Cobertura da CineOP – 11ª Mostra de Cinema de Ouro Preto

setembro 1, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

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Revendo Histórias
por Raul Arthuso

A discussão sobre o cinema brasileiro no período de transição para a Nova República é bastante oportuna quando as forças sociais e políticas presentes na constituição daquele momento parecem ter chegado, hoje, a um ponto de ruptura. É bastante tentador aproximar aqueles filmes da realidade presente, mas trata-se de tentação perigosa: o cinema produzido entre 1976 e 1988 responde a anseios, frustrações e crises de sua época, uma realidade que hoje, por mais conhecida que seja, não está disponível para nós a não ser como narrativas. Evidentemente é interessante refletir sobre os temas presentes nos filmes da Mostra Histórica da CineOP deste ano apontando a permanência de sua atualidade – as formas de luta política, criando conflitos entre as gerações do golpe de 1964 e os jovens que construíram a democracia brasileira; a atuação da mídia diante do turbilhão político; o racismo; o machismo; a violência policial; as relações sociais e de classes mediadas pelo dinheiro e o sucesso arrivista. Mais importante, me parece, é entender as formas de expressão usadas pelos cineastas para construir a imagem de um Brasil em vias de acabar e um outro nascente, e percebe como eles conseguiram refletir os temas do momento em forma fílmica, de modo a servir de posturas exemplares para as questões e demandas particulares à realidade atual.

Nesse sentido, é importante ressaltar a possibilidade aberta pela temática histórica da CineOP deste ano de discutir e ampliar o cânone sobre o período. Invariavelmente, as abordagens do cinema brasileiro na transição para a Nova República desembocam em três filmes emblemáticos: Eles Não Usam Black-Tie (1981), de Leon Hirszman; Memórias do Cárcere (1984), de Nelson Pereira dos Santos; e Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho. Não sem razão: os três filmes são balanços do período da ditadura militar cujas formas rediscutiam a história e o próprio cinema. Apropriando-se do melodrama, do recuo ao passado ou do ensaio fílmico, Black-Tie, Memórias e Cabra conseguiram sintetizar a experiência de vinte anos de ditadura militar ao mesmo tempo que colocavam a linguagem do cinema moderno brasileiro em crise. Talvez por sintetizarem toda a experiência intelectual, artística e política do cinema entre 1964 e 1984, esses três filmes sejam casos mais notórios, mas não são os únicos, tampouco abordam todas as questões possíveis. Seria inocência acreditar que apenas a política da esquerda pela democracia contra o golpe civil-militar estava em jogo nos anos 1980, assim como hoje não é só o golpeachment a mobilizar a sociedade. Ao exibir outras obras nesse recorte histórico, mesmo em número reduzido que claramente não dá conta de todo o espectro da produção (algo que a curadoria tentou abrandar com debates mais amplos sobre a cinematografia dos anos 1980), mas incluindo filmes imprevistos como A Próxima Vítima (1983), de João Batista de Andrade, e Extremos do Prazer (1984), de Carlos Reichenbach, ampliam-se as possibilidades de leitura do período. Isso porque filmes como Superoutro (1989), de Edgard Navarro, ainda que não apresentem a ditadura ou a abertura como tema central, criam uma crônica bastante apurada de certos aspectos da sociedade e do momento, permitindo captar determinado estado das coisas no Brasil da época a partir do cinema.

É o caso evidente de A Próxima Vítima, filmado durante as primeiras eleições estaduais de São Paulo, em 1982. A trama acompanha Davi (Antônio Fagundes), jornalista de uma rede de televisão fictícia, durante seu trabalho investigativo sobre um assassino de prostitutas no Brás. Davi entra em ruas, becos, hotéis poeiras, botecos e cantinas buscando informações, até se envolver com Luna (Mayara Magri), uma prostituta menor de idade na mira do assassino em série. O pleito popular não é propriamente matéria do filme: está nas discussões de boteco, nas notícias de jornal, rádio e televisão, nas manifestações públicas que entram pelas beiradas da encenação. João Batista de Andrade segue nesta ficção policial procedimentos recorrentes em seus documentários e reportagens especiais ao filmar nas ruas, becos e estabelecimentos, sem medo de incorporar a realidade do instante na obra. Se em Liberdade de Imprensa (1967) ou Migrantes (1973), Batista intervém na realidade propondo um confronto de ideias a partir do debate entre as personagens, seu modo interventivo de filmar permite, em A Próxima Vítima, a via contrária, ou seja, a intervenção da realidade no filme de ficção. A câmera penetra os espaços, movimenta-se na rua ou em praças, chamando a atenção das pessoas para as batidas policiais encenadas, tornando os curiosos espectadores participantes da encenação. Assim, as questões da realidade propostas pelo filme – violência contra a mulher; prostituição; racismo; abuso policial e o papel da mídia no processo – instigam uma aproximação entre o clima de incerteza da trama (afinal, quem será a próxima vítima?) com o turbilhão das discussões em torno da eleição, documentados en passant.

A Próxima Vítima (1982), João Batista de Andrade

A Próxima Vítima (1983), João Batista de Andrade

Batista opta por uma encenação violenta, com câmera na mão intrusiva, espontânea, como se documentasse a própria trama do filme. É uma proposta de realismo pouco explorada pelo cinema brasileiro logo em seguida, na qual o comportamento documental da câmera se daria numa encenação programada, por vezes coreografada, aos moldes do cinema de estúdio. Em A Próxima Vítima temos um realismo das ruas, do choque entre a construção ficcional prévia de um enredo e a tensão da realidade imediata que insiste em adentrar o filme. Quando Nego (Aldo Bueno) é acusado pela polícia de ser o assassino de mulheres, Davi tenta redimir seu erro dando voz ao rapaz, mas é confrontado com o desespero da vítima policial da vez, cuja única arma é mandar tudo às favas. Como o irmão de Nego (João Acaiabe) diz: “Se estiver faltando um criminoso, é fácil. É só pegar um negro”. Ou seja, não é qualquer um que pode ser a “próxima vítima” e, sim, um “qualquer”: os excluídos, os pobres, a classe trabalhadora residente em favelas e cortiços. A violência é a resposta a um círculo vicioso, no qual a sociedade precisa de um criminoso para continuar com sua resposta violenta de exclusão que produz novos criminosos. Como o filme insiste no final, o criminoso procurado por Davi não é nem uma coisa nem outra, não pertence a uma etnia ou a outra, uma classe ou outra. Ele é todos e ninguém.

Superoutro: da incerteza ao desespero

O clima de incerteza de A Próxima Vítima dá lugar ao desespero em Superoutro, filmado, ao contrário da crônica de Batista, no fim da década, às portas da primeira eleição direta para presidente desde os anos 1960. Também aqui, isto não é o centro do filme. Edgard Navarro aposta na criação transversal de um mal-estar vertiginoso e, ao mesmo tempo, irreverente: excremento, mijo e masturbação estão justapostos ao arrivismo social e o fetichismo do dinheiro. O protagonista, interpretado por Bertrand Duarte, procura uma mulher, folheia revistas pornográficas, mas se masturba mesmo diante do programa da roleta da felicidade de Silvio Santos. Só os sortudos têm direito à felicidade – do dinheiro. Prazer e sofrimento se misturam num gozo delirante e vazio, necessário e superficial, perdido entre a utilidade e a gratuidade do gesto.

Essa dialética da necessidade move as ações do protagonista, um sujeito esquizofrênico vagando pela ruas de Salvador como um vivo-morto em meio aos mortos-vivos. Suas primeiras palavras são um grito de desespero solitário: “Acorda humanidade!” – palavras necessárias num mundo adentrando a era pós-utópica, mas ao mesmo tempo sem qualquer alcance, pois a humanidade continua seu sono, presa às necessidades imediatas. A esquizofrenia do protagonista não é clínica, mas essencial; não está na superfície da dramaturgia, e sim na própria constituição desse homem sem nome surgido das entranhas da cidade. O personagem aparece das ruas e a elas pertence; não tem lar, nem privacidade. Os espaços fechados são sua prisão. É um homem comum e, ao mesmo tempo, ninguém. Perto do final da história, o protagonista discursa em frente a uma plateia na praça Castro Alves, falando sobre sua verdadeira face: sendo um super-herói, como o Superman, ele nasceu para voar, o que inevitavelmente – sabemos nós – o levaria à morte. Um voo para o vazio, portanto. Seu discurso puxa a intervenção de duas figuras: uma evangélica, que vê no Superoutro a decadência do homem pela falta da religião, pois só Deus pode salvá-lo; e um militante comunista (vestindo uma camiseta com os dizeres “Nicarágua Libre”) que usa o rapaz como amostra da opressão e alienação da sociedade capitalista sobre o homem comum. Ambos os discursos dialogam com a necessidade do homem, mas nenhum deles é capaz de chegar ao que lhe é necessário. A defasagem entre o ideal e o fato se encarna no Superoutro. Navarro figura, na personagem, as contradições do mundo atomizado da Nova República, cuja figura do super-herói redentor é a faceta irreverente do iconoclasta corrosivo. “Para todos e para ninguém”, como Nietzsche definia sua filosofia.

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Superoutro (1989), Edgard Navarro

Superoutro mistura, então, a oscilação entre o superficial e o essencial, problematizando o ritmo da vida de uma grande cidade brasileira – Salvador é tomada como exemplo de uma cidade que poderia ser qualquer outra do país – com a truncada intervenção de sua iconoclastia. O protagonista intervém no meio da rua, atrapalhando o trânsito, atravessa na frente dos carros, zanza pelas praças públicas da cidade, sai correndo da igreja onde a liturgia amansa a alma dos fiéis. Enquanto a cidade se movimenta em direção ao desenvolvimento, a câmera atenta por longo tempo para uma cagada em plano detalhe, transformando sua escala e justapondo a vida social contemporânea com a grande merda.

O diagnóstico é aterrador: crise existencial do sujeito fragmentado, desencontrado e desesperado que levará ao grande salto suicida no vazio, um voo ao infinito nada. Seu tom, por outro lado, é irreverente. Desde a primeira cartela (“Conservai senhor, o meu senso de humor!”) até o encerramento cômico e sem sentido dos dizeres “Será que ele está no Pão de Açúcar?” quando Superoutro sai voando, o tom tira do texto bíblico sua métrica, mas retira seu sentido espiritual em favor de uma profecia de exasperação cantada por um louco-santo, uma espécie de absurdo do profeta glauberiano. A iconoclastia de Navarro é apenas um dado de suas representações que se aprofundam menos na escatologia de certos planos e mais na fruição de coisas tão duras. O ritmo da cidade e a estética “progressista” da contemporaneidade – que tudo permitem – são confrontados com a métrica arcaica e o esvaziamento das utopias. Menos que negarem-se, elas se completam. A cagada ou a punheta são companheiras íntimas da música erudita na banda sonora, o sagrado e o profano são partes igualmente constituintes da prosódia do Superoutro, a crente e o comunista discursam as mesmas ilusões, o obsceno e o corriqueiro têm suas escalas transformadas pelo poder da câmera – a cidade aparece muitas vezes reduzida, de longe, enquanto excrementos, fluidos corporais, o ânus, o pênis, são ampliados pelos planos detalhes, com força descomunal. O necessário e a necessidade, em suas mais diversas acepções, convivem, brigam, invertem-se. Iniciado com um clamor irreverente, Superoutro se encerra, após transitar pela cidade, seus espaços e personagens, com uma dúvida esvaziada de relação com o restante da trama, de forma desvairada. O gesto de intervenção de Superoutro e a dialética fundamental de sua construção criam uma fotografia muito potente do momento, o fim e o princípio do Brasil contemporâneo, no qual interessa menos seu sentido que sua sensação.

Extremos do Prazer: fantasmas do passado

No meio do caminho entre a incerteza de A Próxima Vítima e o desespero de Superoutro havia Extremos do Prazer, de Carlos Reichenbach. Seu cinema do período de 1978 a 1985 é uma radiografia instigante do processo de redemocratização, pois Reichenbach realiza, dentro da linguagem de cinema popular da Boca do Lixo, representações por vezes sutis, outras nem tanto, dos agentes envolvidos na vida brasileira. O texto de Ruy Gardnier no catálogo e minha fala na mesa temática da CineOP foram no sentido de colocar Carlos Reichenbach como um cronista apurado desse momento em suas diversas construções formais ficcionais. Se considerarmos sua produção realizada no contexto da Boca do Lixo, o feito é ainda mais notável.

Em Extremos do Prazer, Reichenbach faz uma reflexão sobre os resquícios do pensamento revolucionário e da luta armada ao longo dos anos 1970. Dois jovens casais, produtos das configurações sociais do “milagre econômico”, passam o fim de semana num sítio, onde reside um velho intelectual de esquerda (Luiz), irmão do dono da propriedade, como uma espécie de caseiro. Ele é um homem atormentado pela morte de sua esposa Ruth (Sandra Graffi), militante clandestina cujo assassinato está envolto por mistérios. O homem delira ao longo do filme, parece retraído, preso entre dois tempos e realidades nas quais não finca raiz. O “fantasma” de sua esposa aparece em diversos momentos, quando ele está deslocado dos outros habitantes do sítio. Seu jeito acanhado e fora do lugar contrasta com o otimismo chauvinista de Ricardo, personagem de Roberto Miranda, um boçal meritocrata que ascendeu socialmente ao longo da abertura política e acredita na carreira como a verdadeira passarela da vida. A oposição entre o “homem produtivo” do novo capitalismo liberal e o “homem reflexivo” do passado dá o diapasão da trama.

Extremos do Prazer (1984), Carlos Reichenbach

Extremos do Prazer (1984), Carlos Reichenbach

Extremos do Prazer traz os principais elementos do cinema de Reichenbach no período entre 1978 e 1985: a restrição do espaço, o encontro de personagens de um colorido ideológico diversificado, o choque da alta cultura com a vida prática, a antropofagia da tradição artística ocidental. Disso advém a força do melhor do filme: a política como o resultado do choque entre as diferenças a partir de uma tradição que, mesmo desconhecida, se faz presente. Seja a música, os livros ou a presença de um dramaturgo contemporâneo que discute os erros do marxismo numa roda de bebedeira, o passado não se esvai no tempo, a história não se constrói individualmente, mas em sociedade. O delírio do boçal não é senão expressão da carga presente mesmo em quem nela tenta se afastar: imaginando-se num pau-de-arara, Ricardo tem um pesadelo sobre ser torturado nos anos de chumbo que não viveu e do qual foi, na micropolítica do cotidiano, artífice. O delírio deixa o rapaz bastante atormentado e sua única solução é ir embora do sítio. Essa perturbação do passado, constante em Extremos do Prazer, parece inescapável – para bons, maus, belos, feios, inteligentes ou boçais.

Por outro lado, Extremos do Prazer é o filme de Carlos Reichenbach no qual as concessões da Boca do Lixo estão mais latentes: o machismo das personagens, a objetificação das mulheres, o sexo como primazia do prazer masculino, dentro de uma ideia de “guerra dos sexos” que tende sempre a enfraquecer a afirmação feminina. Comparando com A Ilha dos Prazeres Proibidos (1978) e Império do Desejo (1981), a sexualidade está menos problematizada aqui, com as concessões do gênero bastante incrustadas no lugar comum da comédia erótica. À exceção de uma tiração de onda aqui e ali, Extremos do Prazer apresenta os problemas de representação do papel da mulher no sexo e o abuso do corpo feminino sob a perspectiva masculina (público-alvo do filme em seu tempo). Por outro lado, para um filme como esse nome, o prazer está quase em banho-maria, sinal de que não é tudo tão preto no branco assim. Independentemente disso, é importante deixar a porta aberta para o debate desse aspecto, sem desautorizar as possíveis ressalvas em torno do sexo e da representação da mulher no filme. Pois, sim, Extremos do Prazer articula a dramaturgia para colocar em discussão as transformações subjetivas e políticas do país no período, e, sim, tem sérios problemas de representação do abuso da mulher no sexo – a cena do “estupro consentido” causa um mal-estar tremendo, especialmente porque o espectador se vê diante desse conceito que não faz nenhum sentido exceto para a perturbada lógica dos produtores da pornochanchada. E se ainda encontramos todas essas contradições na sociedade brasileira hoje – o estupro como cultura, a tortura, o dinheiro como fim em si mesmo, a boçalidade endêmica – e no cinema praticado hoje – afinal, não podemos esquecer, o cinema está na sociedade – isso indica o quanto os fantasmas de trinta anos atrás ainda nos assombram todos os dias.

Um salto do tempo (mas nem tanto…)

Nosso tempo é afloradamente político. Vários dos filmes contemporâneos selecionados para a CineOP apontam para a urgência do momento. A aproximação entre o período da mostra Histórica e suas opções estéticas para abordar a política da época com os filmes contemporâneos serve para esse diálogo que pode ser produtivo se não ficar restrito a comparações desbaratadas, (como muitas vezes acontece) que chegam à surpreendente (!) conclusão de que Cabra Marcado para Morrer foi o melhor filme exibido este ano no festival de Ouro Preto. Mais interessante é olhar o passado para pensar o futuro: o que os gestos Eduardo Coutinho, Nelson Pereira dos Santos, João Batista de Andrade, Carlos Reichenbach, Ugo Giorgetti e outros tantos cineastas com relação ao tempo deles pode dizer com relação aos gestos de hoje? Do mesmo modo, os cineastas de trinta anos atrás tiveram que encontrar formas cinematográficas de lidar com seu tempo; se hoje os tempos são políticos, urgentes, desesperadores ou esperançosos, como fazer disso filme? As formas tateantes são, então, a marca de muitos filmes cuja política é propulsora do ato de filmar. Isso, por um lado, resulta em filmes imperfeitos, com questões, lacunas e equívocos evidentes. Por outro, deixa patente um desejo de discussão que pode, num futuro próximo, ser instigante para as discussões de cinema e da sociedade a partir deles.

A urgência é o impulso principal de Acabou a Paz, Isto Aqui Vai Virar o Chile, Escolas Ocupadas em São Paulo, de Carlos Pronzato, cujo título descreve seu mote: as ocupações das escolas públicas de São Paulo pelos estudantes secundaristas para evitar a reestruturação proposta pelo governo do Estado em 2015. Filmado no calor da hora e apropriando-se de diferentes registros, Acabou a Paz tem um tema muito forte e dá voz para os estudantes. O problema evidente é o quanto esses depoimentos estão envoltos por vozes de autoridade e opiniões “abalizadas”, o que depõe contra a temperatura efervescente desejada pelo filme. Acabou a Paz pode, sem dúvidas, inflamar ânimos, mas isso está mais na realidade política retratada do que em sua capacidade de gerar discussões ou caminhos. Seu gesto é catalogar todos os principais temas envolvidos na questão das ocupações e do ensino, mesmo a custo de passar muito rapidamente sobre muitos deles e “esfriar” sua pulsão inicial com estratégias convencionais de documentário, contraditórias com o “calor da hora” fundamental ao filme. No fundo, Acabou a Paz é mais um retrato de uma insurgência que uma insurgência em si; sua forma é do balanço, não da intervenção. Seu título, tão direto e descritivo, é também enganador.

Crônica da Demolição (2015), Eduardo Ades

Crônica da Demolição (2015), Eduardo Ades

Noutro espectro, Crônica da Demolição, de Eduardo Ades, faz um movimento muito parecido com alguns filmes dos anos 1980 ao buscar no passado a matéria-prima para dizer algo sobre o presente – no caso, a demolição, durante a ditadura civil-militar, do Palácio Monroe, antiga sede do Senado Federal, localizado no Rio de Janeiro. O filme articula material de arquivo com entrevistas atuais em estúdio e imagens da paisagem carioca hoje de forma convencional, usando a imagem para ilustrar as palavras das entrevistas. Aos poucos, porém, uma espécie de assombro vai se formando: a história da demolição do Monroe se assemelha demais com tantas outras destruições e reconstruções das grandes cidades brasileiras, promovidas toda vez que é necessário demarcar o processo desenvolvimentista. Se o filme de Eduardo Ades está completamente ancorado a uma linguagem reconhecível de documentário, abordando temas com clareza a partir de depoimentos de envolvidos e especialistas, existe uma potência angustiante de perceber que a cidade do Rio de Janeiro – e por extensão o Brasil – está em eterna remodelação a partir de interesses poderosos: o capital financeiro, a elite política e a racionalidade moderna, seja na programação eficiente da vida econômica ou mesmo na ideologia modernista que arrasa o passado em nome de uma promessa de libertação que nunca se cumpriu. Destruição e interesses se encontram no esquecimento que Crônica da Demolição tenta, a seu modo mais brando, amenizar, única tarefa às mãos do cineasta em uma sociedade que precisa – e deseja – cada vez menos dele.

O esquecimento – dos interesses, dos processos, da história, e da coisa em si – é a tônica de alguns curtas-metragens exibidos na Mostra Contemporânea. O caso mais interessante é Porfírio, de Henrique Borela, que resgata a história de um líder camponês da luta agrária do Centro-Oeste brasileiro nos anos 1950. A partir de fotografias estáticas e um texto jornalístico, o filme traça uma espécie de perfil dessa figura pouco conhecida, relegada ao desaparecimento pelos interesses agrários do latifúndio que até hoje fazem da região uma terra onde a lei é escrita – para os poderosos – e desrespeitada quando convém por quem tem o poder da bala – em geral os mesmos que fazem as leis. A força do filme está no silêncio: as fotografias monocromáticas passam pela tela sem que um ruído sequer seja ouvido. A secura do silêncio torna-se mais ensurdecedora pelo uso de legendas com o texto jornalístico da época que traça uma descrição das atividades e pensamento de Porfírio. O recurso sugere o som, mas sua ausência causa o incômodo potente da falta de memória, de conhecimento, ou melhor, de reconhecimento. Porfírio não será resgatado, não estará nos livros, não se tornará símbolo de luta apenas pelo gesto do filme. O pequeno curta de Borela faz um resgate do personagem, discute seu esquecimento e, ao mesmo tempo, expõe a fragilidade do gesto do filme com um recurso sugestivo simples e poderoso.

A ideia de resgate está presente também nos curtas Antonieta e Retalho, mas ambos partem por caminhos já trilhados no curta-metragem contemporâneo. A marca fundamental dos filmes é a presença da voz over das realizadores. Antonieta, de Flávia Person, resgata a história da primeira mulher eleita para Assembleia Legislativa de Santa Catarina e primeira mulher negra a ter um mandato popular no Brasil. A partir de arquivos de diversas naturezas, a voz over costura as imagens, propondo uma narrativa espelhada numa tradição oral de contar histórias. Os dados da narrativa são objetivos, o prazer estaria nos meandros da narração, o que ganha potência aqui quando a condição da mulher é sempre colocada em questão ao longo do curta. A narradora não é apenas uma contadora de histórias, mas alguém que recebeu por gerações o peso histórico da condição feminina que Antonieta de Barros teve de combater em seu tempo. Se esse tipo de espelhamento pela voz é a força do filme, a amarração narrativa é sua grande fragilidade. A história é alinhavada por um paralelo com a realidade atual: primeira mulher eleita tendo que vencer diversos preconceitos e batalhas cotidianas ao longo da vida, Antonieta é varrida da política por um golpe institucional de seus opositores. Qualquer semelhança com a atualidade não é mera coincidência. A aproximação é potente, ao mesmo tempo perigosa, pois a personagem deixa transparecer nas frestas da narrativa uma potência de símbolo político por si só, sem a necessidade de paralelismos. Por outro lado, nunca é demais reafirmar como funciona a política no Brasil, seja em meados do século XX, seja em 2016…

Porfírio (2015), Henrique Borela

Porfírio (2015), Henrique Borela

Retalho, de Hannah Serrat, é um filme composto com imagens em vídeo de uma pessoa comum, encontradas no YouTube pela realizadora. São imagens de pouco interesse e que, por isso mesmo, tendem ao desaparecimento no meio de tantas outras com atrativos de diversas naturezas – especialmente as atiçadas pela publicidade – espalhadas pela Internet. Os registros mostram momentos cotidianos da família Pedroso, como festas de aniversário, encontros de família ou simplesmente filmagens do bairro, realizadas pelo patriarca da família. O filtro desses registros e o gesto de redescobri-los são discutidos na voz over, que expressa o ponto de vista da realizadora, em primeira pessoa, descrevendo sentimentos e anseios diante das imagens. Não sendo um personagem histórico, nem alguém que realizou algo extraordinário, Retalho é todo subjetividade, pois o sentido e potência das imagens vêm da relação da realizadora com o material. Serrat expressa seu desejo do encontro, mas aos poucos fica claro que os meandros da narração no filme perdem-se numa indiscrição dos sentimentos e da interpretação das imagens feitas pela realizadora. No fundo, não apenas os registros de Pedroso não foram feitos para serem vistos nessas condições, como o próprio gesto da diretora deixa a intrusão mais patente. Retalhos não só se apropria do material como lhe dá um sentido interpretativo duvidoso, expressão da subjetividade da instância narradora. Nisso o encontro não se dá: as imagens são ilustração do fascínio da narradora e ao invés de penetrarmos invasivamente nelas somos sempre rebatidos para os anseios de sua apropriadora. O único encontro aqui é do espectador com os anseios da autora. As imagens de Pedroso são só mediação.

Diálogos: reverência e intervenção

Uma corrente bem presente na CineOP este ano foi o diálogo com a tradição moderna – e modernista – da arte, herança de fundamental importância da qual o cinema faz parte. Em Satan Satie Ou Memórias de um Amnésico, de Juruna Mallon e Lucas Parente, e Cinefilia, de Calac Nogueira, trata-se de um diálogo com a modernidade europeia e, de certa forma, seus efeitos em contextos locais. Satan Satie dialoga com o espírito da obra de Erik Satie numa ficção que articula espaços em destituição com o vazio do esgarçamento narrativo já quase convencionalizado no cinema brasileiro contemporâneo. Mais que problematizar, o filme tenta incorporar esse “espírito moderno”, sem contudo questionar as próprias estratégias, como se a diferença entre hoje e o tempo de Satie fosse apenas o caso de um ajustamento de gosto estético e sensibilidade perdida. Já Cinefilia acompanha um estudante de cinema transitando por espaços culturais e salas de cinema, onde acompanha mostras de cineastas e filmes famosos. Em tom cômico, o grande interesse do filme está nas aproximações de espaços culturais com o dinheiro, seja pela logomarca de instituições financeiras ressaltadas em alguns planos gerais, seja pela presença de caixas eletrônicos em salas de cinema. De resto, as piadas são inspiradas num universo fechado, problematizando essa tribo sem, contudo, conseguir um “salto para o mundo” de suas sacadas. Cinefilia faz troça da cinefilia para reafirmá-la enquanto um espaço simbólico restrito, atentando para a precariedade do prazer cinéfilo numa cultura periférica.

Super Frente Super-8, de Moema Pascoini, Bahia Sci-fi, de Petrus Pires, e Memória da Pedra, de Luciana Lemos, abordam o cinema moderno brasileiro. O primeiro resgata o movimento superoitista sergipano dos anos 1970, entrevistando realizadores e propondo a eles a feitura de um novo experimento para o filme atual. Se Pascoini começa com a afirmação de tratar-se de um “filme de amor” em créditos sonoros tomados de Bergman e Godard, o curta progressivamente se torna mais e mais convencional, um registro – mais uma vez contra o esquecimento – para a posteridade dos realizadores amadores e suas imagens. Bahia Sci-fi e Memória da Pedra têm, de saída, uma vantagem, pois seus temas são realizadores conhecidos do Cinema Novo brasileiro: Roberto Pires, no primeiro, e Glauber Rocha, no segundo. Bahia Sci-fi é um documentário sobre a produção de Abrigo Nuclear (1981), de Roberto Pires, ressaltando sua invenção artesanal e a criatividade precária do visual futurista do filme. A convencionalidade serve bastante como homenagem e instiga uma visita ao filme de Pires, mas não deixa de confinar o filme Bahia Sci-fi ao potencial de ser um extra de DVD. Memória de Pedra revisita as locações de Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, ambos de Glauber Rocha. Intercalando sons e imagens dos filmes de Glauber com filmagens atuais nos lugares, Memória de Pedra parece reafirmar a cada plano as distâncias: cronológicas, paisagísticas, emocionais e de diálogo entre a obra do Cinema Novo com o povo, tomando os habitantes daquele lugar como exemplos práticos. Por um lado, existe um impulso interessante de mostrar os espaços míticos eternizados nos filmes do cineasta baiano. Por outro, contudo, a pulsão de distância impregna o filme: não há muito ao que se agarrar nele exceto as imagens das obras originais e a potência ali contidas, que, no limite das distâncias, não encontramos nas imagens de Luciana Lemos.

Sem Título #2: La Mer Larme

Sem Título #2: La Mer Larme (2015), Carlos Adriano

Nesse diálogo, dois filmes chamam a atenção, de modos diferentes, pelo domínio dos diretores de seus procedimentos. Não surpreende, já que os curtas-metragens abordados até aqui são de jovens realizadores buscando sua própria voz, enquanto Mar de Fogo, de Joel Pizzini, e Sem Título #2: La Mer Larme, de Carlos Adriano, são filmes de realizadores experientes, já depurando suas estratégias de forma a rediscuti-las e inventar-se sempre, como é o caso de Adriano, ou simplesmente pela repeti-las, como no filme de Pizzini.

Como a cartela final de Mar de Fogo avisa, o curta-metragem se apropria do imaginário de Limite, de Mário Peixoto, para construir um poema visual com trechos do filme e depoimentos de seu diretor. Não que fosse necessário o aviso, pois, apesar de sua aparência cifrada, Mar de Fogo é um filme límpido em suas construções. Pizzini não extrapola a utilização de depoimentos funcionais de Mário Peixoto (explicando a origem do projeto do filme e algumas de suas ideias) nem as rearticulações de planos de Limite para além de certa ilustração da potência da obra. É, nesse sentido, uma espécie de “filme paradidático”, quase um material de referência cujo interesse não passa da curiosidade pela obra homenageada. É uma subordinação mediada pela reverência profunda de Pizzini – e seu savoir faire poético da cinematografia brasileira – para com o monumental filme de Mário de Peixoto. O resultado desse jogo é retirar das imagens de Limite a vida que faz do clássico longa-metragem a obra-prima que é. De certa forma, Mar de Fogo é um filme de imagens mortas, cuja alma paira sobre as aproximações poéticas pretendidas. A montagem articula rimas visuais de palavras moribundas, imagens mortas pelo próprio curta-metragem que precisa reiterar a potência dos planos como quem diz: “então, essas imagens lá no filme original são incríveis”. Pois em Mar de Fogo, a poética reconhecível – e já desgastada – de Pizzini enterra o cadáver em cova rasa, como um coveiro experiente e ansioso pelo próximo serviço fúnebre.

Sem Título # 2 – La Mer Larme tem o efeito contrário: partindo de fragmentos de imagens do mar do início da história do cinema – Marey, Lumière, Edison – e diversas versões da canção “La Mer”, Carlos Adriano faz emergir da bruteza das imagens e sons um lirismo imprevisto, formando um poema ao mesmo tempo belo, emocionante, simples e complexo. Simples porque os procedimentos não guardam segredo algum: as mesmas imagens são montadas em ritmos e modos de manipulação diferentes, que vão articulando e desarticulando seu conteúdo plástico. Essa operação já está presente no subtítulo do filme pelo jogo com as letras, onde por sua simples rearticulação, mar (la mer) vira lágrima (larme), transparecendo a emoção que misteriosamente emana das imagens e da música (“o mar acalentou meu coração para toda a vida” como diz a canção), mesmo com o método de montagem das vistas do mar e dos versos da canção expostos o tempo todo. Adriano faz algo como uma “re(de)composição” na medida em que fragmento e completude se deflagram nas imagens e sons do filme: as diversas versões de “La mer” são decompostas em pedaços para formarem o todo cujas partes estão evidentes; mesma coisa com os fragmentos de imagem que completam a ideia de “mar” cada um a seu modo. Pedaços, pingos, com lágrimas que, em conjunto, formam um oceano de emoção de difícil descrição. A força de La Mer Larme vem dessa dificuldade de entender como algo tão simples e exposto resulta numa emoção tão violenta. As imagens sem lastro próprio – diferentemente da dança de Fred Astaire e Ginger Rodgers em Sem Título #1, cuja memória afetiva se ativa no primeiro impacto – como seres mortos, “des reflets changeants”, ganham vida. São palavras, signos, pouco a pouco transformados num belo poema-carta dedicado ao falecido marido do diretor. O coração que pulsa no final, bombeia o sangue e é mostrado em suas entranhas, foi reanimado pela construção fílmica – a emoção aparece diante de nossos sentidos. Daí a complexidade de La Mer Larme: o mistério das coisas simples e diretas do cinema, como a arte, como a vida.

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