Clash, de Mohamed Diab (Egito, 2016); Personal Affairs (Omor Shakhsiya), de Maha Haj (Israel, 2016)

setembro 1, 2016 em Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

* Cobertura do Festival de Cannes 2016

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Uma certa política
por Eduardo Valente (colaboração especial)

O Festival de Cannes não é exatamente conhecido por gestos maiores no que tange à macropolítica mundial, mas certamente não foi por acaso que escolheu abrir sua segunda mostra mais importante, a Un Certain Regard, com dois filmes do Oriente Médio, neste ano em que a França sofre com a lembrança (e a expectativa) de ataques terroristas do Estado islâmico. Porém, o fato de que os filmes em si não sejam exatamente bons certamente reafirma que, quando a Política toma a frente do cinema e da arte em festivais que lhes são dedicados, ela geralmente não resulta muito efetiva.

Clash, título de abertura oficial da seção, é um filme que praticamente independe de si mesmo para encontrar seu “valor” no mundo contemporâneo. Primeiro por ser a primeira ficção de maior ambição a lidar com os resultados das lutas no Egito desde 2011, e toda a extremamente confusa e contraditória sequência de situações sócio-políticas que se seguiram ali (e, como um breve comentário, é difícil não pensar no Brasil de hoje – e não por bons motivos). A ideia do realizador Mohamed Diab é promissora: colocar no espaço confinado de um camburão das Forças Armadas representantes das mais distintas vertentes (a Irmandade Muçulmana, os protestantes a favor das próprias Forças Armadas, jornalistas, e cidadãos de pouca adesão a movimentos organizados que calhavam de estar na rua no meio dessas manifestações, por motivos distintos). Na verdade, a ideia é tão promissora que esse é seu próprio calcanhar de Aquiles: frente a esse conceito, o que fazer exatamente com o drama e com a narrativa que já não esteja encapsulado no conceito geral?

A pergunta, claro, é retórica, pois a resposta no fundo é óbvia: um realizador com talento e olhar faria um grande filme – não por causa do conceito ou do tema, mas apesar e a partir dele. Só que Mohamed Diab não é (ou pelo menos não aparenta ser a partir do que Clash deixa ver – não pude ver o outro filme dele, também político e também “do seu momento”, Cairo 678) um realizador com enorme talento. Ele tem sim o talento dos que fazem e dos que estão no seu tempo, claro, e não é difícil imaginar as dificuldades para fazer um filme como Clash dentro do clima de quase censura e ditadura que o Egito vive, ainda mais com pelo menos duas cenas bastante grandes em termos de escala e presença nas ruas do Cairo. No entanto, quanto ao drama e à capacidade de, a partir dele, nos levar a outros lugares, Clash não permite esse passo a mais. Ele ilustra as ideias que se pode imaginar a partir de seu conceito básico da forma mais óbvia, e eventualmente manipuladora (onde a similaridade com o título de Crash, aquele ganhador do Oscar de Paul Haggis, parece quase como um alerta – embora o filme de Diab não chegue àquele grau de abjeção). Consegue construir uma sequência final de considerável força (visual, dramática e simbólica), mas é como se tudo que está no filme entre o estabelecimento de sua situação-base e esse desfecho apenas fosse um longo e esperado anticlímax.

Certamente mais interessante é o israelense Personal Affairs (foto), dirigido pela palestina Maha Haj na sua região (ela mesma faz questão de reforçar essa nacionalidade do filme, uma vez que o dinheiro de sua produção vem do Israel Film Fund – o que não deixa de ser uma afirmação política em si sobre sua dependência do Estado israelense). Não é nenhuma surpresa, vendo o filme, descobrir que Haj chegou ao cinema através de Elia Suleiman, que a convidou para trabalhar em O Tempo que Resta como diretora de arte). Sem dúvida, a sombra do cinema de Suleiman se estende sobre o trabalho da diretora (como de resto, claro, sobre todo cinema feito na Palestina atualmente), embora muito mais na parcela da construção do cotidiano palestino familiar (de fato, a grande afirmação política do filme parece ser sobre a necessidade de olhar com atenção aos dramas pequenos, mais do que os temas óbvios de confronto). No entanto, o que mais falta a Haj é justamente o que mais sobra em Suleiman: o olho clínico que consegue, através dos distintos aspectos da mise-en-scène (particularmente a colocação da câmera frente o mundo que quer capturar), dar força similar e simultânea aos aspectos micro e macropolíticos de sua narrativa, nunca permitindo que um deles se sobreponha ao outro.

De fato, a primeira meia hora de Personal Affairs é dura de assistir, com opções de câmera e montagem francamente equivocadas, criando uma gramática dura, cuja luz de estética televisiva realmente não parece nada proposital (no sentido de alguma ironia ou construção de distanciamento). Com o tempo, e o desenvolvimento dos seus personagens, o filme vai ganhando alguma força que vem muito mais de momentos dos atores ou situações específicas (é sempre um mau sinal quando ficamos torcendo num filme para aparecer a “vovó simpática e engraçada com Alzheimer”) do que de sua capacidade de construir um todo realmente pregnante (o filme seguidamente parece “esquecer” de alguns personagens na sua ida e vinda por narrativas paralelas dentro de uma mesma família). A meia hora final, mais concisa e direta, consegue elevar um pouco a lembrança, e, curiosamente, tendo em vista sua afirmação quase constante da importância do cotidiano, isso acontece especialmente na única sequência abertamente política e confrontadora do filme – quando um dos casais que formam o filme é parado num checkpoint israelense. Mas não se pode dizer que Personal Affairs, malgrado suas qualidades e eventual simpatia, apresente uma grande cineasta ao mundo – pelo menos não ainda.

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