Clarisse ou Alguma Coisa sobre Nós Dois, de Petrus Cariry (Brasil, 2015)

fevereiro 7, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Marcelo Miranda

* Cobertura da 19a Mostra de Tiradentes

clarisse01

A aventura inconsequente de uma noite sem controle
por Marcelo Miranda

O terceiro longa-metragem de Petrus Cariry se configura essencialmente a partir da edição sonora. Os dias da protagonista (Sabrina Greve) na casa de um pai doente e moribundo (Everaldo Pontes) são conduzidos pelos sons que chegam a ela e a afetam: zumbidos de moscas, gritos de animais abatidos, ranger de portas e tábuas. Foi por isso um acontecimento a sessão de Clarisse ou Alguma Coisa sobre Nós Dois na 19ª Mostra de Tiradentes.

Não é praxe que uma cobertura crítica se atente a situações extra fílmicas durante um evento audiovisual, mas, neste caso, há se ter a exceção, pois ela altera todo o sentido de percepção do filme. Durante a projeção, no começo da noite de 27 de janeiro de 2016, uma chuva torrencial despencou sobre a cidade mineira, daquelas de varrer céus e terra com a aparente totalidade de água que devia existir em todas as nuvens do mundo até aquele momento. Embora a tenda onde se projetam filmes em Tiradentes tenha estrutura altamente sofisticada, nem ela conseguiu ficar incólume para segurar a fúria do tempo, o barulho dos trovões e a força dos ventos. Clarisse ou Alguma Coisa sobre Nós Dois estava ainda em sua primeira hora quando a tempestade veio. Nos momentos mais silenciosos dentro da ação do filme, ouvia-se o chiado ensurdecedor da chuva batendo no teto da tenda. A personagem começa a fechar janelas no filme, e trovões de fora da sessão invadem os ouvidos dos espectadores. De repente, as cortinas na lateral da tela começam a balançar, quase ao mesmo tempo em que portas e janelas são enquadradas, e pedaços de pano ocupam o campo de visão do público, sacolejando junto com a própria tela. Fica difícil saber realmente o que está em cena e o que vem do lado de fora. Ficção e real se tocam diretamente, numa situação rara em que o corpo do espectador numa sala de projeção deixa de ser apenas aquele que olha e recebe o que é mostrado; desta vez, era preciso incorporar o entorno à própria experiência e percepção diante do filme. De um jeito involuntário, por aproximadamente meia hora, Clarisse ou Alguma Coisa sobre Nós Dois exigiu participação ativa do público que ali estava.

Uma crítica strictu sensu fica, então, inviabilizada num sentido imediato. Mas por que não deixar que as coisas se misturem também no trabalho de escrita? Haverá oportunidades para a Cinética retornar ao filme de Petrus Cariry sem as intervenções da natureza. Por ora, torna-se significativo pensá-lo a partir desta sessão específica. Afinal, trata-se de um projeto cuja ambição é justamente falar de natureza – não só aquela formada por árvores, céu, animais, mas também a natureza da pele, da materialidade, do ser. Clarisse é um corpo, inicialmente inerte, posteriormente em deslocamento e, enfim, um corpo ativo, selvagem e violento. Os traumas e questões suscitadas pelo enredo logo são deixados quanto mais o filme adere a perturbações externas que têm por função afetar a imagem e o andamento da narrativa. Pois, rarefeito e lacunar, trata-se sempre de um filme de narração, no qual o narrar ganha formas outras e as “peças” de um quebra-cabeça proposto importam menos do que suas colocações no tabuleiro.

O caráter de “filme de história” versus “filme de momentos” causa embates internos na estrutura de Clarisse ou Alguma Coisa sobre Nós Dois. Nos outros dois longas-metragens de Petrus, já era evidente a obsessão pelo manejo do artesanato e da arquitetura da encenação, na explicitação da consciência de que nenhum elemento se apresentaria fora de um lugar onde se sabe que ele deveria estar. O Grão (2007) e Mãe e Filha (2011) balançavam na dicotomia entre o narrar e o mostrar, entre fazer os desdobramentos das tramas seguirem curso e deixar o tempo desacelerar. O novo filme resolve algumas questões problemáticas dos anteriores, ao mesmo tempo em que cria outros obstáculos. Em que medida a jornada intimista de Clarisse não sofre de tanto controle quanto aquele que o pai exerce sobre ela? Se Clarisse está em busca de libertação e de autonomia sobre seus atos e desejos (não de maneira explícita, até a cena final fazer disso uma questão assumida), o quanto o filme não prende e sufoca a mulher dentro de uma engrenagem da qual ela não tem como se libertar, já que se trata da instância narrativa, do poderio do criador para com sua criatura?

O uso exacerbado de uma vasta gama de elementos de linguagem (música, sons, plongées e cortes abruptos de uma cena muito barulhenta para um plano de silêncio absoluto, recurso este usado várias e várias vezes) dá ao filme o aspecto de objeto muito controlado, o que, em certa medida, caracteriza o projeto estético de Petrus Cariry. Nesse sentido, a exibição num Cine-Tenda atacado pela chuva se torna um momento singular, justamente por retirar o artista do controle sobre seu material. Se as escolhas estéticas primam pelo silêncio em alguns momentos, a natureza não o permitiu; se o enquadramento buscava o rigor dos limites da tela, a cortina empurrada pelo vento interferiu; se os personagens sussurram entre si como espectros a ocuparem o mesmo espaço, só as legendas em inglês ajudavam a compreender o teor das conversas. Enfim, a mesma natureza transfigurada em elementos poéticos e simbólicos dentro de Clarisse ou Alguma Coisa sobre Nós Dois (o solilóquio sobre os vaga-lumes como a referência maior) postou-se no controle, mostrou-se mais poderosa e fez com que um filme rigorosamente pensado para ser aquilo que lhe foi determinado se tornasse uma aventura inconsequente.

Share Button