utopias comunitárias dos anos 1960. Em Caçada de Morte (The Driver, 1978), de Walter Hill, o ator Ryan O’Neal interpreta um motorista especializado em garantir fugas velozes depois de roubos e assaltos. À noite, sozinho em seu apartamento, o caubói do asfalto ouve músicas country num radinho de pilha. Ele é um herói deslocado, espremido entre prédios e garagens, condenado a desviar dos obstáculos de estacionamentos subterrâneos e a acelerar pelos becos urbanos de uma cidade melancolicamente noturna, sempre nostálgico dos grandes espaços do western e da exaurida mitologia da conquista associada a eles.

Por razões diversas, Corrida Sem Fim se conecta a todos esses filmes, que têm em comum a apresentação dos dois lados da revolução comportamental iniciada pela juventude dos anos 1960: de um lado, a força contestatória, o desejo de liberdade sexual e transformação social, a renovação dos valores e costumes, enfim, a tendência ao movimento; do outro, o efeito-rebote de toda essa energia transformadora, ou seja, uma certa tendência à letargia, à imobilidade (logo que a garota entra no carro dos protagonistas, ela diz que o motorista da van colorida na qual estava só conseguia levantar da cama depois de fumar um baseado: “Nós supostamente íamos até o Grand Canyon, mas ele só queria saber de se drogar e descansar na beira da estrada” – essa inércia que podia tomar conta da mesma juventude que decidira quebrar a monotonia e desbravar o mundo é um paradoxo que claramente intriga Hellman, assim como já intrigava outros cineastas que tentaram retratar essa época). O filme ilustra ambas as forças, não só de maneira mais simples, dividindo a narrativa entre ação e repouso, mas, sobretudo, tornando o próprio movimento uma forma de imobilidade e vice-versa (como resumido na imagem paralisada no final).

A reificação do olhar

Os protagonistas de Corrida sem Fim cruzam o país de oeste a leste (inversão nada gratuita do trajeto histórico de expansão do território norte-americano), esbarrando aqui e ali com tipos estranhos (incluindo red necks sulistas que encarnam uma certa aversão violenta da América profunda ao elemento exógeno). Mas a narrativa do encontro e do embate com o outro é amortecida em prol de um regime de percepção que equaliza todos os acontecimentos numa mesma postura “distanciada” (não sei se a palavra é mesmo esta), que evoca o olhar deliberadamente não predicativo de uma das formas de contemplação moderna, ou até mesmo a inanidade do sujeito do olhar, sua anulação perante a opacidade impenetrável do objeto.

Na já citada cena do acidente na estrada, observam-se duas reações opostas: o desespero e a desolação do motorista do caminhão, e a distância enigmática da personagem de James Taylor, para não dizer a sua indiferença apática. O plano que mostra o corpo do acidentado remete a Andy Warhol, que, num conhecido ciclo de trabalhos a partir de fotografias de acidentes de automóveis extraídas de revistas de grande circulação, jogou com a repetição serial das imagens violentas do acidente como uma forma ambígua de aproximação do olhar de um real traumático do qual, paradoxalmente, esse mesmo olhar gostaria de fugir. Warhol inverte o processo de reificação da morte operado pelos meios de comunicação de massa, sublinhando a obscenidade do registro fotográfico do acidente. O obsceno é aquilo que não tem mais uma cena para contê-lo: ele quebra a tela de proteção que o mantinha inofensivo para o espectador.

Corrida Sem Fim (1971), Monte Hellman

Corrida Sem Fim (1971), Monte Hellman

Ambulance Disaster (1963), Andy Warhol

Ambulance Disaster (1963), Andy Warhol

O olhar neutro do motorista no filme de Hellman – conforme podemos especular com base na comparação com Warhol – é uma defesa contra o afeto traumático. Todo o filme pode ser visto nessa chave do olhar reificado que funciona como recalque de uma realidade que, se recebida em sua energia afetiva original, causaria uma rotura esquizofrênica no sujeito. Mas, em se tratando de um filme desse quilate, jamais podemos nos contentar com uma só leitura. Devemos, principalmente, nos ater à experiência que ele constrói, e que repousa em grande parte no seu desconcertante laconismo, na opacidade dos seus significantes, que deixam o espectador à mercê de uma relação direta com a imagem no que ela tem de mais concreto e de menos literário – e essa está longe de ser uma situação confortável para todos. Interessa a Hellman não apenas a revisão crítica dos gêneros tradicionais de Hollywood e a documentação das mudanças culturais da sociedade americana, mas também – como o final de The Shooting já havia demonstrado – a experimentação com elementos estruturais específicos do cinema (talvez devamos aproximar Corrida Sem Fim menos de Easy Rider do que do cinema estrutural de Michael Snow e Hollis Frampton). Impossível avaliar a importância de Corrida Sem Fim para a história do cinema moderno sem levar em conta esse seu lado, até certo ponto, formalista. A simplicidade do filme, bem como sua genialidade, tem a ver tanto com uma depuração do realismo concreto do cinema americano quanto com um trabalho abstrato de reflexão sobre aquilo que caracteriza a imagem de cinema enquanto tal: o movimento.

O que nos leva de volta à última imagem do filme: a película travada e queimada, transformada em cinzas; a interrupção do movimento (da vida), que acarreta inexoravelmente a suspensão da ação e o início de um outro sentido do tempo; a fixação num presente não prospectivo, assignificante, sem projeto e sem sentido; a realidade do cinema devolvida a sua única evidência irrefutável, ou seja, o tempo da morte em trabalho.

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