Cinquenta Tons de Cinza (Fifty Shades of Gray), de Sam Taylor-Johnson (EUA, 2015)

março 1, 2015 em Andrea Ormond, Em Cartaz

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Falsas perversidades
por Andrea Ormond

Se a maioria das pessoas ditas “esclarecidas”, ao lerem o livro e verem o filme, julgam Cinquenta Tons de Cinza um folhetim hardcore, prefiro acreditar que o combo encerra um poderoso espírito dos nossos tempos. Longe da referência a Sabrina – melhor seria dizermos Carlos Zéfiro e Brigitte Bijou –, o que sobrevive na história é toda uma cafajestagem, uma ode ao empobrecimento das relações homem-mulher, por conta da paranoia politicamente correta.

Cinquenta Tons de Cinza nem sequer alcança o status de kitsch. Vejam o terror: é limpinho, limpinho. Sem cavalos correndo na praia, beijos molhados de areia e a escuridão de um close no cair do sol. Ao contrário, o sadomasoquismo de Cinza é idealizado. Um sadomasoquismo pirilampo, cheio de falsas perversidades.

O tarado-mor, Christian Grey (Jamie Dornan), encarna o filho de uma prostituta viciada em crack. Apesar de tudo, Grey tornou-se bilionário e reacionário. Anastasia Steele (Dakota Johnson) é a pervertida que não quer sê-lo: uma white trash, deslumbrada pela beleza e pelo poder de auto-realização que o jovem Grey lhe proporciona. Se Erika Leonard James, autora do livro que deu origem a esse abacaxi, fosse minimamente ética, poderia ter preenchido a história com camadas e camadas de considerações e sofisticações. Mas não. Cinquenta Tons aplica-se apenas a um psicologismo espúrio. Abre as porteiras do inferno, como se Christian e a escrava Anastasia fossem o líder da boy band e a histérica groupie.

Trazendo a questão para nossa tropical brasilidade, lembro-me de Rubem Mauro Machado e do conto “A Carícia da Serpente”. Machado monta o vespeiro entre o casal dominante-dominada e atinge as bonitas raias da coprofilia. Queria eu ver esse prato quente nas travessas de Cinquenta Tons de Cinza, ou pelo menos a tentativa de que tudo não remetesse a um episódio de fim de noite, transmitido pela Rede TV, sob o olhar atento de Kim Kardashian.

O que falta de conexão entre as atitudes de Anastasia – de deflorada tímida à mulher de negócios –, sobra de espetáculo. Por isto mesmo, é de se pensar: como a ponte entre o que é externo ao filme – as traquitanas do texto – vai desaguar diretamente dentro dele, em um conluio espiritual, a ponto de o roteiro ser mera repetição do livro, quase um ISO 9000 para que a franquia desse certo. Obviamente, se as livrarias e os kindles conheceram outros dois títulos da série, os cinemas e os torrents também os conhecerão. Na prática, quem quiser buscar realmente sadismo e um poderoso bondage, deverá partir para a Historie d’O., que das cracundas de 1954 tornou-se filme em 1975 – com direito a uma continuação precária em 1984. Melhor ainda, deverá buscar a Bíblia de Gutemberg do SM no cinema, The Punishment of Anne/The Image (1974), de Radley Metzger. Cinquenta Tons é o tiozão do aniversário: aquele que, na falta de elegância, chama para si a economia de atenuantes.

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No erotismo balzaquiano de The Image, Metzger colocou o triângulo entre uma cougar milf, uma petite blonde e um playboy. A garota é caçada pelos dois, estes sim trintões e referenciais de falsa mãe e de falso pai. A tensão existe, creiam-me. E apesar de se dissolver em certo machismo, é sexo entre adultos, para adultos. Enquanto isso, bufando no escurinho do cinema, delirando com o Grey apolíneo, muitas mulheres se perguntam: “Deus meu, por que não me deste um marido assim?”. A resposta é fácil, meninas. Tenta-se vender o peixe de que Christian é old fashion, velha guarda (sim, ele diz gostar de mulher), mas não é verdade. E traço aqui não um juízo de valor, mas uma observação concreta do que a história exprime.

Exemplo: para embarcar na pornochanchada clássica, é necessário entender que a construção gira em torno do afirmativo de que David Cardoso (Carlo Mossy, Mozael Silveira, Jece Valadão) é, de uma forma ou outra, o mestre das galáxias. Cinquenta Tons de Cinza, como um observador cuckold, grita essa pretensa superioridade falocêntrica de Grey. As mulheres querem transar com ele. Os homens gostariam de ser um arremedo daquilo. Acontece que Christian é mitificação exagerada. Quase perfeita em sua imperfeição canalha. Nem o estereótipo de uma pornochanchada seria capaz de acreditá-lo. Isso transforma o pacote Cinquenta Tons de Cinza em imensa xaropada, ruim toda vida. Para gostar um pouco que seja, deve-se encarar os rostinhos de Anastasia e Grey, dois jovens apetitosos. Esqueçam o fator dominador-dominada. Submissão é limpar o corpo da sujeira, é sentir cheiros esquisitos. Christian Grey parece não ter cheiro (“O colonizador não fede”, já disse Afranio Vital).

Sob outro aspecto, Cinquenta Tons de Cinza é também a imagem da solidão capitalista. É a imagem do poder (Grey) diante da intelectual (Anastasia, estudante de literatura). Por essa visão, o filme poderia muito bem prescindir do sexo e ficar sem a vinheta da pseudo liberdade através das “taras”. Para piorar, no meio de tudo, aparecem vôos de helicópteros (o poder) e luzes piscando nas rodovias de Seattle. Ouço dúvidas sobre plugs anais que seriam melhor explicadas nos filmes de Buttman. Penas de pavão deslizam sobre o corpo de Anastasia e remetem diretamente à memória de Roberto Carlos Braga nos anos 80, quando então pendiam de uma das orelhas do cantor. Ainda neste estado de coisas, percebe-se que o antagonista de Christian é mexicano, fato que traz uma mensagem clara: o combate por Anastasia vai muito além da premissa de “liberdade”. O irmão da fronteira, feioso e pobre, é um coadjuvante indesejado, um signo bastardo na euforia alheia.

Eis que também surgem as Bachianas de Villa-Lobos, em uma tentativa de deixar a atmosfera mais respeitável. Tento não imaginar o compositor naquele moquifo, com as veias saltando pela testa e o medo de ser descoberto de olhos vendados. Se Christian se enganchasse em um tête-à-tête homossexual – fosse com o pobre Lobos ou qualquer outro ser do sexo masculino –, talvez a ideia de Cinquenta Tons de Cinza funcionasse. No final das contas, quero dizer que seria necessário algum elemento verdadeiramente desestabilizador, ao invés da mera repetição de frases e do leitmotiv de controle sexual, que acaba sendo um porto seguro para o danado rapaz.

Caminhando para fora da sala escura, ocorre o vaticínio. Já faz tempo que Marlon Brando se engraçou com Maria Schneider, em um apartamento imundo e decadente. Hoje, a Schneider versão Anastasia não aceitaria passiva o joguinho: correria para o Facebook e deixaria ali um post vitimizante. A foto de Brando versão Grey seria compartilhada em meio a esgares de ódio coletivo. Pobre Schneider-Anastasia, pobre Brando-Grey. Destruiriam, assim, uma parte dos seus universos de possibilidades, ao abandonarem o prazer individual – ainda que patológico, mas todo gozo é perverso. Tudo em prol da complacência escondida atrás de uma tela de MacBook e da necessidade de um blockbuster que atice milhões.

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