Corpos desconfortáveis, olhar seguro: os filmes de Dan Sallitt

dezembro 3, 2013 em Em Vista, Filipe Furtado

O Ato Indizível (2012), Dan Sallitt

O Ato Indizível (2012), Dan Sallitt

por Filipe Furtado

O Ato Indizível (2012), filme mais recente de Dan Sallitt, foi exibido por aqui na última edição do Indie, numa rara oportunidade ao cinéfilo brasileiro de tomar contato com um dos mais singulares cineastas americanos recentes. É um filme mais expansivo que Honeymoon (1998) e All the Ships at Sea (2004), mas que mantém o tom direto e rigoroso que marca seus filmes anteriores. Sua recente exibição por aqui uma boa oportunidade para lançar um olhar sobre uma filmografia que merece ser muito mais conhecida.

Sallitt, que é também um muito perceptivo crítico de cinema, filma pouco – somente três longas nos últimos quinze anos, além do vídeo Polly Perverse Strikes Again (1986), que eu nunca vi – e seus filmes seguem muito modestos e à parte dos modismos de época para caírem no gosto dos festivais de cinema. Uma das coisas que primeiro chamam a atenção nos filmes de Sallitt é justamente a forma paradoxal com que confundem expectativas: são filmes que tendem a ser elogiados pela sua honestidade e bom poder de observação, mas cujas atuações estilizadas e uso expressivo de cor e composição existem bem distante de qualquer ideia de naturalismo tão comum no cinema dito independente. Se situações e sentimentos são plenamente reconhecíveis, maior ainda será a impressão de que estamos diante da reação de uma sensibilidade bem especifica a eles. São filmes que trafegam sobre uma série de relações dotadas de uma agressividade muito grande (All the Ships at Sea é dedicado a Maurice Pialat), mas que são personificados por tipos reservados que não têm a menor ideia de como lidar com isto. Eles seguem em frente ineptos enquanto os filmes os circundam.

A grande maioria das cenas marcantes do cinema de Dan Sallitt acontece em pares. Haverá sempre duas personagens diante de uma negociação dura de sentimentos e desejos e a impressão constante de que há algo desbalanceado em cada uma destas trocas, para a qual o filme vai buscar uma representação justa. De fato, exceto por algumas sequências familiares muito bem observadas no recente O Ato Indizível (2012), os momentos de grupo nos filmes de Sallitt existem exclusivamente como exposição e tendem a desaparecer após as sequências iniciais. Este foco em dois tem muito a ver com a rara concentração que os melhores momentos dos seus filmes alcançam: eles calmamente se aproximam do seu foco e extraem dali tanta força quanto podem.

Honeymoon, All the Ships At Sea e O Ato Indizível têm em comum a forma como entram pela porta dos fundos por temas complicados: Honeymoon lida com um casal de amigos que decidem de súbito se casar e descobrem que suas personalidades compatíveis significam pouco na cama; All the Ships é com duas irmãs que se reúnem após a caçula passar anos num culto religioso; e O Ato Indizível é sobre uma adolescente apaixonada pelo irmão mais velho.  Os pontos de partida chamativos não poderiam ser mais distantes da austeridade discreta dos próprios filmes, mas servem de ganchos para trabalhos que localizam seus reais interesses por vezes longe do esperado.

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All the Ships at Sea (2004), Dan Sallitt

Em All the Ships at the Sea, é o raro olhar sério e não condescendente sobre crença religiosa.  Há duas irmãs, uma professora de teologia católica e a outra recém expulsa de um culto carismático com o qual segue muito envolvida. O filme se reveza entre cenas das duas conversando na casa de lago da família, com a irmã mais velha recontando o fim de semana ao padre. Todas as conversas seguem focadas, sem grandes desvios (com pouco mais de uma hora de duração, é um filme de notável concisão dramática). O que surge dali é um retrato de dois olhares sobre o mundo e os limites das tentativas de aproximá-los. Dada a forma como a religião é frequentemente um tema que nos separa, a ênfase do filme no passado comum das irmãs só reforça sua maturidade.  É, ao mesmo tempo, um dos melhores filmes sobre o tema e um filme que é muito menos sobre religião do que sobre duas perspectivas diferentes se relacionando.

All the Ships at Sea é um caso raro de construção como um argumento que faz valer muito bem a qualidade cerimonial da mise em scène de Sallitt. Olhares são apresentados num espaço que é tratado como um palco para projetá-los. Como já mencionado, a grande maioria dos filmes de Sallitt existem como complicadas negociações a dois. Todos os três longas de Sallitt usam poucas locações e elas são cuidadosamente consideradas pela câmera. O diretor parece constantemente fascinado por filmar argumentos em parques, o verde dos espaços comentando o comportamento desajeitado dos seus personagens. As internas, especialmente as sequências na casa da família em O Ato Indizível trazem à mente Yasujiro Ozu na maneira com que o espaço é apresentado como um misto de palco e extensão da intimidade dos personagens.

Se All the Ships at Sea é o filme mais teórico de Sallitt, Honeymoon é o mais visceral, ou ao menos tão visceral quanto pode ser um filme sobre duas pessoas tateando de forma passiva-agressiva sobre o fato de ambos estarem profundamente insatisfeitos sobre suas tentativas mal resolvidas em trepar. Novamente o que impressiona é o tom direto com que o filme confronta sua situação e a clareza do ponto de vista: não há muitos outros retratos tão francos de intimidade, em que se trata um casal na cama de forma tão casual. Sexo ruim em filmes é quase sempre usado como comentário sobre um personagem, como se adjetivos como “frígida” ou “impotente” nos dissessem algo mais sobre os eles; aqui, é só um fato da vida com o qual, se imagina, o público também já teve que lidar em momento ou outro. Com a possível exceção de A Prisioneira (2000), da Chantal Akerman, não há no cinema recente melhor comédia de embaraço sexual, e, assim como Chantal fazia com ciúme, há muito que se extrair aqui do seu olhar expansivo sobre intimidade.

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Honeymoon (1998), Dan Sallitt

Honeymoon e All the Ships at Sea são ambos, à sua maneira, filmes de férias, e, com O Ato Indizível, Sallitt finalmente retorna para a casa e expande seu universo: a ação cobre um período longo, personagens lidam com um mundo bem mais amplo, as tensões dramáticas surgem de mais direções, etc. Trata-se do filme mais acessível de Sallitt, com uma dramaturgia mais variada, uma parceria com o fotógrafo Duraid Munajim que encontra uma paleta de cores ainda mais rica, e, especialmente, uma atuação central de Tallie Medel que é de uma abertura e curiosidade raras. Novamente, o tema não poderia ser mais espinhoso – incesto – e, outra vez, a abordagem impressiona pelo que tem de direta. Jackie é aberta com o irmão sobre o seu desejo e a resposta dele é tolerar a atenção dela até o ponto que lhe confortável.

Howard Hawks é o cineasta favorito de Sallitt e parte do charme dos seus filmes brota do encontro de uma sensibilidade e operações que associamos com o cinema europeu com um pragmatismo hawksiano. Tudo, até mesmo um tabu como o incesto, é encarado sempre em termos práticos. Seus filmes podem sugerir uma coleção de corpos desconfortáveis, mas o olhar sobre eles segue sempre impassível, capaz de se adaptar democraticamente a qualquer comportamento e situação que seu material lançar. É algo que ganha ainda mais força nas sequências de terapia da segunda metade do filme, que são dotadas deste mesmo sentimento de praticidade que geralmente escapa a cenas do gênero.

O Ato Indizível (2012), Dan Sallitt

O Ato Indizível (2012), Dan Sallitt

Se algo distancia O Ato Indizível de outros filmes independentes americanos recentes é justamente a questão de especificidade. Há um foco e concentração aqui bastante incomuns. Mesmo um cineasta talentoso como Andrew Bujalski às vezes cai na tentação de buscar justificar seus filmes com um elemento externo a eles, enquanto O Ato Indizível é somente um filme sobre aquilo que acontece dentro do quadro: um compêndio de reações de uma atriz e de um cineasta para os desafios que o material coloca em seus caminhos. À medida em que O Ato Indizível progride e o incesto se revela só um gancho para um retrato sobre aquela garota de dezesseis anos no período imediatamente antes de ela deixar sua família pela primeira vez, esta especificidade se torna mais importante. Recusando ao genérico,  o filme evita sempre colocar sobre Jackie um peso além do que ela pode carregar.

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