Cidade de Deus – 10 anos depois , de Cavi Borges e Luciano Vidigal (Brasil, 2013)

janeiro 28, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Juliano Gomes

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E a vida continua
por Juliano Gomes

Raramente, um filme em sua realização não é um momento de exceção, dentro do tempo do cotidiano. O cinema, como trabalho, em geral, exige uma economia do tempo que pede tudo para ele – pede suspensão, o que incorre necessariamente nesse momento de volta à vida. O filme de Cavi Borges e Luciano Vidigal se debruça sobre essa volta, que em todos os casos tende à violência e à alteração. O que acontece quando um filme passa? A arte nasce dessa fobia da passagem, da luta contra passar e, no caso do cinema, do desejo de permanecer passando. A tragédia deste retorno, o “10 anos depois”, é a constatação do limite desse desejo de durar, daí a força de resignação que o filme exerce. Se o sonho acabou, o que sobra? As pessoas. O objeto disparador desse intervalo é simplesmente um momento cume de produção simbólica do Brasil no século XXI, em direção, principalmente ao exterior. Cidade de Deus (2002) é o sonho e o pesadelo do cinema brasileiro da primeira década desse século, pois constitui uma zona de cultura comum que não parece poder ser atingida novamente e que só se dissipou como fantasma muito recentemente. Para haver fantasmas é preciso haver mortos. O foco aqui é o do caminho desses espectros.

Isso quer dizer que o foco, aqui, são os atores do filme, em sua grande parte, integrantes do Grupo Nós do Morro, em geral moradores mesmo das favelas do Rio de Janeiro. Aposta-se num paralelo a partir da verificação do filme de Fernando Meirelles como um documentário, como constituição de uma imagem que se estende para fora do filme, pro seu antes e seu depois. O “10 anos depois” quer tentar fazer montar um raccord possível entre esses caminhos irreconciliáveis: o cenário é o mesmo, as pessoas também, então por que não monta? A fotografia é menos brilhante, os corpos perderam viço. As tentativas de montagem paralela de trechos do filme com imagens recentes dos atores deixa ver, por contraste, esse abismo da passagem no tempo, especialmente nos corpos (são os atores a matéria aqui). Invariavelmente, o que se verifica é a tragédia dessa impossibilidade de uma montagem transparente, por continuidade. Essa é uma das contradições centrais aqui: como falar do fracasso de uma narrativa (de um mundo envolvente, belo, excitante, do filme disparador) que quer ligar duas imagens, sem investigá-las como imagem mesma. As imagens com maior força de impregnação no filme atual são mesmo aquelas que deixam ver o tempo nos corpos, o trabalho da morte afinal. Entretanto, essa dimensão é quase subterrânea nas imagens, na medida em que só se quer delas um discurso. A armadilha do filme de 2002 age agora no outro extremo dessa linha uniforme: agora, a sedução é a da retórica do desencanto.

A operação do filme de Borges e Vidigal é de uma espécie de “cair na real”, que deixa ver esse abismo entre duas imagens que obedecem diferentes lógicas de organização, composição e dinâmica (diante das imagens de 2002 é inevitável uma impressão de precariedade agora). Se esse real se mostra bruto, cruel e descontínuo, ele parece, ao mesmo tempo, uniforme – e talvez, por isso, menos bruto, mais apaziguado, lapidado. O fora de campo do mito, se tornado também mito, acaba se dissipando, pois carece de solidez interna, de composição de forças conflitantes que é o que vai erguer o mito. O real que o filme observa é essa condenação do negro brasileiro morador de favela à falta de perspectivas de mobilidade social. Se essa é uma verdade inescapável dos últimos quatro séculos no Brasil, a sua simples constatação parece um passo demasiado tímido na investigação dessa impossibilidade de montagem que esse “cair” revela. O mesmo abismo, o abismo do fetiche, o abismo de uma imagem que parece não tocar o mundo, na qual uma força centrípeta prevalece, é um obstáculo aqui, pois trata-se afinal de uma estetização (no sentido de abrandamento de arestas, de linhas de fuga e violência) da dimensão do diagnóstico que é também uma ferramenta de embelezamento retórico absolutamente sedutora.

Se é claro que uma obra de arte não muda a vida de ninguém, como indaga e responde o próprio filme, as obras podem mudar as vidas umas das outras, se contaminarem, se anularem e se alterarem no plano da estética. A resignação como forma (e não como tema, como em Ozu, por exemplo) é a antítese de qualquer possibilidade de alteração nesse plano e também de vazamento poético para fora dele. Os fantasmas que perseguem esses corpos agora tristes e quase imóveis que se sentam diante de nós, são também possibilidades de alteridades, de algum caminho que atravesse essa linha que de um lado é brilho e velocidade e de outro é esmaecimento e demora. A própria presença dos Racionais MCs e Seu Jorge são a evidência de um projeto de imagem que atravessa as instâncias dos estereótipos, joga com elas, mas mantém sua reserva de ação real, de possibilidade de diferença, de uma organização sensível que projete um mundo impossível e contagiante, que dite suas próprias regras, em seu dispêndio inútil que é característica mesma da arte – ela passa.

Apesar do notável esforço de ir ao encontro do grande evento midiático que se tornou o filme de Meirelles, a sombra projetada por ele parece ainda se estender demasiadamente por estas imagens de agora. A dinâmica de opostos (glamurização-desglamurização da vida) esconde as passagens que atravessam esses anos e essas vidas, e as fendas que existem nos dois lados dessa linha imagética. Nem os clichês condenam uma imagem à nulidade de produção sensível, nem o exame do seu fora resguarda um caminho seguro de descoberta de um terreno onde o novo possa surgir, de forma a poder violar tais teleologias. A volta aqui corre o risco do retorno ao mesmo, travestido de contrário.

Se o filme de fato não foge ao encontro dessas imagens do maior pesadelo do cinema brasileiro recente, e isso é um grande mérito, fica explícita a força de contágio que essa lógica, mais do que sua bela superfície, tem. Para observar o trabalho do tempo, é necessário compreender que a matéria dessa ilusão da qual os personagens, e, em menor medida, o filme, caíram é justamente essa força de conservação e estabilidade do mesmo. Aí reside a ambiguidade essencial que parece atestar que de fato o filme de 2002 ainda está passando. Sua herança é justamente a ilusão de imobilidade do seu domínio, a impressão de que suas operações ainda vigoram, agora pelo contraste, pela depauperação de seus restos. É essa a sua verdadeira ficção.

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